Dois de abril de 1925. Moscou. Travessa Obukhov, número 9. Foi neste endereço que o escritor Mikhail Bulgakov recebeu uma carta que iria mudar sua carreira. “Gostaria muito de conhecê-lo e discutir uma questão que não posso revelar agora, mas que pode ser muito interessante para o senhor.” Quem assinava aquele texto era Boris Vershilov, um dos diretores do Teatro de Arte de Moscou, instituição cultural liderada por ninguém menos que Konstantin Stanislávski e que consagrara nomes como Maksim Gorki e Anton Tchekhov. Do encontro que tiveram no dia seguinte, surgiu a encomenda para adaptar o romance A Guarda Branca, o que resultou na montagem de Os dias dos Turbin, não apenas um clássico da dramaturgia russa, mas a única obra cujo sucesso Mikhail Bulgakov, autor do legendário romance O mestre e a margarita, pôde experimentar em vida.
Os Turbin, sobrenome da avó materna de Bulgakov, pertenciam a uma família de integrantes do Exército Branco, leais ao Império Russo. Por uma coincidência do destino, Mikhail Bulgakov já vinha, por conta própria, trabalhando em uma versão para o teatro. Antes mesmo que o romance fosse escrito, em 1920, ainda no calor dos acontecimentos, Bulgakov escrevera a peça Os irmãos Turbin, com o mesmo mote e personagens. A obra acabou se perdendo, mas foi levada ao palco na cidade de Vladikavkaz, próximo à fronteira com a Geórgia, para onde o escritor se refugiara em meio às tensões da guerra civil.
Com a queda da monarquia em 1917, o território que viria a constituir a Ucrânia tornou-se palco de disputa entre facções das mais diversas, pertencentes a espectros ideológicos variados: nacionalistas, anarquistas, tropas leais ao tsar e bolcheviques. Criou-se a Rada Central Ucraniana, espécie de órgão governamental que, em 1918, declarou-se independente da Rússia Soviética e, nessa condição, assinou o Tratado de Brest-Litovsk, obtendo reconhecimento imediato dos impérios austro-húngaro e alemão. A Rada foi dissolvida, e Pavlo Skoropádski concentrou em si todo o poder ao se proclamar hétmã, título militar e político de tradição cossaca. Seu governo foi garantido por tropas alemãs que passaram a ocupar Kiev. Foi ao lado desse contingente que o Exército Branco lutou contra os bolcheviques.
A ascensão ao poder do hétmã Pavlo Skoropádski, entretanto, causou fissuras no bloco nacionalista ucraniano. Symon Petliura, que havia sido designado como chefe militar pela Rada, liderou uma revolta contra as forças do hétmã, que eram apoiadas pelo Exército Branco, ao mesmo tempo em que combatia os bolcheviques. E é precisamente sobre isso, sobre a rota de colisão entre essas três forças, que Mikhail Bulgakov escreve em Os dias dos Turbin. O dramaturgo, que também participou da guerra, é o protótipo do personagem principal da peça, o coronel de artilharia Aleksiéi Turbin. A ação transcorre entre o final de 1918 e o começo de 1919, em uma Kiev sob guerra, mergulhada em incertezas políticas, na casa de uma família de militares leais a uma monarquia que, de modo irreversível, estava desmoronando.
Bulgakov: proibido por lei na Ucrânia
Em homenagem aos personagens de Bulgakov, a residência em que o escritor morou em Kiev, na ladeira de Andriivskyi, número 13, passou a se chamar “Casarão dos Turbin”. É lá que funciona, desde 1991, o Museu Bulgakov. Mas, se depender da União dos Escritores Ucranianos, não por muito tempo. Em 2022, um ano após a invasão russa ao país, eles redigiram um documento no qual afirmavam que “o Estado mantém e cuida de uma instituição que preserva a memória de um dos inimigos mais traiçoeiros da Ucrânia – Mikhail Bulgakov” e indagavam: “Como pode continuar funcionando, no coração de Kiev, um museu dedicado a um escritor que odiava ferozmente a Ucrânia e sua independência, e que a difamou em suas obras, como no romance A Guarda Branca?”. A proposta da entidade foi clara: fechamento do museu e que, em seu lugar, fosse criado outro em homenagem ao compositor ucraniano Oleksandr Koshyts, que viveu nessa casa até 1906 e “cujos méritos como figura cultural ucraniana são de grande importância não apenas para a Ucrânia, mas para o mundo inteiro”.
Apesar da sugestão não ter sido acatada pelo Ministério da Cultura, o tema da desativação do equipamento público voltou à tona em janeiro deste ano. A direção do museu fixou um banner com o anúncio do lançamento do livro A Kiev de Mikhail Bulgakov, o que causou revolta. A deputada da Câmara Municipal de Kiev, Ksenia Semenova, declarou que a apresentação não aconteceria, como de fato não aconteceu: “Tenho certeza de que não permitirão esse absurdo”. Vadim Pozdniakov, presidente da ONG “Svitanok” e cofundador do projeto “Descolonização. Ucrânia”, escreveu em sua página no Facebook: “Apresentar um livro sobre Bulgakov em Kiev, em 2025, é um tapa na cara... Parece que agora, mais do que nunca, é hora de remover o monumento e as placas dedicadas a Bulgakov em Kiev!”.
Até o momento, em toda a Ucrânia, nove placas memoriais dedicadas ao escritor foram arrancadas. Comentando o assunto, o chefe do Instituto Ucraniano de Memória Nacional, Anton Drobovych, por sua vez, disse que ninguém está proibindo a leitura ou o estudo da obra de Bulgakov, mas considera ridículo que a Ucrânia ainda tenha ruas e espaços nomeados em homenagem a um imperialista russo. “Além disso, o Museu Bulgakov, segundo a lei de descolonização, terá que mudar de nome”.
Assinada em 21 de março de 2023, a lei nº 3005-IX, na parte 2 do artigo 6, versa sobre “a condenação e proibição da propaganda da política imperial russa na Ucrânia e a descolonização da toponímia”. Alguns meses após sua vigência, o Instituto Ucraniano de Memória Nacional, por meio de um parecer técnico, declarou Mikhail Bulgakov como “símbolo da política imperial russa”. Em uma das justificativas, argumentou-se que “o escritor, apesar dos anos vividos em Kiev, desprezava os ucranianos e sua cultura, odiava o desejo de independência da Ucrânia, criticava a formação do Estado Ucraniano e seus líderes. Entre todos os escritores russos da época, ele se aproximava mais das ideologias atuais do putinismo e da justificação do etnocídio na Ucrânia”.
OTAN, União Europeia e a revolução que não acabou
Se algumas placas e monumentos vêm abaixo, novos são erguidos. Uma das personalidades que mais tem merecido essas homenagens é o líder nacionalista Symon Petliura, a respeito de quem Mikhail Bulgakov “criou estereótipos negativos”, conforme o já citado parecer do Instituto Ucraniano de Memória Nacional. Ao contrário do hétmã Pavlo Skoropádski, que é personagem de Os dias dos Turbin, Petliura figura como uma força aterrorizadora, evocada diversas vezes, a começar pela primeira fala da peça, dita pelo jovem oficial Nikolka, irmão de Aleksiéi Turbin. Tocando o violão, ele canta: “O boato desanima/ Petliura se aproxima!/ Nossas armas carregamos/ E Petliura metralhamos (...)”.
A história da reabilitação de Symon Petliura começa em 2005, na divisão 13 do Cemitério de Montparnasse, em Paris, quando o então presidente da Ucrânia, Viktor Yushchenko, depositou flores em seu túmulo. Um ano antes, após perder a eleição no segundo turno, Yushchenko conclamou seus apoiadores a irem às ruas, numa ação que se transformou em protestos por todo o país, eclodindo na chamada Revolução Laranja. Em função disso, foi realizado um terceiro turno, desta vez com a vitória de Viktor Yushchenko, em cuja presidência deflagrou-se, de modo irreconciliável, um ponto de virada na relação histórica com a Rússia. Ao tomar posse, Viktor Yushchenko afirmou: “Meu objetivo é a Ucrânia na União Europeia. Nosso caminho para o futuro é o caminho pelo qual a Europa avança unida”, e, próximo ao término de seu mandato, prometeu: “A Ucrânia aumentará seu orçamento militar e se juntará à Otan para se defender da Rússia”.
Symon Petliura tinha 47 anos quando foi assassinado. O ano era 1926. O crime aconteceu à luz do dia, na Rua Racine, próximo ao Boulevard Saint-Michel, no Quartier Latin. Foram cinco disparos de uma pistola automática de calibre 7,35. O autor do crime, Shalom (Sholem) Schwartzbard, tinha 20 anos. Era poeta e anarquista judeu. Ele não fugiu do local do crime. Ao avistar um policial se aproximando, esvaziou a arma e entregou-a. Quando a multidão partiu para cima dele, gritou: “Eu matei um assassino! Um assassino em massa!”.
Entre 1917 e 1921, foram executadas 15 pessoas da família Schwartzbard.Naquela quadra sangrenta, realizou-se na Ucrânia um dos maiores extermínios de judeus antes do Holocausto. As estimativas variam de 50 mil a 200 mil assassinatos. Parte significativa dessas mortes é atribuída às tropas de Petliura que, conforme depoimento de uma testemunha, Haia Greenberg, gritavam o nome de seu líder durante as chacinas. O julgamento durou oito dias e concluiu pela absolvição de Schwartzbard.
Narrativas em guerra: o antissemita e o bolchevique
No epílogo de seu Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal, Hannah Arendt identifica um precedente no julgamento de Shalom Schwartzbard, “que atirou e matou Symon Petliura, ex-hétmã dos exércitos ucranianos e responsável pelos pogroms durante a guerra civil russa”, com o julgamento do tenente-coronel da Alemanha nazista. A filósofa observa que o assassino de Petliura usou seu julgamento “para mostrar ao mundo, por meio do procedimento judicial, quais crimes haviam sido cometidos contra seu povo e ficaram impunes. No julgamento de Schwartzbard, em particular, foram empregados métodos muito semelhantes aos do julgamento de Eichmann. Houve a mesma ênfase na extensa documentação dos crimes (...)”.
Mas é preciso fazer alguns reparos. Hannah Arendt chama Petliura de “hétmã”, título que ele jamais ostentou. Na edição brasileira, lançado pela Companhia das Letras, o nome de Symon Petliura simplesmente não é mencionado. O tradutor José Rubens Siqueira escreve que Schwartzbard “atirou e matou o ex-comandante dos cossacos do Exército ucraniano”, omitindo parte do texto do original de Hannah Arendt, em que o responsável pelas tropas é citado pelo nome.
Todavia, não são poucos os especialistas que alegam que Petliura não teve responsabilidade direta nas ações de seus comandados. Há ainda especulações de que Shalom Schwartzbard era um agente soviético e executou uma missão confiada por Moscou. A guerra travada entre a Rússia e a Ucrânia se estende também pelo tabuleiro das narrativas, e o passado é um território em permanente disputa.
A história se repete
Embora eu mesmo tenha posto para o português os trechos de Os dias dos Turbin aqui citados, a obra foi editada pela editora Carambaia, em 2023, com tradução de Irineu Franco Perpétuo. Um ano antes, por iniciativa do jornal Folha de S.Paulo, foi realizada uma leitura dramática com o ator Alexandre Borges, com direção de Nelson de Sá.
No primeiro ato da peça, Elena, irmã de Aleksiéi Turbin, espera ansiosamente pelo marido, o coronel do estado-maior Vladímir Thalberg, que, ao chegar em casa, de forma reservada, anuncia que partirá no próximo trem que sairá em meia hora, pois as forças alemãs iriam deixar a Ucrânia ao seu próprio destino. “Por quanto tempo vamos ficar separados?”, ela indaga. “Eu acho que uns dois meses. Vou ficar esperando toda essa balbúrdia terminar, mas quando o hétmã voltar...”. Elena o interrompe: “E se ele não voltar de jeito nenhum?”. Thalberg parece acreditar no que diz: “Isso não pode ser (...) A Europa precisa da Ucrânia do hétmã como um cordão de isolamento contra os bolcheviques de Moscou (...)”.
Desde 1991, após o colapso da União Soviética, o governo americano investiu mais de 5 bilhões de dólares na promoção da democracia na Ucrânia. A cifra foi anunciada por Victoria Nuland, ex-secretária adjunta de Estado para assuntos europeus e eurasianos no Departamento de Estado dos Estados Unidos, em 2013, naquela ocasião, estava acontecendo outra revolução: o Euromaidan, que resultou na deposição do presidente eleito Viktor Ianukovitch e na ruptura definitiva nas relações entre Ucrânia e Rússia. A partir daquele ano, os EUA despejaram anualmente 418 milhões, para treinamento militar, armas, ações de inteligência, entre outros.
No momento da escrita deste artigo, as declarações feitas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, dão a entender que os ucranianos, novamente, estão prestes a ser deixados à própria sorte. No teatro da geopolítica, os atores podem até ser contemporâneos, mas parecem interpretar personagens de uma peça escrita há 100 anos.