“E vocês, na batalha, tomam prisioneiros?”. Antes de eu ter tempo de pensar numa resposta equilibrada, o meu interlocutor adicionou o que era, obviamente, o assunto que o estava oprimindo: “Porque nós, em Angola, não tomávamos prisioneiros. Nunca. Uma esquadra entrava no mato e saía com 95% de baixas, mas sem tropas inimigas capturadas”. E ficou à espera, mais da reação no meu rosto do que de uma contrapartida informativa de tipo militar.
Foi assim que encontrei António Lobo Antunes, em 2005, na ocasião do célebre autor português ganhar o Prémio Jerusalém, pelo seu romance Auto dos danados que tive o prazer de traduzir ao hebraico.
Prazer? Pois. A obra de António Lobo Antunes não oferece o prazer vácuo, banal, fácil de horas de ócio. Coloca um espelho, duro, implacável, lúcido. Os leitores refletiam-se, a miúdo, cegados por aquilo que veem. Lobo Antunes, na sua vastíssima obra, refletia Portugal, o seu país, a sua pátria, o cenário da sua vida. Refletia-o e o destruía.
Nada fica sem ser dissecado, após ter sido colocado na mesa de operações do grande médico inquisidor português. Inquisidor, claro, no sentido etimológico, ou seja a mente crítica, detalhista, que questiona, observa profundamente, avalia e julga. Guerra, nacionalismo, moralidade, legado do passado, tradições rurais, fidelidade pessoal, sexualidade, política interna, militarismo, corrupção económica, social e pessoal, responsabilidades históricas e as suas implicações pessoais, a hipocrisia da religião, a virilidade em crise, a família portuguesa na decadência da sociedade salazarista, desse Salazarismo que ainda é Portugal, que é ainda Portugal... Tudo é exposto, descrito. Tudo ataca o leitor que abre a porta ao espelho de António Lobo Antunes.
“…E vocês, na batalha, tomam prisioneiros?”, a pergunta, seguida pela resposta do Lobo Antunes mesmo, expressava uma duplicidade que os seus leitores veteranos conhecem. Por um lado, o macho português, o galo estendendo a sua plumagem, ameaçando, derrubando qualquer hipótese de correção política, vendo se o interlocutor ficava assustado, ou se tinha, talvez, a capacidade de se elevar ao patamar machista iluminado por esse olhar azul cristalino, frio. Por outro lado, o sobrevivente da guerra colonial – e cabe aqui adicionar – essa guerra inútil, desastrosa, que marcou tantas vidas e que não tem cicatrizado nas almas dos que a experimentaram, quer portugueses quer africanos. Um sobrevivente ferido, traumatizado, triste por ter tido de ser testemunha de tanta miséria, de tantas atrocidades. E ainda pior, tudo se torna pior, ao lembrarmos que António Lobo Antunes, jovem médico militar em Angola, especializou-se em Psiquiatria, e exerceu a profissão de psiquiatra como a sua primeira-segunda profissão, tendo a profissão literária sido, ela também, a sua primeira-segunda.
É assim que um homem sensível encontra o seu tradutor no momento de ser premiado com um dos prêmios literários mais importantes, e introduz-se com uma pergunta que tenta detectar uma base compartida de machismo sangrento, e ao mesmo tempo partir a máscara do comportamento social respeitável, à procura de empatia. Eis a duplicidade.
O escritor António Lobo Antunes está sempre atentando contra o seu mundo. História, pátria, sociedade, costumes, famílias. O homem António Lobo Antunes chora isso tudo. O escritor é testemunha. Descreve. O psiquiatra sabe que redenção não há, não pode haver. Só aprendemos a viver com a verdade, essa mesma exposta pela literatura.
Esses 95% de baixas... São a matéria-prima de muitos dos romances do escritor lusitano. Vivos e mortos, feridos, inválidos, aflitos, atingidos de até de maneira indireta pela realidade política, histórica, humana. E as famílias? Os pais? As mães? Os filhos? As namoradas? Pois... até filhos deixados por tropas portuguesas em África aparecem na obra de Lobo Antunes. Até um menino africano que é resgatado da batalha e levado a Portugal, onde torna-se português, numa ironia perante a ideologia do regime de Salazar que não falava em colônias, mas num Portugal que estendeu-se em três continentes. Isso tudo é Portugal? Pois se de fato for... qual o status de um órfão de guerra, negro, adotado por um oficial português que não pude matá-lo?
O homem Lobo Antunes, à diferença do escritor, reivindica sempre o valor militar, humano e moral do soldado português, declarando em diversas ocasiões que é o melhor que já teve, o melhor do mundo, o melhor camarada, o mais exímio amigo e companheiro. Eis a profundidade de ferida. Tanto a do António Lobo Antunes como do seu povo. A verdade, sabemos os leitores da sua obra, está nos romances. Só aí é que pode estar. Só podia ser: para isso é que temos literatura.
O quadro refletido no espelho não tem compaixão com o observador. Não pode ter, porque que coloca-se faz ao espelho fica implicado, faz parte da realidade descrita. Se as tropas portuguesas entravam no mato e saíam sem prisioneiros, era porque matavam só, só matavam, matavam e mais nada, matavam inimigos feridos, matavam os que tomavam prisoneiros no mato, matavam os que se rendiam. E se emergiam do mato com 95% de baixas, isso mesmo diz muito dos africanos que teimavam em lutar, até a morte. Por que é assim a luta contra o opressor? É. Porque o opressor mesmo promulgou nas escolas que erigiu no mato um romanticismo bélico ao apresentar “a nossa história”- dos portugueses todos, até desses que foram feitos portugueses à força, vítimas de uma ideologia prepotente, megalómana e ridícula? É.
A História é um oceano de ironias e nós, o que é que podemos fazer? Manter o manuscrito sobre o nível das águas, para sermos testemunhas, para deixarmos um bom livro na prateleira do futuro.
No romance Os cus de Judas, António Lobo Antunes põe na boca do protagonista, oficial português em Angola, o famoso verso de Rui Belo “O meu país é o que o mar não quer”. Não quer. Ou seja, nunca. Esse mar português, coitado do mar, coitados dos portugueses. Ainda não quer, e na sua recusa deixa-nos com o trágico esplendor do Portugal de António Lobo Antunes, o esplendor do espelho onde não podemos fugir de aquilo que somos, mesmo se acharmos que tivemos a sorte de sermos parte dos 5% que saíram do mato ilesos. Como se fosse possível, Ai Deus, como se fosse possível.