Uma conversa afiada

Por necessidade financeira e curiosidade, Clarice Lispector realizou entrevistas com personalidades para jornais e revistas, reunidas em livro. Nova edição ampliada traz conversas inéditas.

“É curiosa esta experiência de escrever mais leve e para muitos, eu que escrevia ‘minhas coisas’ para poucos. Está sendo agradável a sensação. Aliás, tenho me convivido muito ultimamente e descobri com surpresa que sou suportável, às vezes até agradável de ser. Bem. Nem sempre.” (1972). A autorreflexão de Clarice Lispector sobre sua atividade jornalística traduz a atmosfera que domina o conjunto de encontros reunidos em Clarice Lispector entrevista, onde se misturam descontração, senso de humor, intimidade, lastro confessional, contundência e jogos de linguagem que lhe são caros, como em “tenho me convivido”.

A edição primorosa ficou a cargo da pesquisadora britânica Claire Williams, que apresenta ainda um ótimo artigo como prefácio, e acerta ao descartar o material de juventude, publicado de forma anônima, quando Clarice era ainda uma estudante universitária precisando trabalhar para se manter. Senti falta, sim, da reprodução de algumas fotos, compensada pelo cuidado em assinalar mudanças em republicações.

Em grande parte realizada de forma presencial, a seleção de 83 entrevistas, 35 delas inéditas em livro, recobre as revistas Manchete (1968-69) e Fatos & Fotos (1976-77), e o Jornal do Brasil (1967-73) e dá acesso a personalidades da vida política, artística, intelectual e cultural brasileira. No conjunto, é uma boa provocação para quem quer fugir de fórmulas batidas ou saber mais sobre a escritora que promete uma coisa, oferece o triplo e nem sempre o que o leitor espera. O que é ótimo, todos saem ganhando.

O jeito como conduz as conversas tem afinidades com o modo como escreve e observa a vida, a começar pela perturbadora percepção e expressão do mundo, que marca a sua literatura. Desde o livro de estreia, houve reações eloquentes a Perto do coração selvagem (1944), que ia na contramão da voga regionalista. A mistura de argúcia, delicadeza, força poética, inflexão filosófica e enredo não linear não se encaixava em rótulos. Foram acionados autores como Virginia Woolf, Joyce, Proust e Sartre para servirem de guias. Mas a vocação para desafiar e exceder expectativas se repete livro a livro e o jogo se inverte: ela é que passa a ser o eixo da comparação.

Conforme prenunciaram os críticos Antônio Candido e Benedito Nunes, estava em curso um projeto literário revolucionário marcado pela errância na linguagem e ousadia em desbravar bastidores da vida cotidiana e sentimentos controversos. Mesmo contos estruturalmente mais convencionais (Laços de família, 1960) estão entre as melhores narrativas curtas do mundo, pela profundidade, coragem, ternura e ironia, ao exporem dilemas humanos em situações banais.

Um divertido e aflitivo relato de Humberto Werneck demonstra a convicção da escritora sobre o campo literário: é um território para expandir formas e implodir conceitos. De última hora, o jovem jornalista havia sido incumbido de entrevistá-la pelo Suplemento Literário de Minas Gerais, sobre o recém-lançado A paixão segundo G.H.. Paralisado diante daquela mulher “belíssima, mas irascível, parecia um cacto, e tinha uma voz rascante”, iniciou a abordagem com a frase de alguém sobre o livro: “A paixão segundo G.H., não sendo um romance…”. Clarice cortou, fulminante: “COMO não é um romance?”, “petrificando o aprendiz de repórter”. Fato é que, em referência a algumas produções escritas, ela impôs a leitores e críticos o termo “texto”, imune a categorizações rígidas. Pego a deixa e proponho adiante a expressão entrevista-ensaio para dar conta dessas conversas claricianas.

À moda de Clarice

Como entrevistada, Clarice se mostra muitas vezes ranzinza e arredia; como entrevistadora, o clima é outro – exceto se não simpatiza com o entrevistado ou se a conversa não flui; aí demonstra irritação e mau humor. Chega a criar embaraços. No rol dos convidados, há nomes impostos pela redação por razões políticas ou midiáticas, e não raro ela exprime seu incômodo ou desagrado de forma veemente e sarcástica. “É fogo entrevistar pessoas que têm o Poder.” Em plena ditadura, encara a esposa de um dos mais cruéis ditadores do país, Yolanda Costa e Silva (sobre quem, numa carta, comenta: “nem dá para ser uma primeira-dama”). De chofre, indaga: “qual o seu conceito de revolução?”. Às vezes perguntas “rebaixam” entrevistadas fúteis ou esposas de políticos de ocasião: cuidados com a casa, comida preferida dos “maridos” etc. Num caso extremo, talvez por circunstância amarga (viria a morrer de câncer dois meses depois) desmonta sem concessões a pintora Flora de Morgan-Snell, a quem batiza de “Boneca internacional”. Da elite carioca, casada com conde francês e personagem de colunas sociais, é alvo de abundantes superlativos e advérbios sarcásticos.

Mas o lote maior é composto de amigos, artistas e conhecidos de diversas áreas de atuação, que cultivavam uma admiração mútua, como Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Nelson Rodrigues, Rubem Braga, Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Tarcísio Meira, Tônia Carrero, “Xico Buark” (sic), grafia que ela rouba a Millôr Fernandes, muitos artistas plásticos, alguns cientistas, e pessoas com quem tem laços históricos pela origem judaica e condição de exílio (Carlos Scliar, a quem entrevista três vezes; Fayga Ostrower, duas vezes; Mário Schenberg; Abraham Akerman etc.).

A qualidade do material, segundo Williams, se deve a três tipos de aporte: biográfico, pela manifestação de opiniões pessoais, inclusive políticas; jornalístico, pelo estilo e pela escolha da maioria dos entrevistados; e artístico, pelos comentários sobre criação. Parto daí, para fazer correlações entre a personalidade literária e o modo de entrevistar. Mesmo sem pretender um padrão (seria anticlariciano), corro o risco de sugerir algo como um método de leitura e escrita subentendido nas conversas.

A sua abordagem, que deduzimos pelo relato de cada encontro, carrega experiências de leitura e de vida. Não condiz com a apuração factual jornalística, em que o entrevistado muitas vezes anônimo é “fonte de informação”. Mas tem algo da pegada psicanalítica e, também, etnográfica, pela dinâmica entre os protagonistas; e tem tudo a ver com a prosa ficcional. Essas pistas é que me levam a criar a expressão entrevista-ensaio para melhor traduzir a atuação peculiar de Clarice neste campo. Explico adiante, com anotações sobre a construção do texto e o que sugere a respeito da condução da entrevista. Primeiro, limpo o terreno.

Ensaio

Imparcialidade, neutralidade e objetividade – estes princípios marciais que o jornalismo brasileiro bebeu da imprensa norte-americana são acionados na velocidade da rotina das redações, mas não combinam com o gênero entrevista. Menos ainda para a personalidade complexa de Clarice Lispector, mesmo se preparando previamente, elaborando questões individualizadas: chama de “desafio de viola” a conversa com Carlinhos de Oliveira e de “diálogo do gênero ginasial” o papo com Jardel Filho.

A forma em que transcorreram, ela participando da escolha de entrevistados, favorece o approach mais etnográfico, nos termos propostos pelo antropólogo Roberto DaMatta. Para uma boa conexão com o entrevistado, é preciso transformar o familiar em exótico e o exótico, em familiar. Ou seja, para instaurar uma troca mais verdadeira com alguém muito próximo, o entrevistador deve se distanciar, adotar certa impessoalidade, tornar exótico; na direção oposta, sendo um universo muito diferente do seu, deve quebrar o gelo, desarmar e construir pontes. Ela conhece o riscado, como indica em “Encarnação involuntária”: “Às vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi, e tenho algum tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-la…”. No papo com Bruno Hermanny, campeão mundial de pesca submarina, conclui: “Embora em campos diferentes, ambos somos mergulhadores”.

Por fim, íntima da seara psíquica e rodeada de psicanalistas (Inês Besouchet, Jacob David Azulay e Hélio Pellegrino), sintoniza com facilidade a realidade sensorial e psíquica. Mais do que isso: incorpora o que a psicanálise tem como fundamental na fase da entrevista, segundo o argentino Etchegoyen: é a “visão” entre duas ou mais pessoas, reservada para um encontro especial, não regular. De fato, a cada (des)encontro, ela faz leituras gestálticas (“epifânicas”, para alguns) da pessoa. Poucos traços e linhas e muita profundidade.

Pelo que se lê, dá para deduzir que as entrevistas tendem a seguir fundamentos da prosa ensaística. Por definição, o ensaio é um espaço reflexivo, descompromissado de verdades ou declarações definitivas (“Sou alguém em constante construção”.). A entrevistadora não entrega de bandeja sua personagem. Deixa rolar um diálogo aberto, fluido, por vezes tenso, e opera por aproximações e sondagens. Esta ação especulativa e interpretativa permite e demanda riscos, cria uma via de mão dupla, um ambiente de troca. Entrevistados se transformam em entrevistadores. Às vezes, ela cede; às vezes, dá limites. E às vezes incorpora quem não foi escalado: enquanto aguarda Glória Magadan, aproveita para entrevistar e descrever a secretária da novelista.

Na transcrição dos diálogos e na descrição do ambiente, repercute no texto escrito o ambiente vivencial com os entrevistados e nós, leitores, somos instados a indagar e compartilhar sentimentos, intuições, pensamentos (in)certezas e contradições. Ela brinca, por exemplo: “Você sabe o que uma famosa escritora disse para a outra? Se não sabe, leia o que Clarice Lispector perguntou e Lygia Fagundes Teles respondeu. Mas o final dessa conversa poderá ser na Academia.”. Ou: “O papo que você sempre quis ler entre um escritor (difícil) e um pintor (caladão) está nesta entrevista”, sobre ela e Iberê Camargo.

Clarice encena o vivido, com impressões pessoais, e admite o desvelamento mútuo, para a jornalista Isa Cambará: “Me expus nessas entrevistas e consegui assim captar a confiança dos meus entrevistados a ponto de eles próprios se exporem”. Só que é mais do que um jogo. A pauta é variada e algumas perguntas se repetem, mas de formas e maneiras diferentes, de modo a criar uma perturbação que não raro instala um silêncio de intimidade. São como armadilhas para desarmar. A ela mesma, inclusive. Afinal, quem, com franqueza, consegue responder na lata: “Qual é a coisa mais importante do mundo?”, “Qual é a coisa mais importante para uma pessoa como indivíduo?” e “O que é o amor?”. Clarice não se faz de rogada e reproduz os silêncios, em pausas entre as transcrições ou na referência à circunstância de introspecção que para ela é o suprassumo da intimidade. “Ficamos em grande silêncio. Provavelmente mergulhadas ambas nas nossas vidas mútuas”, comenta, ao lado da pintora Djanira. E pede a Carlos Scliar: “Fale do Silêncio de sua casa e do que ela lhe dá”.

Ensaiar tem por finalidade a transformação ética do próprio autor. Assim como pede a Carybé para ser considerada também uma amiga dele, desmascara seus próprios preconceitos, como na conversa com a socialite Thereza Souza Campos, sobre quem, ao final, admite ter tido “grande simpatia”. De outro lado, deixa transparecer frustrações, como o registro da recepção distante e lacônica do poeta Pablo Neruda.

As condições de trabalho criam uma zona de conforto para chegar a este resultado. Tanto as duas revistas de entretenimento, que cobriam eventos culturais e políticos internacionais, quanto o jornal diário de prestígio junto à intelectualidade trazem um leitor implícito familiar à escritora. Além disso, o convite foi mediado pelo amigo Alberto Dines e ela teve a liberdade de elencar a maioria dos convidados, sentindo-se resguardada e bem-considerada. A entidade Clarice Lispector tem as rédeas nas mãos para divagar.

O modo de apresentar o personagem entrevistado e dele se  acercar traz o carimbo personalíssimo da ficcionista Clarice, que elabora uma didática de leitura e escuta, movida por uma intranquila curiosidade. É dela a frase: “Sou tudo que não tem explicação”. Na envergadura filosófica herdada de Sócrates, dos sábios talmúdicos, de Spinoza e da ciência, ela escreve na crônica “Sou uma pergunta”, sufocada de indagações, equilibrando-se entre o espanto, o patético, o engraçado e o óbvio: “Quem fez a primeira pergunta?”, “Por que se lê?”, “Por que minto?”, “Por que hoje é sábado?” etc. Esta mesma atitude alavanca muitos diálogos com entrevistados.

“Entre-vista”

A lente de aumento que a ficcionista lança sobre suas personagens fez com que Gilda de Mello e Souza chamasse de “literatura míope” a ficção de Clarice. Também a repórter Clarice busca o que não é perceptível a olho nu e literalmente se faz de corpo presente. Dispensa o equipamento eletrônico e anota à mão, ao preço de ter descartado trabalhos já realizados, pela dificuldade em decifrar a própria caligrafia.

A perquirição, mais do que a indagação, que movimenta Joana, sua primeira protagonista, se processa de acordo com um movimento felino. Isto possibilita escandir o significado de palavras “elementares”, como “bondade”, de que a autora abusa para apreender as pessoas. Por contraste, revela o quanto o significado muda, conforme a voz no comando. Para a mulher do general, a televisão educativa deve apresentar programas “bons” e “limpos”. A resposta vem na entrevista com Pedro Bloch. Clarice afirma “bondade sem inteligência não é eficaz” e satiriza quem reclama da falta de amor no mundo, “sem mover uma palha para isso...”.

Daí, mais importante do que ver, é o entrever. Daí, é bom indagar por que tantos insistem, aqui mesmo no Brasil, em apresentá-la como ucraniana, e não como brasileira? Na época em que nasceu, a Ucrânia não quis os judeus. Mandou matá-los a rodo. A própria Clarice se apresenta como brasileira e lutou por isso. Uma lição muitas vezes esquecida nas agendas de jornalistas e de escritores é que uma entrevista tem o “ver” e o “entre”. Ou como indaga, afirmando, G.H.: “O que é uma janela senão o ar emoldurado por esquadrias?”