Papai preparou o jantar, há dias ele e mamãe interrompiam o que quer que estivessem conversando ao menor sinal da minha presença. Papai trabalhava num grande sanatório onde os quartos dos hóspedes eram pequenos chalés numa grande área verde, foi assim que ele o descreveu e não apenas isso, seus hóspedes eram pacientes em busca de cura.
“Doenças?”
“Tuberculose, asma, bronquite...”
Faz muito tempo. Não existe mais o sanatório, só o hotel.
Uma vez por mês, papai me levava à barbearia. Sentado na cadeira eu balançava as pernas das pesadas botas e olhava pelo espelho os homens de sempre, jogando dominó. Eles gostavam de falar mal do prefeito e das ruas de lama, mas naquele dia outro assunto dominava as conversas. Somente papai não parecia preocupado com a desativação da Great Western e o destino dos trens. No seu banco, ele olhava pela janela a chuva fina que caía desde a noite passada. Naqueles dias dos meus 11 anos, a cidade permanecia fria o ano inteiro e os sinos da catedral podiam ser ouvidos onde quer que estivéssemos.
“Está com fome?”
Eu disse que estava.
“Está quase pronto”, depois parou de mexer e eu lhe perguntei por que mamãe estava no quarto.
“Ela não quer comer, depois eu levo a sopa dela, venha, sente-se.”
A sopa estava cheirosa.
“Está quente, tome cuidado.”
“Mamãe está doente?”
“Não, só indisposta.”
A sopa gostosa, perguntei se podia repetir.
Ele colocou mais uma concha no meu prato.
“Você está crescendo, precisa comer.”
Ouvi alguma coisa no quarto de mamãe, ela falava algo, mas era impossível distinguir o quê. Papai também olhou na direção do quarto e falou na minha frente:
“Agora que está de férias da escola, andei pensando em levar você comigo ao sanatório, o que acha?”
“Ir com você?”
“Sim.”
“Vou ser seu ajudante?”
“Nada disso, não preciso de ajudantes.”
“O que vou fazer lá?”
Eu já estava acordado quando papai me chamou. Sei o quanto eles se esforçavam para não serem ouvidos na casa, mas o que conseguiam era produzir uma língua na qual não se distinguiam as sílabas das palavras, uma língua bárbara de sons, repleta de chiados e murmúrios que às vezes subiam um tom ou dois, suficientes apenas para expressar a perene perturbação daqueles dias. Não obstante todos os sinais, papai me garantiu que mamãe estava dormindo e não valia a pena acordá-la.
Parte da noite ainda estava na rua de poças de chuva e nuvens zangadas. Sentei ao seu lado, sua velha picape precisou de três sopapos. No inverno era pior. Ainda posso vê-lo como naquele dia, vejo seu cotovelo esquerdo ancorado na base da janela enquanto o vento brinca com seus cabelos. Às vezes eu acordava com seus preparativos, o frio me fazia puxar as cobertas, e só voltava a dormir quando a vibração do motor da picape suavizava e morria. Ele sempre teve a picape, quero dizer, foi nela que mamãe voltou da maternidade comigo enrolado em seu braço.
“Não está na hora de trocar a picape?”
Ele me olhou surpreso com a pergunta.
“Há coisas que a gente não pode vender nem trocar.”
“Por quê?”
“Você não pode se lembrar da tia Laura, a última vez que ela nos visitou você era só um bebê.”
“A sua irmã que morreu?”
“Minha única irmã.”
“O que tem a tia Laura?”
“Tudo, a picape é presente dela.”
O céu pouco a pouco foi clareando com as nuvens fustigadas pelos ventos.
“Parece que teremos um dia de sol”, ele disse.
De fato, faria sol o dia todo, mas vou me recusar a entrar na piscina, também não farei o passeio a cavalo que tanto insistirão.
“Escuta, filho”, ele disse, “eu queria que você tivesse conhecido sua avó e sua tia Laura.”
“Por que você nunca fala do vovô?”
Por um segundo ele não respondeu, como se não entendesse sobre quem eu perguntava.
“Seu avô...”
“Você não gostava dele?”
“Talvez fosse só uma pessoa infeliz. Você sabe o que acontece com pessoas infelizes?”
Balancei a cabeça.
“Nem imagina?”
“Fica todo mundo infeliz dentro de casa?”
“Você é um garoto esperto.”
Quando chegamos ao alto ele ainda dirigiu pela mesma estrada de pedras por dois quilômetros, talvez três, apareceram curvas sinuosas, o zigue-zague por um instante me fez ver as coisas rodando. Talvez porque fosse muito cedo da manhã, nenhum som, nenhum vestígio de outro carro podia ser sentido. A subida não tinha fim, aumentou minha vontade de vomitar, mas estava disposto a esconder de papai o desconforto.
“Não chega mais?”
Chegamos. Vi o enorme portão aparecer depois da última curva, papai parou e se identificou, um homem vestido numa roupa de guarda, com quepe e cinto de guarda, fez anotações numa prancheta. Papai acelerou, atrás da gente o portão se fechou movido por uma força invisível.
Ele estacionou e perguntou se estava tudo bem.
“Está, sim”, respondi, escondendo-lhe a vontade de vomitar.
“Tenho muito o que fazer”, foi logo dizendo, “e você veio aqui se divertir, Miguel vai ficar com você, tenho certeza que vai gostar dele, comprou calção de banho e tudo que vai precisar, e não me olhe assim, não pense que ia deixá-lo sem fazer nada ou me ajudando no jardim.”
Papai era o jardineiro do hotel. Disse que assim que pudesse se juntaria a mim e a Miguel.
“Quem é Miguel, papai?”
“Venha, vamos.”
Ligeiro quase corria na minha frente, aqui e acolá se voltava. “Apresse o passo, vamos.” Eu tentava alcançá-lo, mas entre nós vai se estabelecer uma distância que aumentará aqui e acolá pois tudo ao redor me causava admiração ao mesmo tempo que me fazia sentir pequeno.
Lá na frente, ele se deteve e me mostrou as árvores.
Os troncos das árvores de alturas descomunais.
Filetes dos raios de sol penetravam as copas e no chão meus pés pisavam folhas de eucalipto, o forte cheiro que delas se desprendia haveria de grudar em mim, me perseguiria, seria capaz ao longo dos anos, depois de tudo o que veio a acontecer, de me trazer de volta àquele mundo e de novo me fazer experimentar os mesmos sentimentos.
A longa distância que percorremos desde o estacionamento até a recepção só podia dar a mim uma vaga ideia, só isso, disse papai, da extensão que compreendia todo o entorno do sanatório. Papai parecia mais abismado do que eu, quem nos ouvisse diria que fora ele e não eu quem estava vendo tudo pela primeira vez.
“Ao Norte, alguém pode se perder se insistir em penetrar a mata densa e fechada pois é proibido desbastar a vegetação, aqui é a natureza quem manda, meu filho,” ele disse.
“E os animais?”
“Só aparecem à noite, e existe deles de toda espécie, um hóspede descuidado pode ser comido vivo,” e papai me olhou e tive a impressão que sorria.
Somente a uns 100 metros da entrada do sanatório, quando dobramos à direita e subimos por uma pequena encosta, papai resolveu diminuir a marcha, senti meus pés pisando cascalhos, foi aí que me dei conta que precisava alcançá-lo, dizer o quanto estava cansado e arrependido de ter vindo, que não foi correto sair sem me despedir de mamãe, pior essa história de Miguel. Não quero saber de Miguel nenhum, pai, não gosto de estranhos, não foi você mesmo quem me disse que devo evitá-los, correr pra longe? Os enjoos voltaram, dessa vez mais intensos, e pela primeira vez na vida senti raiva do meu pai.
Os degraus de pedra nos conduziram até o saguão do sanatório. Apesar da claridade do sol que entrava pelas janelas e portas, três lustres, pendurados por cordas grossas, estavam acesos. A armação de madeira devia pesar muito, um homem forte não aguentaria seu peso, imaginei a corda se rompendo e o lustre despencando daquela altura. Acompanhei vivamente sua queda, cheguei a desejá-la ao ponto de ouvir o estrondo que ressoou tão forte capaz de me acordar do enleio. O saguão é amplo, abrigava uma infinidade de poltronas. Eu não sabia que existia uma variedade tão grande delas, a gente podia afundar e desaparecer na espuma. Noutras, as cores berrantes contrastavam com as paredes revestidas de pedra. Entre os móveis contavam-se também pequenas mesas de centro e um relógio de paredes de 100 anos, eu jamais podia pisar naquele tapete com meus pés de areia e barro, talvez por isso meu pai se voltou pra mim e seus olhos me suplicaram que o esperasse ali, debaixo do arco da entrada, enquanto caminhou até o balcão onde um casal de hóspedes era atendido, mas tudo aconteceu num átimo e mal me deu tempo de observar um grupo de velhos aboletados em três poltronas e me indagar por que as mulheres eram gordas e os homens magros e altos? Conversavam num alvoroço e seja lá o que um dissesse provocava riso nos demais.
“Venha,” disse meu pai quando passou por mim.
No balcão, obteve finalmente a informação, a pessoa a quem procurava encontrava-se na piscina. De novo estava com pressa, chamava-me de molenga como se minhas passadas pudessem se equiparar às suas. Meu pai era um homem grande, fácil podia levantar qualquer peso do chão, já mamãe, muito franzina, puxara ao pai dela, meu avô. Vovô ao lado do genro era um menino enrugado. Sempre que alguém dizia que a gente se parecia eu ficava feliz, pois ele era possuidor dos mesmos músculos de Tarzan.
Não havia ninguém com trajes de banho na piscina, só dois homens conversando, um deles devia ser aquele a quem meu pai procurava, e não restava dúvidas quanto ao outro, o encarregado da limpeza da piscina que segurava numa das mãos um arpão, mas não era arpão coisa nenhuma, só uma vara comprida no final da qual se pendurava uma pequena rede.
Meu pai me pediu que esperasse e caminhou na direção dos dois homens. Quando chegou o zelador já estava de saída. Pude ouvir quando cumprimentou o homem, mas seja porque passou a ventar mais forte ou pelos gritinhos de umas crianças surgidas do nada, o fato é que não ouvi nada daquilo que conversaram. Também achei que a conversa durou, não sei quanto ao certo, mas o suficiente para fazer as crianças desaparecerem e eu me acostumar com o barulho do vento que me deixava ouvir, bem longe, um longo apito de trem sumindo.
O sol dominava o céu, mas não havia calor, só uma claridade, um brilho intenso. Finalmente me acenaram e eu me aproximei. O homem era um pouco mais velho que meu pai e, diferente dele, estava bem-vestido e calçava sapatos pretos, lembro que o sol também brilhava nos bicos dos sapatos do homem que me estendeu a mão e eu apertei para ficar sabendo que se tratava do gerente do sanatório.
“Eu me chamo Miguel, e você?”
“Carlos,” respondi.
“Eu soube que você está de férias, Carlos.”
“Sim.”
“E que passou com boas notas, é verdade?”
“Sim.”
“Júlio me contou, e como sei que ele não mente, não duvido que você seja mesmo esse garoto esperto que ele diz que é. Agora venha, vamos deixar seu pai trabalhar, prometi a ele lhe mostrar o sanatório. Sabia que as pessoas vêm aqui para curar suas doenças?"