m
a coincidência, esta circunstância implicando queda fortuita de um evento ou situação no plano da realidade: lembro-me de que a queda, latente na raiz de seu étimo, está em cadere, também presente em incidente e acidente. O acaso, coincidência, me fez cair na fila de check-in do aeroporto com o pintor João Câmara. No saguão, ao nosso lado, via-se o mural que ele pintou, anos atrás, representando figuras aladas contra um fundo de cidade em ponta-cabeça, refletida nas águas de seu próprio rio. Falamos sobre aquela pintura.
Ele me contou, enquanto progredíamos empurrando nossas bagagens pelo labirinto do brete do atendimento, que havia dito a um colega mais jovem que acabara de ser convidado para fazer aquele painel. O rapaz pareceu animado e saiu com esta indagação :
“Cara, que legal... Você conhece a série sobre acidentes de carro de Andy Warhol?”
João disse que sim, que conhecia, e começou a falar ao moço que aquilo lhe lembrava a morbidez sequencial retratada na novela Crash, de Ballard , mas ele o atalhara, empolgado:
“Puxa, você podia fazer algo parecido com as coisas de Warhol, cara. Algo assim com aviões, intenso, chocante!”
João Câmara dispensara aquela sugestão por imprópria à saúde social e psíquica dos espaços públicos, mas, disse-me, havia certo sentido no que o rapaz falara. Fez-me observar:
“Desde as aventuras de Ícaro e o baque de Dédalo”, ele pontificou, “desde o abandono desses mitos e iconografias, o término catastrófico dos voos são as cenas impregnantes, dominantes do Pós-Modernismo. Dou-lhe duas imagens, por exemplos. Ambas cinematográficas, e como se diz hoje, resgatando um arcaísmo grego, são ‘icônicas’. Uma é a queda e incêndio do zepelim nazista Hindenburg , em Lakehurst, perto de Nova York. Um desastre que prenunciava o fogo e a escatologia da Segunda Guerra, uma introjeção da miséria moral e política da Europa no Éden pragmático americano. Outra, mais para cá dos tempos, é o estupro com morte das Torres Gêmeas por dois aviões de engenho e ciência capitalistas, ação perpetrada por fanáticos políticos, religiosos, fundamentalistas e suicidas, uma Nêmese de Alah perfurando a ferro e fogo, punindo o ateísmo sensualista e a arrogância da Babel. Tudo isso passado nos arredores da Fábrica de Warhol, ele mesmo um pecador cínico que se comprazia em glorificar e dolarizar banalidades, até mesmo fotos de batidas de carros com mortos tornados genéricos e anônimos na América do fugaz, não é fato?”
Ele não me disse essas atrocidades empoladas em voz alta, para meu alívio e sorte dos passageiros na fila. Fala assim, o meu amigo, não o faz por mal, é uma espécie de embriaguez que o toma, que o quer loquaz e digressivo para agradar o ouvinte. Ele termina divagando nessas frases faladas em letras de forma, quase que impressas.
Tivessem escutado os da fila, tivessem decifrado a prosódia, o medo do voo afloraria, sairia da segurança da sola dos pés, volátil contra a gravidade ascenderia à consciência do cocuruto da mente, se espalharia em frequências de terror e paralisia. Alguns já não embarcariam, outros, como no poema de Drummond, “não obstante irreprimível aproximação de um perigo atmosférico, golpe vibrado no ar, lâmina de vento no pescoço, raio, choque, estrondo, fulguração...”, irão, com suas bagagens, sonhos e afazeres “rolar pulverizados, cair verticalmente e se transformar em notícia”.
Despachados, enfim, tomamos nossos diferentes portões de embarque e fui ao meu voo, se não com medo, fui prenhe daquelas imagens – impregnantes, ele, João, havia dito (não sei onde e por que busca essas palavras) – figuras que os americanos advertem como de teor gráfico, intensas e chocantes como as queria o jovem artista admirador de Warhol.
Gosto de sentar em poltronas às janelas, pois acho que no avião ficamos cegos, somente o piloto enxerga alguma coisa, e o faz, em detrimento do que lhe chega célere pelos ares ao campo de visão, para fixar-se nas luzinhas que piscam num painel críptico, para ler gráficos (essa palavra!) de posição, consumo de combustível, nível da nave, altura do voo, resoluções do pitch, yaw, roll, isto é, da elevação, da rotação e a da inclinação, coisas imitadas dos atributos aviários, tríade cartesiana que em nós, ditos humanos, veio faltante de um item: a elevação física, que muito a propósito e talvez vantagem, foi compensada pela nossa capacidade retrógrada, ausente em absoluto nos aviões e pássaros, o que torna esses seres incapazes de arrependimento, ferramenta muito útil na vida prática, sentimental e moral. Nos aeroplanos, o ersatz para essa deficiência é o procedimento de arremeter, quando se erra ou se passa da pista de pouso, e essa experiência, que vivi incólume duas vezes apenas, graças aos deuses terrenos, pois os do céu pareciam estar desatentos naquelas ocasiões, é coisa que somente os pássaros controlam com alguma elegância, retornando em curva harmônica ao ponto de aterrissagem perdido. Os aviões, em seu esforço de arremeter, estertoram a ponto de arrebentar as artérias suas e dos passageiros, trepidam a fuselagem síncrones com o terror e tremor dos invólucros das almas a bordo.
Pois bem. Fico às janelas, janelinhas, digo, mesmo que nelas só haja nuvens ou névoa, não importa, tudo é mais real e visível do que a mesa-bandeja incrustrada, casco de tartaruga, nas costas da poltrona da frente, das bolsas com avisos e revistas que falam de mundos dispendiosos e inatingíveis deixados para trás, da TV que passa filmes filtrados pela anodinia vigile, aquele mesmo écran onde um aviãozinho percorre imperceptivelmente uma trilha sobre uma cartografia abstrata. É nosso avião, assim diminuto, pequena mosca tão solitária e falível, capaz de desaparecer de repente da tela dos controladores em terra, sumir do enxame que a eles, sim, mostra-se gregário e animado, insetinhos etiquetados com siglas, origens, destinos.
A essa altura (pitch) da vida, constato com melancolia que tive mais eventos aviatórios a recordar que amores a acalentar em lembranças, embora deva comemorar ter sobrevivido a eles todos, amores e voos, sem, contudo, e felizmente, ter virado notável notícia. Vai-se a um voo com uma determinação, um propósito e um destino, já a avenida amorosa é caminho impreciso com endereços semoventes. Ambos, amores e voos, porém, conjugam eficientes deuses menores: Eros e Tanatos, dois entes alados, é bom notar, que urdem o acaso de suas especialidades às vezes confluentes e com isto se divertem. Comédia e acaso. Acidente, quedas, é disso que se trata.
CONTEÚDO NA ÍNTEGRA NA EDIÇÃO IMPRESSA
Venda avulsa na loja da Cepe Editora