A força utópica da cultura

Em "Rebeldes e marginais: Cultura nos anos de chumbo (1960-1970)", a ensaísta Heloísa Teixeira traça um panorama febril de um momento em que a política e a poesia andaram juntas

Lúcida e ativa ao completar 85 anos de vida no dia 26 de julho, a idade trouxe a Heloísa Teixeira – ex-Buarque de Hollanda – uma até então inédita “noção da finitude”. Essa percepção, por temperamento, não haveria de abater o ânimo da ensaísta, crítica literária e feminista brasileira que viveu intensamente duas décadas extraordinárias para a cultura brasileira: os anos 1960 e 1970. Período que retratou em obras como Macunaíma, da literatura ao cinema (1978), 26 Poetas Hoje (1976), Impressões de viagem: Vanguarda e desbunde, 1960-1970 (1980), Cultura e participação nos anos 1960 (1984) Tendências e impasses: O feminismo como crítica da cultura (1994).

No impulso de compartilhar a massa crítica acumulada em uma vida toda de pesquisas, ela acaba de reunir em Rebeldes e marginais: Cultura nos anos de chumbo (1960-1970) um impressionante compêndio de reflexões, entrevistas, fotos e registros em vídeo essenciais para se entender a atmosfera viva e criativa respirada naqueles anos, em meio ao odor podre da ditadura militar.

O livro condensa em um único volume de 287 páginas um momento crucial do país, em acelerado processo de urbanização e modernização econômica, equilibrando-se entre anseios de liberdade e justiça social e o autoritarismo atávico da sociedade brasileira, anabolizado pela paranoia americana durante a Guerra Fria. A primeira parte, denominada “Rebeldes”, analisa a produção dos artistas na década de 1960; a segunda, “Marginais”, o espírito setentista que antecedeu a redemocratização.

“Alguma coisa muito forte”

Paulista de Ribeirão Preto, Heloísa não foi uma observadora distante dos acontecimentos. Viveu na pele o clima “sem lenço, sem documento, nem liberdade” daqueles anos em que uma extraordinária efervescência artística e política tomava o Brasil quando os militares tomaram o poder. Primeiro parcialmente, em 1964, e depois completamente, com o AI-5 de 13 de dezembro de 1968, que marca “o golpe dentro do golpe” e baixa de vez a mão pesada dos Anos de Chumbo.

Certamente por isso, seu olhar sobre a cena cultural brasileira é, a um só tempo, íntimo e arguto. “Quem, como eu, assistiu aos 115 minutos de Terra em transe, na ponta da poltrona, naquela noite de lançamento no Cine Veneza, em frente à Baía de Guanabara, em Botafogo, no Rio de Janeiro, e permaneceu, noite adentro, participando do debate caloroso e infindável que se seguiu à primeira projeção do filme de Glauber Rocha, sabia que alguma coisa muito forte havia acontecido ali”, relata ela, sobre uma certa noite de 1967, logo nas primeiras páginas do livro.

A ideia proclamada pelo personagem Paulo Martins, vivido por Jardel Filho no clássico do cineasta baiano, sintetiza com perfeição a ambiguidade explosiva daqueles tempos: “A política e a poesia são demais para um só homem”. Só assim é possível entender como um país que nos anos 1950 se encontrava “irreconhecivelmente inteligente”, no dizer irônico e preciso do crítico Roberto Schwarz, derivaria para a brutalidade e a cafonice do “ame-o ou deixe-o” dos quartéis.

De fato, a autora considera que as “forças progressistas” do país nunca tenham estado tão próximas do poder político quanto no início daquela década em que Jango batia recordes de popularidade e falava em reformas de base. “Ilusão desfeita, de forma e rapidez inesperada”, pontua ela, marcando a ciclotimia de uma geração cujos sonhos voaram alto e se espatifaram na realidade – e, talvez por isso mesmo, tenha produzido tanto e tão bem.

Sem milagre, sem documento

O cinema, o teatro, a música, a literatura e a vida intelectual exacerbaram-se numa tensão histórica que, por sinal, não se limitava ao país ou à América Latina e chacoalhava também o dito Primeiro Mundo, no Maio de 1968. Um vento revolucionário também, e sobretudo, nos costumes, com a irrupção de pautas como a das mulheres, do movimento negro e de grupos LGBTQIA+ – ainda que com uma assimilação, naquele momento, apenas lateral por parte das machistas esquerdas latino-americanas.

No decorrer dos 1970, o horror da tortura e dos desaparecimentos se soma ao esgotamento do “milagre econômico” e um novo equilíbrio de forças se revela na cena brasileira. A “navilouca pós-tropicalista” abraça a poética marginal e, mais uma vez, é o cinema quem dá a pista da mudança nas placas tectônicas – ao trocar a “estética da fome” de Glauber por uma “estética do lixo”, antecipada pelos diretores Ozualdo Candeias e Rogério Sganzerla e seguida por Julio Bressane e Ivan Cardoso.

Um cadáver na boca

É com fluência e propriedade impressionantes que Heloísa vai ligando as diferentes manifestações artísticas do período numa espécie de linha evolutiva da cultura brasileira. Uma produção artística capaz, ainda que imersa no processo de luta contra o obscurantismo, de pensar a si mesma de maneira dialética – apontando as limitações da militância política estrita ou da mera arte de protesto.

Não por acaso, a ensaísta reproduz o contundente cartaz afixado na Universidade de Sorbonne, em Paris, naqueles dias em que estudantes montavam barricadas nas ruas e deixavam o governo Charles De Gaulle atônito: “Os que falam de revolução e de luta de classe sem se referir explicitamente à vida cotidiana, sem compreender o que há de subversivo no amor e positivo na recusa às proibições, têm na boca um cadáver”.

Nesse sentido, aponta Heloísa Teixeira, os anos 1960 e 1970 foram também e principalmente o momento em que os jovens tornaram-se protagonistas, “segmentos que curiosamente não se definiam por classe social, nem por posição nos processos produtivos” convertem-se em “um dos motores mais efetivos da história”.

Um olhar generoso que explica não apenas o gesto da autora em compartilhar seus arquivos, mas também – como se lê ao final da entrevista abaixo – sua recente decisão de abandonar o sobrenome de casada com que ficou conhecida durante toda a sua carreira.

No vídeo em que apresenta Rebeldes e marginais, a senhora diz que uma das coisas bonitas da velhice é a disposição em compartilhar o que fizemos. O que despertou essa sua vontade?
— O que desperta essa vontade é a noção de finitude. E, a partir dessa noção a certeza de que você tem muita coisa pensada, feita, imaginada guardada dentro de si. E que compartilhar o que você acumulou vida afora é quase uma necessidade. E quando você começa a compartilhar e sente o tamanho da resposta que isso causa, não para mais.

Numa das entrevistas que deu sobre o livro, a senhora diz que ele é algo “que escrevi minha vida inteira” e tem “uma visão muito da hora”: os anos 1960 e 1970, que viveu tão intensamente. Como foi rever esse material? Voltar a esses escritos tantos anos depois trouxe alguma reflexão nova sobre os acontecimentos?
— Trouxe minha juventude de volta. Um momento de intensa esperança na construção de um mundo melhor, que nos parecia completamente viável. Esse momento ainda está, curiosamente, pouco escrito ou contado em seu conjunto e na articulação que conseguiu estabelecer entre política e cultura. A força utópica da cultura é muito impressionante. Escrevendo esse livro, o sonho parecia ter voltado e eu me senti num incrível túnel do tempo. A crítica que eu faço hoje é ao voluntarismo dessa geração, que impediu que a conjuntura política tivesse uma avaliação realista por parte dela. Deu no que deu.

Dizem que a ditadura militar interrompeu um momento incomum de “inteligência brasileira” do fim dos anos 1950. Mas às vezes tem-se a impressão de que o contexto autoritário que artistas e intelectuais enfrentaram a seguir resultou sendo fértil artisticamente. Qual dessas interpretações se sobrepõe, na sua opinião?
— 
Acho que as duas posições são pertinentes. Não há dúvida de que havia um processo cultural revolucionário intenso que foi calado pela censura da ditadura militar, como também esse período dá frutos até hoje. É bom observar que as principais referências culturais da atualidade continuam sendo os artistas dos anos 1960 e 1970, como Caetano, Gil, José Celso, a poesia marginal etc.

Na leitura do livro, fica-se com a impressão de que o teatro originado no CPC da UNE e o Cinema Novo foram as verdadeiras fontes da “revolução cultural brasileira”, que chegaria só mais tarde à literatura e ao tropicalismo na música e nas artes. O cineasta Arnaldo Jabor chega a dizer que o cinema é “a forma cultural mais importante do país”, uma ideia que hoje soa quase incrível. A senhora concorda com ele?
— 
Concordo sim. Porque o Cinema Novo foi criado naquele momento com ideias políticas e artísticas completamente novas, o que justificou sua grande repercussão internacional. O Cinema Novo foi uma inovação radical. O grande problema foi que ele não conseguiu criar público nem mercado para o cinema, o que obrigou os novos cineastas a repensar o sistema cinematográfico que, até hoje, se mantém frágil entre nós em termos de mercado.

Falando em mercado, a senhora registra que o boom nas artes durante os anos 1970 afetou as obras e demonstrou “a difícil convivência do ‘milagre artístico’ com o exercício experimental da liberdade”. A tal força da grana mais ergue ou destrói coisas belas?
— 
Essa coisa da relação mercado-liberdade de criação foi e sempre será complexa. Por outro lado, numa sociedade capitalista ela é inevitável. Então, é melhor procurar as brechas possíveis do que se lamentar. Hoje, cinco décadas depois, temos um mercado de arte consolidado nacional e internacionalmente, o que permitiu uma área de geração de emprego e renda, a profissionalização e a internacionalização dos nossos artistas e até algum espaço para o surgimento de expressões artísticas multiculturais, como a arte negra, indígena e periférica. A melhor ideia para tornar poroso o mercado é investir na visibilidade dos “excluídos” do mercado. E ter sorte nisso.

Como avalia a cultura produzida no país após o período abarcado no livro, começando pelos anos 1980 e 1990 até chegar nestas primeiras duas décadas do ano 2000? Regredimos?
— 
Essa pergunta tem a ver com a anterior. Basta um exame superficial para vermos que nosso cânone cultural e nossas grandes referências ainda estão fixados nos períodos 1960 e 1970, como por exemplo é o caso de Caetano e Gil na música. O que se vê agora é uma descentralização e mesmo pulverização da criação, com artistas e escritores reagindo a diferentes segmentos sociais e culturais. Assim, temos hoje uma arte menos concentrada na mão de grandes nomes, mas por outro lado um mercado que passa a ter que reconhecer a multiplicidade de demandas de grupos diversos entre si. Ou seja, passamos de um momento dos grandes artistas geniais para uma arte mais múltipla e democrática.