Se existe uma indagação, sem resposta convincente, para o que seja poesia, também, no mundo da recepção de obras poéticas, perante boa parte do público interessado nessa forma de expressão artística, persiste uma pergunta que merece ser respondida adequadamente: por que Augusto dos Anjos, poeta paraibano morto aos 29 anos e cinco meses (em 12 de novembro de 1914), talvez seja o único poeta brasileiro que mais tenha cativado um público fiel, que o segue lendo e mesmo dizendo, em voz alta, a sua poesia? Por que essa perene admiração por quem escreveu pouco e deixou somente um livro, intitulado com apenas duas letras – EU? Aliás, o único livro publicado em vida do autor.
O filósofo italiano Benedetto Croce escreveu em seu Breviário de Estética que Arte é aquilo que todos sabem o que é. O curioso é que poucos conseguem defini-la com precisão. Ocorreu algo semelhante ao filósofo Hegel, que em sua Estética escreveu mais de 1.200 páginas, para, no final, como argumentou o filósofo José Ortega y Gasset, ter chegado à conclusão de que todo seu esforço poderia se resumir na seguinte afirmação: “A ideia é o absoluto”.
Com a poesia, uma das mais emblemáticas e belas formas de expressão artística, parece ocorrer o mesmo. Todos nós sentimos o que seja poesia, porém, poucos conseguem defini-la.
Escrevi, certa vez, com o propósito de definir o que seja poesia, que é velhíssimo o provérbio que diz: “O poeta nasce, o orador se faz”. Isso, no entanto, nem sempre é verdadeiro em termos absolutos. Quase tudo na vida tem exceção. Aqui, portanto, cabe uma. O poeta, na verdade, não nasce poeta; nasce homem. O orador também. O homem é que se faz poeta. Poucos, aliás. Augusto dos Anjos foi um deles.
Essa reflexão expõe o eu poético diante do poder da imagem que ultrapassa o realismo nu e cru. Trata-se do testemunho da mimésis, ou seja, aquele recurso criativo que avança até o reduto da memória a fim de, uma vez ali, restabelecer ou criar o momento poético.
Por outro lado, a beleza da poesia não se restringe exclusivamente à sua forma expressiva, mas a outras maneiras de manifestações estéticas. Além do mais, nem todas as pessoas a vêem como tal. Justamente por isso se diz que o papel da Arte seria o de ocultar a própria Arte, ou seja, não depender da forma, porque só assim o conteúdo, então, estaria livre para chegar ao destinatário em seu real estado de graça.
Eis, portanto, o poder extraordinário da poesia, revelar-se aos leitores, sobretudo quando a palavra torna-se impotente para expressar na íntegra os sentimentos. Nem sempre as palavras são meios suficientes para chegar-se à beleza poética. Também concorrem, com a mesma intensidade, os sons, as cores, as manifestações, abstrusas ou não, da Natureza, o lance do olhar e, ainda, como afirmou o poeta do “verde que te quero verde”, Federico García Lorca, por meio dos impulsos poéticos oriundos da imaginação ou do pensamento que nos invadem como se fossem vozes do além. Esses instantes não carecem somente da expressão verbal. Residiria nesse ponto o encanto da poesia do poeta paraibano?
Por admitir que os estados de graça se cruzam numa atmosfera inacessível à maioria dos mortais, Miguel de Cervantes afirmou que, ademais, “os poetas são ladrões uns dos outros”. O autor de Dom Quixote quis dizer que, no reino do sensível, é arriscado declarar-se original. A beleza, sem dúvida, é como a luz do sol: brilha para todos. A poesia também é assim: chega a todos os corações com força e, ao mesmo tempo, os comove. Pouco importa que ela venha agarrada nos pés dos versos, engastada na música, presa ao ritmo das palavras, aprisionada na tensão de um drama verossímil, ou, quem sabe?, escondida no mistério do arco-íris.
Ao lado da constante admiração dos leitores de diferentes gerações, a poesia de Augusto dos Anjos tem despertado vivo interesse de críticos literários dos mais diferentes matizes. Ainda por volta de 1944, Castro e Silva parece ter cunhado o tom da poesia de Eu como sendo uma espécie de cenário onde verberam apenas as vozes da Morte e da Melancolia. Duas décadas mais tarde, o crítico Fausto Cunha, também impressionado com a constante receptividade da obra de Augusto dos Anjos, afirmou que tal fenômeno era devido ao gosto popular.
Ao se compulsar o volume único de Eu, ao longo dos anos acrescido de outros poemas deixados inéditos pelo autor, constata-se que sempre vem a lume o prefácio do mais fiel amigo de juventude de Augusto dos Anjos, o crítico Orris Soares. Seu ensaio, intitulado “Elogio de Augusto dos Anjos”, sem dúvida, constitui um dos pontos fundamentais para se compreender o homem e o alcance de suas preocupações filosóficas estampadas nos poemas com vigor e tenacidade.
Orris Soares traz o perfil de Augusto dos Anjos logo na abertura de seu ensaio, em tom elegíaco, retratando o seu querido amigo a partir de uma descrição física que o revela como alguém extremamente predisposto à vida solitária, porém capaz de criar uma poesia tão cativante aos olhos dos leitores e aos ouvidos de seus ouvintes. Em qualquer um desses interessados, na verdade, é possível identificar profundos interesses arrimados em símbolos que se aninham e se aquietam nos estranhos seios de pessoas tão diferentes, inclusive, se levarmos em conta suas origens sociais.
Vale a pena ler o perfil feito por Orris Soares, talvez o mais fiel “angelista” entre todos os demais que se multiplicam ao longo dos anos. Escreveu:
“Foi magro meu desventurado amigo, de magreza esquálida – faces reentrantes, olhos fundos, olheiras violáceas e testa descalvada. A boca fazia catadura crescer de sofrimento, por contraste do olhar doente de tristura e nos lábios uma crispação de demônio torturado”.
A feliz epígrafe que Orris Soares apôs no seu elogio a Augusto dos Anjos parece apontar premonitoriamente para esse fenômeno que faz com que um poeta tão esquisito, quer na sua forma de vida, quer no tom funéreo aos seus temas, caia na admiração de grande parcela do público leitor. A sugerida premonição do crítico referida na epígrafe de Lucano diz:
“Oh! Trabalho sagrado e magnífico dos poetas! Tu arrancas todas as coisas ao destino, tu dás imortalidade aos povos mortais”.
Aqui, sem dúvida, poder-se-ia pensar que a eleição temática de Augusto dos Anjos, ao apoiar-se na Morte e na Melancolia, unem-se os fatores de imortalidade capazes de impressionar seus leitores por essa fatal condição que ameaça inexoravelmente a todos os mortais.
Essa escolha fez com que o poeta mantivesse sua indiferença pela adesão a escolas literárias, embora os comentadores de sua obra insistam situá-lo como um poeta afeito ao filosofismo e ao cientificismo, talvez pelo fato de surgir no corpo de seus poemas perorações filosóficas e cientificistas correntes.
Por outro lado, a não declaração explícita de Augusto dos Anjos por alguma escola literária, na verdade, não impede que seus temas terminem afetados por certas cargas simbólicas de ideias adictas a tais princípios. Augusto dos Anjos ao optar pela prática de cultuar uma poesia marcada pela Dor e dirigida pelos meandros da Morte e da Melancolia, forçosamente, terminou por receber o rótulo cientificista, sinete difícil de ser dissociado de seu labor literário.
Por outro lado, o Amor na poesia de Augusto dos Anjos é tema inexistente. A explicação, no entanto, parece fácil de ser percebida na obra de quem preferiu eleger a Morte e a Melancolia como o norte a ser alcançado. Morte como ausência de vida, algo fatal e inexorável; melancolia como estado de quem vive imerso na dor. Essas atitudes, portanto, parecem levar as pessoas que as aceitam a ver a vida como caminhada para a morte. A existência, nesse caso, é simples espera da chegada do cruel Ceifador.
Daí, ser fácil compreender a razão pela qual a última palavra escrita pelo poeta tenha, ao mesmo tempo, demarcado o limite de sua última página que continha o seu derradeiro sopro poético. Escreveu ali: “A hora da minha morte. Hirta, ao meu lado”. Assim ele iniciava o último soneto. Nesse poema órfico ele deixou toda a certeza da dor manifestada ao longo da curta vida pela incapacidade de amar e de declarar essa singularidade nos seus versos. Amar ou, pelo menos, clamar por esse sentimento caro aos seres humanos que, ao mesmo tempo, tão bem se irmana com a Beleza poética.
Foi exatamente no corpo desse soneto derradeiro, onde Augusto dos Anjos chamou à razão do seu “eu poético” para aquele batismo tão esperado – “Último número” – o qual poderá ser entendido como monstro ou anjo exterminador das coisas plausíveis. Escreveu, então: “É tarde, amigo”.
A partir desse instante, todas as portas ficaram fechadas para ele, inclusive aquela que o levaria à clave do Amor.
Quis o destino que, após Augusto dos Anjos fechar com chave de ouro o seu último soneto, logo a seguir, ele iria adentrar no negror tão assemelhado ao entorno marcado pelo choro da Morte e da Melancolia:
“Pois que a minha autogênita Grandeza
Nunca vibrou na tua língua presa,
Não te abandonou mais! Morro contigo!”
Talvez seja esse abandono provocado pela dor da Morte a que se acha submetido o ser humano, a principal causa que tanto alicia os leitores e os ouvintes de todas as origens sociais, aos versos de Augusto dos Anjos. Afinal, como escreveu o filósofo Arthur Schopenhauer, tão do gosto do poeta paraibano, “Só a dor é positiva”.
Ou será que Augusto dos Anjos também sabia que o Homem não nasceu para a Alegria, mas, ao contrário, com e para a Dor, e, com ela, um dia, haverá de perecer?