Como conseguiram parar de ser humanos?

Chimamanda Ngozi Adichie, Philip Roth e Ariana Harwicz estimulam o debate sobre a literatura nos dias que correm

Chimamanda Ngozi: Many Jefferson/Companhia das Letras/Divulgação | Philip Roth: Douglas Healy/Glow Images/Companhia das Letras/Divulgação | Ariana Harwicz: Luis Miguel/Editora Instante/Divulgação
Chimamanda Ngozi: Many Jefferson/Companhia das Letras/Divulgação | Philip Roth: Douglas Healy/Glow Images/Companhia das Letras/Divulgação | Ariana Harwicz: Luis Miguel/Editora Instante/Divulgação

I.
A literatura tem uma importância profunda e eu acredito que a literatura esteja em perigo por causa dessa censura social. Se nada mudar, a próxima geração vai nos ler e se perguntar: como eles conseguiram parar de ser humanos? Como podiam ser tão desprovidos de contradição e complexidade? Como baniram todas as suas sombras?

II.
O comentário acima se trata de um parágrafo retirado do artigo Sobre liberdade de expressão, escrito pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie e publicado no Brasil no mês de março do ano passado. Quando utiliza a contração dessa referindo-se a uma censura social, a autora está se reportando a consequente estridência moral (“um alinhamento feroz, talvez até punitivo, às atitudes e comportamentos sancionados coletivamente nesta era”, ela cita o dramaturgo norte-americano de origem paquistanesa Ayad Akhtar) em torno de opiniões e posições consensuais sobre os mais variados assuntos/questões/debates de nossa contemporaneidade. Para Adichie, além das relações sociais, esse tipo de postura de viés tribal vem minando, como uma espécie de tirania não oficial subjacente, a própria inventividade humana. De acordo com as suas palavras, essa censura social (poderíamos utilizar a expressão no plural), sempre alicerçada por algum valor moral, tem se apresentado como um prenúncio da morte da curiosidade, da morte do aprendizado e da morte da criatividade.

III.
A fim de ajudar nesse surto frenético de emancipação, retratei um homem que é o repositório de todos os pensamentos inaceitáveis, um respeitado e sólido advogado de 33 anos possuído intimamente por perigosas sensações, queixas brutais, impulsos sinistros e uma lascívia insaciável. Escrevi sobre o quociente de sentimentos que não se enquadram nos padrões da vida social e que, embora, presentes em quase todas as pessoas, são reprimidos por cada uma com graus variáveis de êxito. E é desse modo que conseguimos ouvir o advogado Portnoy, como paciente psicanalítico, engajado na tarefa de sanar (ou agravar) seus problemas.

IV.
Esse outro parágrafo que o leitor acaba de percorrer foi extraído do artigo Quarenta e cinco anos depois, escrito por Philip Roth no ano de 2014 (só pudemos acessá-lo em português em 2022, por ocasião da publicação de Por que escrever?, livro composto por entrevistas e textos sobre literatura do próprio autor). Quem conhece minimamente a obra de Roth percebe, de imediato, que o famoso escritor de Newark está comentando sobre suas motivações para a composição de Alexander Portnoy, personagem central do romance que lhe catapultou para o jet set da literatura norte-americana. Sim, o Complexo de Portnoy, publicado em 1969, causou um enorme estrondo tanto na crítica como no mercado editorial na época (de acordo com o próprio Roth – em outro artigo do Por que escrever? – até o lançamento do romance em questão, nenhuma de suas ficções tinha vendido mais que 25 mil exemplares, cifra que se altera para 210 mil apenas nas 10 primeiras semanas de venda da obra). Um sucesso conquistado através de uma narrativa cujo “herói” é um sujeito extremamente libidinoso, carregado de preconceitos, conflitos familiares e pensamentos morais bastante questionáveis, conforme já descrito pelo autor no tópico anterior.

V.
Cinquenta e quatro anos distanciam o lançamento do Complexo de Portnoy e a publicação de Sobre liberdade de expressão, o artigo da Adichie. Há algo curioso entre os dois textos nesse interregno. Ao tomá-los em um possível diálogo, podemos pensar que algo mudou significativamente em relação à criação e à recepção literária. Sim, algo mudou.

VI.
Se este livro tem algum sentido, é o de afirmar a necessidade do paradoxo. Não estou sendo nada original, o paradoxo é ir contra a opinião geral, contra a lógica, é celebrar a contradição. Qualquer pensador, qualquer crítico, qualquer artista afirmava (antes) sua retórica e sua poética na desobediência. Ou seja, na resistência a pensar de maneira única. Pensar é pôr em tensão, ao mesmo tempo, duas coisas opostas. No entanto, por alguma razão que não consigo compreender, nos últimos tempos a necessidade de desobedecer enfraqueceu; em geral, ninguém parece se importar com a cultura da intimidação na arte. Parecem até gostar dela, contanto que não haja muito sangue.

VII.
O livro referido aqui se trata de O ruído de uma época (2023), da escritora argentina Ariana Harwicz, e o parágrafo transcrito é o que inicia a nota introdutória da autora – suas primeiras palavras na obra. Nele, a interlocução com Adichie passa de uma possibilidade para a sua efetivação. Como podemos perceber, há claramente entre elas a comunhão da evocação da contradição, da complexidade, do paradoxo/ambiguidade na criação e no pensamento contemporâneos. Se a escritora nigeriana nos alerta para os riscos de desumanização na Literatura realizada hoje através de hipotéticas (e factíveis) perguntas futuras, Harwicz, por sua vez, nos oferece não respostas, mas sim descrições de situações empíricas e reflexões sobre o ambiente literário atual, revelando-o como locus que vem sendo constituído por lógicas essencialistas (condição genital, biológica, cor de pele, identidade de gênero etc.), repletas de didatismos doutrinários/ideológicos. Como instantâneos do nosso zeitgeist, os aforismos da autora nos ajudam a enxergar nossa época como através de um espelho.

VIII.
Em suas recentes criações de caráter ensaístico, Chimamanda Ngozi Adichie e Ariana Harwicz insistem em chamar a nossa atenção para algo que deveria ser óbvio (muitos assim já disseram): a Literatura como um/a dos/as espaços/expressões possíveis em que autores/criadores devem estar livres das prestações de contas morais – eis a sua condição artística, a sua real condição libertária. A própria Harwicz no seu citado O ruído... nos lembra Rimbaud: “A arte é a perda da moralidade, a literatura não precisa ter como objetivo nos tornar pessoas melhores”. Não é pouco, acreditem.