Ao abraçar o fogo ardente das experiências que constroem sua identidade, o cearense Dalgo Silva estreia na literatura com a antologia de poemas Meu amor é político. Vencedor do Prêmio Cepe de Literatura na categoria Poesia, que lhe valeu a publicação pela editora, o livro é um dos cinco finalistas da categoria Autor Estreante - Poesia na 65ª edição do Prêmio Jabuti.
Escrito durante os anos de graduação em psicologia do autor, Meu amor é político é uma obra que perpetua seu passado de forma lírica, olhando com atenção afetiva para questões sociais, de gênero e classe. Apropriando-se da linguagem ensinada pela mãe e misturando-a com a norma culta do português aprendida nas aulas da escola, Dalgo segue um fio narrativo essencialmente humano em suas poesias.
Em entrevista à Revista Pernambuco, o escritor explicou que seu primeiro livro é o resultado de uma vida onde a literatura sempre esteve presente, seja quando sequer sabia o que os poemas queriam dizer, seja na sua vida atual, mantendo o ritual sagrado da escrita.
Como e quando você começou a ter contato com a poesia?
— Meu primeiro contato com a poesia foi na escola, mas em uma leitura não intermediada pelas professoras. Eu imaginava que a poesia era uma coisa muito importante, muito sagrada, para poucos, ela era um bicho de sete cabeças para mim. Isso justificava, por exemplo, o fato de eu não entender aquela linguagem, de achar completamente inacessível. Só que esse inacessível me gerou um certo fascínio e já instrumentalizado da leitura, no ensino fundamental, eu comecei a apresentar alguns dos poemas que lia nos livros didáticos para meus coleguinhas. Eu fingia entender [risos] o que o poema estava dizendo e sentia que aquilo me dava um certo poder.
É interessante analisar isso porque eu entrei na poesia pelo lugar de inacessível que ela tem, porque, pelo menos naquele momento, eu sinto que ela excluía nossas existências, mas, ao mesmo passo, eu aprendi a fazer poesia - e isso eu fui entender depois, com Manoel de Barros - por me autorizar a ser uma criança que fingia que sabia. Aquele meu fingimento já era uma produção poética, e estou falando da oralidade, que é algo muito cara na minha poesia.
Além do Manoel de Barros, que outros poetas lhe deram essa percepção de que você também podia escrever, de que sua vida também era digna de poesia?
— Minha memória me trouxe o Patativa do Assaré. Ele é uma referência primeiro pela história dele, do lugar que ele vem, e, segundo, pela importância que ele dá à palavra que sai da boca da classe trabalhadora e do sertanejo. Ele é o primeiro poeta que me faz enxergar minha vida como algo que pode estar dentro de um poema, muito por causa da vida que ele tinha e da vida que eu tinha no interior do estado do Ceará, mas também por conta da palavra. Ele brinca com palavras que saem das nossas bocas.
Um outro poeta é o Bertolt Brecht. Eu sempre habitei a biblioteca da escola e na adolescência eu o descobri. Nesse período estava em uma ânsia de estudar a história do Brasil e da Europa para compreender a colonização do nosso país e acabei topando com Brecht. Eu acho que a poesia dele me autorizou a escrever. E não é como se eu precisasse de autorização para escrever, mas naquele momento, onde a poesia ainda era algo inacessível para mim, eu precisava. A forma como Bertolt escreve era muito simples, não era hermética e os temas que ele traz, por ser um poeta presente junto à classe trabalhadora, cenas para descortinar o sistema que achincalha essas classes. Quando eu tenho o contato com os textos dele, é mais um portal que atravesso.
Um terceiro é Adélia Prado, por colocar o cotidiano no altar sagrado. O que é que tinha um jovem adolescente do interior do estado do Ceará que não o cotidiano? O cotidiano a gente tinha.
Veio a palavra, com o Patativo do Assaré, uma certa autorização de um europeu ainda por conta da construção do que consideramos literatura e vem aí Adélia Prado para entrar nesse caldo. E no período que eu comecei a escrever mesmo poesia, a Conceição Evaristo também entra, porque quando comecei a lê-la, era como estar lendo as histórias da minha mãe e das minhas tias. Mais uma vez, “olha só o território que eu habito entrando na literatura. Acho que posso fazer alguma coisa com isso”.
Pode-se dizer, então, que Meu amor é político é uma culminância poética até aqui?
— Sim. Meu amor é político é uma culminância e ele surge durante a minha graduação de psicologia. Estudei em uma escola pública, fiz graduação em uma universidade pública e mestrado em psicologia social também em universidade pública. Eu costumo dizer que Meu amor é político é fruto da extensão universitária. Isso porque quando eu entro [na faculdade], vejo que a psicologia também é um lugar inacessível para existências como a minha, uma existência LGBT e periférica.
Os grandes autores que estudávamos também não falavam de vidas como a nossa e, se falavam, eram de uma forma a patologizar as desigualdades que nos colocam em um lugar de subalternidade. Quando entro em um grupo de pesquisa que estuda processos de subjetivação e violência, eu passo a compor extensões que vão entrar em contato com jovens de periferias que produziam por meios artísticos muito potentes. Quando eu digo que Meu amor é político é fruto desses projetos de extensão, é porque ao entrar em contato com esses artistas, aquilo era poético e eu desenhava isso nos diários de campo, ao ponto de apresentar para meu orientador um poema que era diário de campo. A extensão universitária de uma universidade pública teve papel nisso e isso também é extremamente político.
Como se deu o processo de escrita, então, dos poemas que compõem seu livro?
— São algumas entradas diferentes, porque apresentei Meu amor é político como uma forma de culminância do meu processo de letramento, e quando uso essa palavra, “letramento”, estou falando de vários letramentos. Eu passei por um letramento de classes, por exemplo, quando tive que decidir entre fazer um curso de graduação ou trabalhar, quando estava terminando o ensino médio. Eu optei por trabalhar e quando trabalhei em um call center, tive um letramento social. Também tive um processo de letramento em relação a minha sexualidade, que é algo que pulsa no livro. Eu falo dessa coisa do letramento porque quero ir para a origem mesmo, que é minha mãe. Você percebe que ela está muito presente no livro. Vira e mexe, ela aparece em alguma cena, em alguma frase, ditado ou palavra que vem desse circuito de palavras que foi minha mãe que me ajudou a ter acesso. Estou dizendo isso porque minha mãe não sabe ler nem escrever, mas eu aprendi a falar português com ela. Minha língua materna é o meu quintal e eu escrevi Meu amor é político como um modo de voltar também a essa língua materna. Eu sempre gostei de estudar português, mas eu lembro de uma professora que corrigiu o modo como eu falava. Tem até um poema que diz isso: “ na escola não tem ‘pra mó de’” e esse “ mó de” foi uma expressão que aprendi com minha mãe. Então, na escola, eu aprendo que não existe lugar para minha língua materna. Ao longo dos anos, eu vou aprendendo o português formal. Só que eu cansei tanto de aprender que tive que voltar a origem, e passo a escrever brincando muito com o modo que minha mãe fala, porque é também o modo como eu falo dentro de casa. Eu vi que para me sustentar afetivamente tinha sempre que retornar à casa da minha mãe. Acho que Meu amor é político é um marco de retorno a essa linguagem materna.
Sempre segui o conselho do Drummond de “ dormir com poema”. Ele diz que a gente precisa dormir com o poema para que ele exista, então existem poemas que eu sempre soube que iria fazer, como “são gerardo de vrido”, que é uma cena da infância. Eu já sabia que em algum momento iria escrever sobre a pobreza de uma forma que não fosse romanceada, mas de uma maneira que não soubesse que eu era pobre, entende? Eu escrevo “são gerardo de vrido” me remontando à minha infância como um garotinho que se reunia com outras crianças felizes porque as mães tinham juntado um trocado para comprar uma cajuína. Eu não fui avexado, tive paciência com ele.
Escrever para mim é um ritual. Chego em casa, venho para o quarto, fico sozinho comigo mesmo, coloco uma música, escrevo e depois fico lendo em voz alta, porque para mim o poema é uma coisa que vai poder ser lida no pensamento, mas que, principalmente, vai poder ser compartilhado em uma conversa. Eu edito muito os meus textos, mas a ideia já sai muito pronta, porque eu tenho essa paciência com o texto.
Toda essa vivência se materializou em Meu amor é político, que agora é uma obra finalista do Prêmio Jabuti na categoria de Autor Estreante - Poesia. Como essa notícia foi recebida?
— Meu Deus. Isso que vou dizer não é prepotência: eu sempre tive, em algum lugar afetivo do meu corpo, o conhecimento de que eu viajaria por conta da literatura. Acho que é pelo fato de colocar a literatura com um grau de importância muito alto na minha vida. Apesar de trabalhar como psicólogo, ter migrado para a psicologia, a literatura sempre continuou ocupando um lugar muito importante mesmo na minha vida. Eu conecto até ela com a subjetividade. Então eu me imaginava, em algum momento, como o personagem do livro Encontro marcado, do Fernando Sabino, porque tem um momento em que o Eduardo vai receber um prêmio literário. Eu senti que isso ia acontecer comigo quando eu ganhei o Prêmio Cepe de Literatura, porque ganhar foi até mais assombroso. Eu não esperava. Quando eu recebi o e-mail me parabenizando porque eu tinha ganho, eu fiquei assim “meu Deus do Céu, não acredito!”. Eu mandei meu livro crente que ele jamais iria ser premiado.
A primeira pessoa que recebeu a notícia, depois de mim, foi minha mãe. Eu disse “mãe, é um prêmio de literatura! É um livro!”. E para ela entender, falei: “Mãe, lembra daquele texto que eu escrevi sobre o gatinho da mãe?”, que é o poema “amor felino", onde escrevo sobre a relação que ela tem com os gatos. Ela disse “lembro”. “Mãe, pois todo mundo vai ler!” Eu volto um pouquinho, falando do Prêmio Cepe porque quando eu ganho, penso “Alguém quis ler as histórias dos meus, com as nossas palavras? Alguém leu e gostou”.
Quando eu vi que tinha ido para a semifinal do Prêmio Jabuti, eu zerei a minha vida, porque estava sentindo que aquela sensação estava se concretizando. É o deslocamento do livro, o fato de uma banca ter lido esse livro, colocar ele na semifinal e agora na final. Isso é extremamente grandioso, porque são as histórias da minha mãe, da minha mãe conversando com o gato dela. Isso inspirou um poema que estava sendo lido por um doutor em literatura. De repente, doutores em literatura estavam dentro do meu quintal, conversando com os gatos da minha mãe. É por isso que para mim isso é disruptivo.
No poema “das penas” você questiona “o que resta aos sonhadores?” Quero devolver essa pergunta a você: Dalgo, o que resta aos sonhadores?
— Essa pergunta eu tenho me feito até hoje, porque ela é uma pergunta que faz a gente caminhar. A gente vive um período em que nos perguntamos se esses sonhadores podem fazer poesia. Estão acontecendo guerras em que crianças estão sendo trucidadas. O que é que resta aos sonhadores diante de um cenário global apocalíptico? Será que a gente deve parar de fazer poesia nesse período ou devemos trazer essas cenas para a poesia? Eu acho que precisamos - e não estou colocando isso como receita, coloco como pistas do que tenho produzido no meu caminhar coletivo - continuar sonhando com o mundo em que não haja penas, em que as pessoas possam sonhar como modo de vida digno, inclusive para a classe trabalhadora. Em que a gente possa sonhar com isso, ao mesmo passo que a gente tire uma fotografia de como está o mundo. Eu não sei se consigo isso com meu livro, mas eu tento.
Tanto que no último texto, que dá nome ao livro, “meu amor é político”, eu estou falando sobre chacinas. “O mundo anda capenga e nos abrasamos”, ou seja, esse “e” é como se fosse um “mas” e ao mesmo tempo um aditivo. O mundo está capenga, porém nos abrasamos. Se tornar brasa e se abrasar é o que resta às pessoas sonhadoras.