Resenha.out18 Machado de Assis

 

 

As liberdades dependem tanto uma das outras, que o dia da morte de uma é a véspera da morte de outra
Machado de Assis

 

Se, durante muito tempo, Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) foi acusado de ser indiferente aos conflitos sociais de seu tempo, em particular no que toca à questão racial e às lutas abolicionistas, a imensa fortuna crítica do autor demonstra quão injusta foi a atribuição do “estigma de absenteísmo” que pairou em torno de seu nome. Mas, no caso de perdurarem dúvidas a este respeito, elas se tornam agora quase insustentáveis com Machado de Assis, criminalista, novo livro de Nilo Batista.

A obra do renomado professor de direito penal, um dos mais importantes advogados criminalistas do país, é um desdobramento da pesquisa desenvolvida por ele desde 2014 no Programa de Pós-graduação em Direito da UERJ. A aposta de Nilo Batista foi a de revisitar uma obra que, segundo ele, transcendeu as fronteiras da literatura e da invenção estilística, constituindo-se como “fonte inexaurível de informações surpreendentes e intuições desconcertantes sobre a formação social brasileira urbana”. Machado de Assis nos é apresentado como um eminente criminalista.

Partindo de tal pressuposto, travamos contato com uma imensa variedade de contos e crônicas com temas criminais, com romances repletos de jargões judiciários e com uma infinidade de personagens forenses, além de termos acesso às opiniões de Machado em textos sobre controvérsias jurídico-penais e tendências criminológicas.

Nilo defende que o livro é destinado a “juristas e criminólogos, professores, estudantes e pós-graduandos em direito, advogados e juízes, defensores públicos, promotores de justiça, delegados de polícia, escrivães...”. Por isso, pede que, se “algum incauto do país das letras tenha curiosidade sobre este Machado jurista e criminólogo”, tenha-lhe piedade em caso de ter sucumbido a possíveis tentações, devido aos “modestos limites de seu ofício”.

Embora não tenha sido advogado, certamente Machado estudou as leis do Império e da nascente República para aprimorar seus escritos. Mas, ainda que a própria biblioteca do escritor tenha sido objeto de estudo de outros pesquisadores, nada do que foi encontrado por Nilo Batista foi capaz de elucidar como Machado conseguiu adquirir tão refinada bagagem jurídica.

Uma das hipóteses levantadas foi a de sua sofisticação técnica ter sido influenciada pela formação na burocracia, uma vez que, quando ele avançava no serviço público, sua obra ia sendo cada vez mais povoada por uma legião de bacharéis, juízes, tabeliães, escrivães, advogados e afins – além da farta presença de conceitos e formulações jurídicos. “À procura de certa palavra em sua obra, tropeçávamos fascinados no uso impecável dessas formulações e desses conceitos”, escreve Batista.

A palavra procurada por ele na obra machadiana era criminologia, já que o autor foi contemporâneo do empreendimento teórico europeu que consagrou o termo por meio da obra de Raffaele Garofalo, nome forte do positivismo criminológico. A palavra criminologias – assim mesmo, no plural – foi encontrada por Nilo Batista em uma crônica de 1896, poucos meses depois de Clóvis Beviláqua publicar o volume Criminologia e Direito (primeiro livro latino-americano a utilizar a expressão criminologia em seu título, como aponta Rosa Del Omo em A América Latina e sua criminologia).

Percebendo que eram praticamente irrespondíveis as questões sobre como Machado compreendeu com tamanha argúcia o sentido e a funcionalidade de certos recursos jurídicos, coube a Nilo Batista a função de tentar entender os usos dentro de cada uma das obras do escritor. Ao longo do livro, fica mais do que evidente que, se os esforços de Garofalo (e dos demais criminólogos positivistas) iam na direção de provar a existência de um “crime natural”, Machado, ao contrário, argumentava contra o entendimento de uma ontologia do objeto criminal, atuando na deslegitimação das penas do sistema punitivo.

“O crime existe? Existe; eis tudo. Não existe; eis ainda mais” – escrevia ele em uma crônica de março de 1895. “Em inúmeras passagens de sua opulenta produção, Machado se (nos) diverte tematizando procedimentos e dogmas do cientificismo punitivista”. Assim, Nilo Batista demonstra, por meio de impecável análise teórica, as formas como Machado desvendou os sentidos históricos do sadismo de uma sociedade escravista e patriarcal.

Segundo Sidney Chalhoub, autor de Machado de Assis, historiador, historicizar a literatura incide em risco constante de profanação da obra literária, uma vez que, nestes casos, a análise materialista acaba por sempre anteceder a preocupação estética. Ainda que Nilo Batista não deixe de inserir Machado e sua obra em processos históricos determinados, consegue fazer do autor de Dom Casmurro um escritor ainda maior.

Machado de Assis, criminalista é uma aula sobre a história do direito penal e da criminologia no Brasil do século XIX. Em um dos momentos mais fortes da obra, Batista se porta como espécie de advogado de defesa de Capitu, demonstrando a fragilidade da sentença condenatória apresentada por Bentinho em Dom Casmurro, por ser o personagem acusador e juiz a um só tempo. “Por isso, a intervenção de um juiz na colheita policial de provas, autorizando medidas cautelares (interceptações telefônicas, buscas domiciliares, prisões provisórias etc.), deveria impedi-lo para o julgamento da causa, que, em certo sentido, na internalização de seu empenho e convencimento sobre os resultados da investigação, converte-se em 'sua’ causa. Juízes-investigadores são incapazes de fazer justiça, e estão condenados a fazer justiçamento.”

Um dos destaques da análise de Nilo Batista é deixar evidente a relevância e atualidade de algumas questões jurídico-penais trabalhadas pelo escritor. Em que pese o pouco cuidado da produção editorial (com erros notórios, como o desencontro entre sumário e paginação), a erudição teórica e o fino humor do pesquisador, confundidos com o brilhantismo de Machado de Assis, fazem desta uma obra singular dentro dos estudos sobre o escritor.

 

> Leonardo Nascimento é jornalista e mestrando em Antropologia (Museu Nacional/UFRJ)

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