Aos mestres Vera Malaguti e Nilo Batista, artífices da liberdade
Engaiolados numa cela de castigo, três pobres homens buscam observar a movimentação do pavilhão penal em que se encontram cerrados, atentos ao vaivém paradoxalmente fixo dos guardas – também eles aprisionados feito “macacos” no interior de caixotes. Peleando violentamente pelo espaço para introduzir a cabeça sobre a prancha horizontal com que se fecha o postigo, o trio anseia mais que tudo pela chegada providencial do “anjo branco e sem rosto” capaz de restituir-lhes o acesso ao próprio corpo, sufocado pela torturante experiência do cárcere.
Soma-se à lista de degradações o horror experimentado por Polonio e Albino ao serem obrigados a dividir o exíguo espaço com o terceiro homem, o Caralho – a quem impuseram tal alcunha “porque não valia nem um reverendo caralho para nada”. Com um olho cego, uma perna aleijada e portador de tremores com os quais se arrastava de um lado para o outro sem nenhuma dignidade, o coitado era famoso na prisão pelo costume de cortar as veias cada vez que o punham na gaiola. Sem nunca alcançar a morte, produzia com isso o escândalo necessário para que lhe transferissem para a enfermaria, “onde sempre dava um jeito de conseguir a droga e recomeçar tudo mais uma vez, cem vezes, mil vezes, sem chegar ao fim, até a gaiola seguinte”.
E dessa vez, o Caralho suplicava feito criança para que os demais companheiros de infortúnio cedessem espaço para que ele metesse a cabeça no postigo: “eu quero ver a hora que a mamãe chegar”, insistia. Afinal, se Polonio e Albino haviam selado com ele uma aliança, devia-se ao fato de que a mãe do pobre diabo estava disposta a entrar na prisão com um pacote de droga metido no corpo; “liquidado o negócio, o aleijado que fosse às favas, que fosse à puta que o pariu”.
Como autor do plano, Polonio tratou de convencer a mãe do Caralho, afirmando que com ela as guardas não se engraçariam durante a revista. Enfiando-a num tampão de gaze com um fio levemente para fora, a velha entraria com cerca de trinta gramas da farinha providenciada por Chata e Meche, namoradas de Albino e Polonio. Ainda que os homens já não gozassem do direito à visita, frustrados com a transferência repentina para o interior da gaiola, o plano permanecia de pé.
Chata, Meche e a mãe do Caralho deveriam entrar no pavilhão confundidas aos familiares dos demais presos, para então alcançar a gaiola e entregar o pacote metido no corpo da velha: “o pacotinho para alimentar o vício do filho, como antes, no ventre, também ali dentro, ela o tinha nutrido de vida, do horrível vício de viver, de se arrastar, de se esfacelar como o Caralho se esfacelava, gozando até as raias do indizível cada pedaço de vida que lhe tocava”.
Obra seminal da ficção latino-americana e até então inédita em português, A gaiola acaba de ser publicada pela Editora 34, na competente tradução de Samuel Titan Jr. Considerada por críticos como a novela mais poderosa da ficção mexicana, o texto foi escrito por José Revueltas (1914-1976; foto) entre fevereiro e março de 1969 no cárcere de Lecumberri, nos arrabaldes da Cidade do México, onde o autor cumpria pena por sua liderança no movimento estudantil de 1968. Dedicando-se ao jornalismo e à literatura, Revueltas publicou obras que lhe valeram enorme prestígio literário, mas também críticas mordazes de seus companheiros de luta.
Durante a adolescência, iniciou sua militância política na órbita do Partido Comunista Mexicano. Em 1929, antes mesmo de completar quinze anos, foi levado à prisão ao participar de um comício no Zócalo. Na década de 1930, sua atuação militante valeu-lhe ainda duas temporadas na prisão de segurança máxima das Islas Marías. Antistalinista e antidogmático, o escritor rompeu oficialmente com o Partido Comunista em 1960. Nos anos seguintes, aproximou-se das marchas, assembleias e ocupações estudantis. Após a violenta repressão policial que culminou no Massacre de Tlatelolco, em 1968, Revueltas foi detido e condenado a 16 anos de prisão. Em Lecumberri, escreveu a célebre novela El apando (A gaiola), dedicando-a a Pablo Neruda, poeta que criticara o “existencialismo” exacerbado de seu primeiro romance. Libertado dois anos depois, faleceu na Cidade do México em 1976.
Muito além de um retrato do pavilhão que conheceu ao chegar em Lecumberri, sendo transferido posteriormente da ala dos “presos comuns” para a ala dos “presos políticos”, poder-se-ia dizer que o cárcere recriado ficcionalmente por Revueltas condensa a história da prisão moderna até os dias de hoje. Invenção do capitalismo industrial, a gestão do castigo perpetrada pelo poder punitivo esteve sempre em intrínseca ligação com os sistemas de produção do Capital. Por isso, ao oferecer uma imagem decrépita da existência no cárcere, sua breve novela nos lembra que a diferença entre o preso político e o comum é que o primeiro sabe que sua prisão é política.
Assim como no Brasil, a introdução do positivismo teve forte impacto na produção científica e literária mexicanas, restabelecendo a antiga continuidade entre História e Natureza, característica do pensamento clássico do século das Luzes. Se o positivismo era um ideário republicano e laico, na periferia do capitalismo ele foi prontamente transformado em elemento deslegitimador da ideia de igualdade. Algumas décadas mais tarde, com a ascensão do neoliberalismo no mundo, os ventos punitivos soprados dos Estados Unidos ajudariam a restabelecer o velho olhar positivista sobre os “resistentes à disciplina do sistema”, como nos ensinou a criminóloga venezuelana Rosa del Olmo.
Desde então, a judicialização da conflitividade social ampliou assustadoramente as garras do poder punitivo na América Latina. Com a expansão da “guerra às drogas”, fomos assistindo a um gradual deslizamento da figura do inimigo interno, passando do militante comunista para o narcotraficante. Essa passagem não só deixaria intacta as estruturas de controle social do ciclo de ditaduras no Continente, como demandaria uma intensa educação punitiva. Veja-se, por exemplo, o reacionarismo presente na vasta produção audiovisual e literária em torno da questão criminal.
Se, ainda hoje, sobrevive uma forte mitologia em torno da figura de José Revueltas, amplamente reconhecido como um incansável lutador das causas sociais, evocar sua biografia só faz sentido se se destaca a imensa contribuição literária do escritor, em seu esforço para reinventar o realismo que se produzia no México até então.
Desde as primeiras linhas de A gaiola, o leitor se percebe enredado numa trama implacável, em que ruídos aparentemente inarticulados de um mundo infernal são vivenciados pela experiência da palavra encarnada, desestabilizada aqui e ali pela irrupção de lampejos do mais profundo lirismo. A força política da obra resulta, sobretudo, de um minucioso trabalho com a linguagem, esgarçando-a a um limite quase sempre bastante arriscado. Por isso, se a militância comunista do autor tratou de jogar luz sobre a brutalidade do sistema capitalista, sua obra ficcional nos convida, antes de tudo, a repolitizarmos o próprio sentido da literatura, fazendo dela um exercício existencial contra a barbárie.