São Paulo, a província mais bem-sucedida do Brasil, sobretudo no aspecto econômico, deve muito do seu êxito a “severinos”. Os severinos constroem a parte menos narcísica de sua paisagem, carne da sua alma menos cimentada. Nada mais natural que venha de uma editora paulista um exemplo virtuoso de uma releitura desse grande clássico moderno. Numa versão colorida e edulcorada do sofrimento severino.
Foi em São Paulo que aconteceu o primeiro grande sucesso de Morte e vida severina – no palco do teatro da Pontifícia. De São Paulo veio uma das primeiras críticas lúcidas sobre a poesia de João Cabral: a resenha de Antonio Candido. Do filho Chico do historiador paulista Sergio nasceu a joia musical que poderia, unha-e-carne com o poema, ser “tombada”, como patrimônio intangível.
Quando se trata de adaptação desse poema é sempre importante lembrar que rendeu também uma pequena obra-prima da televisão brasileira: o especial dirigido por Walter Avancini.
Mas no caso deste livro novo, tanto se faz justa propaganda do produto e de tão boa qualidade é o desenho, que dificilmente haverá quem não o aplauda, com lágrimas nos olhos e flores artificiais nas mãos. Ele integra aquele tipo de coisa bonita de que quase todo leitor se sente meio na obrigação de gostar.
Na quarta-capa do livro, o personagem de João Cabral é “promovido” a sertanejo. Pela simples razão de que quem conhece pouco Pernambuco talvez pense que só há duas regiões: a das praias e a do sertão. Não lhe ocorrerá pensar numa região chamada Agreste – mesmo que alguém eventualmente saiba que Agrestes é um livro de JCMN. Por sinal, dedicado a Augusto de Campos, o grande poeta de São Paulo na atualidade.
Os concretistas entenderam bem as asperezas cabralinas, suas durezas de cabra. Durezas e tristezas agrestes que foram convertidas em bonitos pastéis na nova adaptação. Agradáveis de ver e fáceis de comer. A dor severa de Severino se aquarelou, e é tudo tão bem-resolvido que alcança aquela “perfeição do fabricado” a que se refere Cesário Verde.
Na época em que começou a valorização da poesia de João Cabral pela intelligentsia nacional, um crítico o mencionou, no texto "Mundo dos poetas, nosso mundo", no Diário de Notícias, do Rio de Janeiro (22 de abril de 1956), deste modo: "João Cabral de Melo Neto não é mais nenhum sonhador vago, à espera de alguma iluminação fulgurante que desça sobre ele, sem deixar outro traço além do poema, da obra completa em si, em si mesmo acabada. Se ele ainda ama a sua técnica, se ainda a submete à mais laboriosa e paciente depuração, sem perder de vista a razão lógica da existência da poesia, também ama a sua lucidez e se submete ao espetáculo da vida cotidiana, aos seus sofrimentos e desesperanças no sentido de alcançar uma poesia de eficácia coletiva e poder dizer alto o que todos pensam baixinho ou dizer bem o que apenas pensam. Essa atitude se explica bem naquele auto de Natal pernambucano Vida e morte severina (sic), destinado evidentemente a preencher a outra intenção do autor, a do poema para auditório, numa comunicação múltipla, que, menos que lido, pode ser ouvido, de modo a ficar o poeta naquelas ‘duas águas’, alternando o esforço da melhor expressão com o da melhor comunicação. Não se julgue, porém, que o esforço de comunicação alcançada elimine o outro esforço".
É tão pessoal a nova versão ilustrada de Morte e vida severina, que, na sua eficaz estetização, pode até dispensar o severino original. Competentemente descabralizado pelo desenhista. Mas cumpre bem aquele tipo de “inovação” cada vez mais reivindicada: o das boas “causas”. Vitória do novo “vitorianismo” do politicamente correto. A “atualização” das figuras “cabralinas” que vem sendo tão elogiada ancora-se um pouco nisso.
Depois de Avancini, talvez tenha sido a fotógrafa Maureen Bisilliat quem mais sensível e “agrestemente” conseguiu ler e “dar a ver” João Cabral. Numa versão própria, obviamente, sem deformá-lo nem “poetizá-lo”. No caso dela, reinventando a primeira parte do tríptico que culmina em Morte e vida severina, ligada umbilicalmente a O rio (Prêmio do IV Centenário da Cidade de São Paulo, em 1954): O cão sem plumas.
O trabalho de Odyr é como aqueles quadros bonitos de Frans Post que retratam as gentes de Pernambuco sob um dossel bem-comportado de céus europeus.
Mário Hélio é editor das revistas Pernambuco e Continente