Numa das entrevistas que deu sobre o livro, a senhora diz que ele é algo “que escrevi minha vida inteira” e tem “uma visão muito da hora”: os anos 1960 e 1970, que viveu tão intensamente. Como foi rever esse material? Voltar a esses escritos tantos anos depois trouxe alguma reflexão nova sobre os acontecimentos?
— Trouxe minha juventude de volta. Um momento de intensa esperança na construção de um mundo melhor, que nos parecia completamente viável. Esse momento ainda está, curiosamente, pouco escrito ou contado em seu conjunto e na articulação que conseguiu estabelecer entre política e cultura. A força utópica da cultura é muito impressionante. Escrevendo esse livro, o sonho parecia ter voltado e eu me senti num incrível túnel do tempo. A crítica que eu faço hoje é ao voluntarismo dessa geração, que impediu que a conjuntura política tivesse uma avaliação realista por parte dela. Deu no que deu.
Dizem que a ditadura militar interrompeu um momento incomum de “inteligência brasileira” do fim dos anos 1950. Mas às vezes tem-se a impressão de que o contexto autoritário que artistas e intelectuais enfrentaram a seguir resultou sendo fértil artisticamente. Qual dessas interpretações se sobrepõe, na sua opinião?
— Acho que as duas posições são pertinentes. Não há dúvida de que havia um processo cultural revolucionário intenso que foi calado pela censura da ditadura militar, como também esse período dá frutos até hoje. É bom observar que as principais referências culturais da atualidade continuam sendo os artistas dos anos 1960 e 1970, como Caetano, Gil, José Celso, a poesia marginal etc.
Na leitura do livro, fica-se com a impressão de que o teatro originado no CPC da UNE e o Cinema Novo foram as verdadeiras fontes da “revolução cultural brasileira”, que chegaria só mais tarde à literatura e ao tropicalismo na música e nas artes. O cineasta Arnaldo Jabor chega a dizer que o cinema é “a forma cultural mais importante do país”, uma ideia que hoje soa quase incrível. A senhora concorda com ele?
— Concordo sim. Porque o Cinema Novo foi criado naquele momento com ideias políticas e artísticas completamente novas, o que justificou sua grande repercussão internacional. O Cinema Novo foi uma inovação radical. O grande problema foi que ele não conseguiu criar público nem mercado para o cinema, o que obrigou os novos cineastas a repensar o sistema cinematográfico que, até hoje, se mantém frágil entre nós em termos de mercado.
Falando em mercado, a senhora registra que o boom nas artes durante os anos 1970 afetou as obras e demonstrou “a difícil convivência do ‘milagre artístico’ com o exercício experimental da liberdade”. A tal força da grana mais ergue ou destrói coisas belas?
— Essa coisa da relação mercado-liberdade de criação foi e sempre será complexa. Por outro lado, numa sociedade capitalista ela é inevitável. Então, é melhor procurar as brechas possíveis do que se lamentar. Hoje, cinco décadas depois, temos um mercado de arte consolidado nacional e internacionalmente, o que permitiu uma área de geração de emprego e renda, a profissionalização e a internacionalização dos nossos artistas e até algum espaço para o surgimento de expressões artísticas multiculturais, como a arte negra, indígena e periférica. A melhor ideia para tornar poroso o mercado é investir na visibilidade dos “excluídos” do mercado. E ter sorte nisso.
Como avalia a cultura produzida no país após o período abarcado no livro, começando pelos anos 1980 e 1990 até chegar nestas primeiras duas décadas do ano 2000? Regredimos?
— Essa pergunta tem a ver com a anterior. Basta um exame superficial para vermos que nosso cânone cultural e nossas grandes referências ainda estão fixados nos períodos 1960 e 1970, como por exemplo é o caso de Caetano e Gil na música. O que se vê agora é uma descentralização e mesmo pulverização da criação, com artistas e escritores reagindo a diferentes segmentos sociais e culturais. Assim, temos hoje uma arte menos concentrada na mão de grandes nomes, mas por outro lado um mercado que passa a ter que reconhecer a multiplicidade de demandas de grupos diversos entre si. Ou seja, passamos de um momento dos grandes artistas geniais para uma arte mais múltipla e democrática.