Paulo Leminski tem notáveis diferenças, com relação a Maiakovski, por ele traduzido. Mas, na prática, cumpriu, ao menos parcialmente, uma premissa do grande poeta georgiano-russo-soviético: nunca alcançar a idade do bom senso. Nisso inclui-se uma espécie de tédio burguês presente em muitos lugares, como na sua cidade natal. Sobre Curitibas – no plural – ele, num exercício de mútua “autointerpretação”, disse: “Ser eu sei. Quem sabe,/ esta cidade me significa.”
Curitiba significa-o. Entre outras coisas, porque ele também dá sentido, senão à sua geografia, à sua “egografia”. Um exemplo é o enorme grafite com o seu rosto no centro. Outro é o festival na Pedreira Paulo Leminski, no seu 80º. aniversário de nascimento, em data quase cabalística: 24 de agosto deste 24.
A pedreira serve de imenso palco – tido como o maior do gênero na América Latina – ao mais cosmopolita dos poetas paranaenses. Nada melhor para alguém que construiu um personagem de si, em cena e performance.
É o Leminski universal unha-e-carne com o lirismo-libertação defendido por Manuel Bandeira que os de Curitiba e Oropa-França-e-Bahia podem encontrar. O Leminski homem-orquestra: músico, jornalista, crítico literário, publicitário etc. De muitas faces e vozes, difáceis e físseis, em todos os seus disfarces. Leminski trovador do trobar clus na proesia e trobar leu dos poemas-piadas e canções.
O verso de Verlaine poderia servir de epígrafe ao Festival Paulo Leminski 80 Anos. Diz muito a presença de cantores e compositores tão afins ao seu espírito, como Estrela Leminski (sua filha), Zeca Baleiro, Arnaldo Antunes, Paulinho Boca de Cantor, Vitor Ramil, a Banda Blindagem e a Mais Bonita da Cidade. Do trovador moderno e urbano que foi, e provavelmente suplantou no gosto mais popularizado o escritor erudito, o tradutor, o escritor.
Além de idealizar, coordenar e apresentar o evento, Estrela apresenta um show em homenagem ao pai. Que marca uma outra celebração somada aos 80 anos: uma década do lançamento do disco-duplo dos dois: Leminskanções.
A esse álbum – uma autêntica antologia das melhores canções de Leminski – está associado o seu songbook. Há obras de sua autoria total, como “A você, amigo”, “Adão”, “Cigana”, ... e outras feitas com parceiros, como, entre outros, Guilherme Arantes, Zeca Baleiro, José Miguel Wisnik, Arnaldo Antunes, Itamar Assumpção, Paulinho Boca de Cantor e Moraes Moreira. Com esse último escreveu “Pernambuco meu”, um frevo-exaltação do Recife (“cidade velha e bonita assim já nem há”). O gosto pelo frevo pernambucano resultou noutra composição, “Frevo palhaço”, com Guilherme Arantes.
A admiração e o gosto pela cultura nortista – como a da Bahia e a de Pernambuco – vão de mãos dadas com a convicção de que ao sul do corpo e da sua alma, Leminski foi um homem do Sul de todos os planetas. Como, aliás, está na sua canção com esse título reproduzida no seu songbook:
“Eu venho de um país chamado sul
Tem bicho namorando atrás da capoeira
O vento varre a mata
A serra e a cachoeira
E eu fico a matutar
Se existe ou não existe este lugar
Dizem que o sonho
É o pensamento sem realidade
Eu não consigo essa razão
Sonhar pra mim é de verdade”
O sonho de verdade – a verdade do sonho, pois há um traumarbeit (trabalho dos sonhos), segundo Freud. Isso exprime talvez todo o Leminski, um homo ludens. Como disse Huizinga, em seu livro clássico sobre os jogos, a poesia, “nascida na esfera do jogo, permanece nela como em sua casa”.
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