Na Bienal, Mary del Priore fala sobre a difícil história da velhice

Autora que participa nesta quinta da 15ªBienal do Internacional do Livro de Pernambuco vai comentar seu livro História da Velhice no Brasil

Com centenas de livros publicados, Mary del Priore fala, a partir das 19h, sobre Uma História da Velhice no Brasil na Bienal Internacional do livro de PE
Com centenas de livros publicados, Mary del Priore fala, a partir das 19h, sobre Uma História da Velhice no Brasil na Bienal Internacional do livro de PE

Nesta quinta, 9,  a partir das 19h, acontecerá um dos pontos altos da 15ª Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, que contará com a presença da historiadora Mary del Priore. Na ocasião.  ela vai explanar sobre seu livro Uma história da velhice no Brasil, que esclarece o que, de certa forma, já era imaginado: em quase todos os períodos do mundo ocidental, ser velho foi um estigma. Especialmente na Idade Média e na Renascença.

No Brasil, uma trégua foi dada aos idosos no Século 19. Neste período, jovens faziam questão de usar casaca e barba, para parecer mais velhos. Os homens de meia idade eram respeitados e ouvidos.  Foi uma das poucas épocas em que ter mais idade era sinônimo de sabedoria e autoridade.

Mas no que concerne ao mundo ocidental, foi uma exceção. Mary del Priore afirma, ainda, que durante a realização do trabalho, percebeu que “a velhice foi silenciada ao longo da história. Era uma fase associada à inutilidade, ao pecado, ao abandono. A sociedade só passou a enxergar os idosos quando eles passaram a reivindicar espaço.” E alerta para um problema a ser pensado, com celeridade, por toda sociedade: a morte assistida.

“Países na Europa, América Latina e vários estados americanos já propõem uma legislação para que os velhos tenham liberdade de escolher como desejam terminar suas vidas. Este será o tema dos próximos anos.”

Índios

O livro escrito por Mary, tem foco principalmente no Brasil, mostrando como se desenvolveu a relação com os idosos e com a morte desde os anos 1500 até os dias atuais. Mas também analisa o conceito de morte e velhice em várias épocas distintas, revelando que  o olhar dos mais jovens nunca foi favorável aos idosos.

Entre muitos exemplos, Mary mostra o ano de 1549, quando Tomé de Souza trouxe mil pessoas - degredados, colonos pobres e fidalgos do governo - para desbravar a Bahia. A expectativa de vida delas era ínfima: 21 anos. Quem não morresse  por acidente, violência ou envenenamento poderia até viver quase tanto quanto os homens de hoje. Mas era praticamente improvável.

“A instabilidade e a precariedade do cotidiano se encarregaram de torcê-los, triturá-los e de quebrá-los. O mundo era cruel, e a morte batia à porta, não deixando quase ninguém chegar a ter cabelos brancos. Quem partia nas entradas e bandeiras sabia de antemão que podia não voltar… Retratos dessas primeiras velhices? Raros”

Velhos podem não ter deixado rastros, mas sabiam bem o que era o peso da velhice. No século XVI, a ideia da decrepitude do corpo provocada pelo tempo era dominante entre os europeus. Se na Idade Média menosprezava-se o “farrapo humano” no qual a idade transformava o corpo, no Renascimento, enquanto se exaltava a beleza do jovem, piorava a opinião sobre o ser envelhecido. “A feiura do velho parecia ainda mais odiosa.”

“Mas quem eram os velhos? Quanto tempo era preciso viver para atingir tal condição?”. O livro afirma que as primeiras tentativas de definir fases da vida remontam à Grécia Clássica. E que segundo especialistas da época, a velhice chegava por volta dos 50 anos. Na Idade Média,  pesquisadores tentavam ser mais precisos e a estimavam entre os 45 e os 60. Nos anos 1500, o médico judeu Amato Lusitano - foi até mais condescendente e lúcido - registrou em Centúrias Medicinais, publicadas em 1551, os seguintes dados: a velhice chegava aos 60 anos, mas não significava, obrigatoriamente, decrepitude ou degradação física. Um olhar raro.

Enquanto Amato trabalhava em Portugal, pesquisadores que chegavam à América se depararam com o que consideraram o “paraíso”. E os viajantes acreditavam ter chegado ao Éden não apenas pelas belíssimas paisagens, mas pelo vigor dos seus habitantes. No Peru, não era a fonte de juventude que fazia milagres, mas um sistema social bem organizado, que funcionava como uma espécie de INSS, oferecendo aos idosos toda a assistência e segurança necessárias.

“Registros da Igreja Católica, em certos vilarejos incas, comprovam que existia uma forte proporção de centenários que fumavam, bebiam e tinham uma surpreendente atividade sexual.” , registra a historiadora.

No Brasil, jesuítas e aventureiros também se depararam com a exuberância e vitalidade dos diversos povos encontrados. Um jovem seminarista francês, Jean de Léry, no documento Viagem à Terra do Brasil conta a experiência que teve no país. E descreve os velhos indígenas homens como seres superiores.

“Mais forte, mais robustos, mais entroncados, mais bem dispostos e menos sujeitos às doenças, havendo muitos poucos coxos, disformes, aleijados ou doentios. Apesar de chegarem muitos a 120 anos (sabem contar a idade pela lunação) poucos são os que na velhice têm os cabelos brancos ou grisalhos, o que demonstra não só o bom clima da terra, mas ainda que pouco se preocupam com as coisas deste mundo.”

O teólogo associava a longevidade ao desconhecimento pelos indígenas do que “causava” o envelhecimento nas cidades europeias: “a desconfiança, a avareza, os processos e intrigas, a inveja e a ambição.” Velhos bebiam, fumavam, eram antropófagos, porém tinham atividade física e sexual, formavam um conselho informal a fim de orientar o cacique ou morubixaba. Eram respeitados e obedecidos.

Enquanto os homens eram exaltados, as mulheres foram execradas. A índia velha, com os peitos caídos, tornou-se sinônimo de índia-bruxa. Sua feiura não era um mal, era “O Mal”.

Os europeus imediatamente as taxaram de diabólicas e feiticeiras. “Mamas penduradas, caras enrugadas e disformes eram símbolos de feiura tanto moral - a heresia - quanto física - a velhice. Retratá-las a meio caminho entre realidade e ficção, por outro lado, revelava o preconceito que já existia na Europa: velhas eram consideradas bruxas.”

O cristianismo, na verdade,  não demonstrava interesse nem piedade pelos velhos. E os pregadores o condenavam. Santo Agostinho foi um deles. “Gostaríamos de poder unir a beleza com a velhice, mas tais desejos são contraditórios; se te tornas velho não espere conservar a beleza, ela fugirá da aproximação da velhice e não podemos habitar numa mesma pessoa a força da beleza com as lamentações da velhice.” Resumindo: o prolongamento da vida não era desejável. Só trazia desgostos e cansaço. E o risco de ser abandonado para não afetar o sustento da família.

Mestiços e negros

Se durante os primeiros anos da colonização do Brasil os velhos eram hostilizados, muitas vezes abandonados e excluídos da vida social, no Século XIX as coisas começaram a mudar. Foi a época, segundo Mary del Priore, em que os anciãos tiveram o ambiente mais receptivo e mais apoio da sociedade.

“A partir do início do século XIX, as cidades litorâneas prosperaram, os velhos encontravam forças na relação com os outros. Sim, na qualidade das relações sociais, como bem determinou a historiadora Kátia Queiroz Mattoso em estudos sobre a Bahia que podem ser replicados por toda parte.”, escreveu Mary del Priore.

Nessa época, a vida pública se misturava à privada, e nelas, redes de apoio mútuo suavizavam o peso da responsabilidade e da possível solidão.” A mestiçagem, já avançada, ajudava a contornar segregações e preconceitos.”

Desde a década de 1530, o Brasil começou a receber escravos africanos. Com eles veio também uma maneira de viver e ver a velhice. Ser velho, para os negros, era um dom dos deuses. Entendia-se que a pessoa devia sua longevidade ao fato de ter vivido de acordo com as leis de seus ancestrais. As velhas também ganhavam importância: quanto mais filhos tivessem parido, mas participavam das decisões das comunidades.

Os escravos mais velhos, ao chegar ao Brasil, agiam nas senzalas como pacificadores. Sua ausência elevava o nível de tensão nelas. O princípio de ancestralidade tornava o velho um ser respeitável e até venerável na sua comunidade. Fora dela, corria o risco de se tornar um inútil. Velhos escravos também passaram a aproveitar a morte dos seus senhores para comprar sua liberdade. Mas com cuidado: deixar a comunidade implicava no risco de ser abandonado.

Altos e baixos

Se até o início do império, a velhice era algo percebido apenas pelos cronistas e viajantes estrangeiros, no Século XI, de fato, tudo ia mudar. A maioria dos velhos passou a ser gentilmente suportada pela família.

Um exemplo explícito: ao redor do Imperador Dom Pedro I, considerado insensato e despreparado para governar, não faltou a presença dos mais velhos. José Bonifácio, seu principal auxiliar, já trazia os cabelos brancos. Cândido José de Araújo Viana, marquês de Sapucaí, tinha óculos e cabeça grisalha. Antônio Pereira Rebouças, também era grisalho e quase cego.

Para igualar-se a esses sábios experientes, os jovens tinham que parecer velhos. Nesse momento raro da História, a idade era sinônimo de prestígio. Ter barba era sinal de prestígio. E os jovens faziam promessas para que ela crescesse e os tornassem confiáveis.

Títulos também davam respeitabilidade equivalente a uma cabeça branca. Candidatos a eles incluíam negociantes, letrados e mestiços ricos, que seguiam à risca o figurino do “velho respeitável”:  “vestidos em sobrecasacas escuras, a caixa de rapé no bolso, batendo nos escravos e nos filhos com bengalas vindas da Índia. Para distinguir as horas que no passado eram marcadas pelos sinos, usavam relógios reluzentes, os patacões.”

“E as dentaduras?”, pergunta Mary del Priore no livro. “Quem as introduziu foi um dentista americano”. Elas eram apresentadas nos jornais, indicadas para a mastigação e digestão. Eram quase um remédio, nunca uma questão estética.

No final do século, apareceram os moços-velhos. Como explicou Gilberto Freyre, “foram aparecendo bacharéis de vinte e poucos, vinte e tantos, trinta anos, as suíças e barbas davam a impressão de idade provecta.” E foram tomando o lugar, de fato, dos velhos de verdade. Mas foi principalmente nesse século que os grandes patriarcas reuniam  a família, aglutinavam poder e garantiam as posses e o prestígio. Homens velhos ou envelhecidos pelas responsabilidades que lhes consumiam.

O Século 20 chegou, e com ele o fim de uma Era. Caiam as últimas muralhas de usos e costumes de uma sociedade patriarcal. Nesse período, médicos argumentavam: “O que é a idade? É a expressão do valor fisiológico do indivíduo.” Os anos ainda não eram o único critério.

A escritora Carolina Nabuco registrou as décadas iniciais do século XX, comentando que a Primeira Guerra Mundial deu início a outra Era.

“Sofríamos profundas mudanças nos hábitos sociais e familiares. Maior tolerância e relaxamento tomaram a sociedade. Tudo parecia contribuir para a fusão das classes e das idades. O “você” se tornou de uso corrente abolindo as diferenças de idade e posição.”, escreveu.

Gente como Carolina Nabuco foi envelhecendo junto com as mudanças. Uma velhice diferente da geração anterior. Na década de 1920, o surgimento de aposentados, que tinham proteção social, criou um novo tipo de cidadão. Eles eram diferentes dos velhos que trabalhavam até morrer. “Nem úteis, nem eficientes. Se antes eram vistos como fortes, conselheiros, sobreviventes, doravante seriam encarados como dependentes e frágeis. Rompia-se um véu. Atrás dele, a cara da nova velhice do século XX.”

E foi justamente nas primeiras décadas do Século XX que novamente ficou visível a luta do novo contra o velho. Do hoje contra o ontem. O movimento modernista, em 1922, acelerou esse processo. Jovens como Mário de Andrade, Oswald de Andrade atacaram fortemente os artistas mais idosos, como Olavo Bilac, Coelho Neto, Júlia Lopes de Almeida. A ânsia por novidades e por um novo conceito estético e cultural, aceleraria a necessidade de colocar o velho, novamente, debaixo do tapete.

Felizmente, nessa época, os comportamentos familiares também se modificaram. Por volta dos anos 1940, houve uma intensificação do sentimento de família e uma tendência a aumentar a ternura entre adultos e crianças. O patriarca enrijecido do século anterior, que levantava a mão não para afagar, mas para bater, se tornava um sentimental. Nas classes médias, mais do que um incômodo, avós iriam se tornar uma ajuda. Entre os pobres, mães que criavam sozinhas os filhos tendiam a deixá-los com as avós enquanto trabalhavam. Ninguém ousaria chamar seus avós de velhos gagás.

Mas o vai e vem do status dos velhos sempre caminhou ao sabor das novidades. Na década de 1960, com a deposição de João Goulart pelos militares, os papéis novamente se inverteram. Um homem de 43 anos seria substituído por generais sexagenários. A idade voltaria a ser um componente do poder.

Apáticos em relação à política e animados com as conquistas econômicas trazidas na década de 1970, os idosos se beneficiaram com mais oportunidades de consumo e mobilidade social. Nessa época, a estrutura familiar ainda era, frequentemente, multigeracional. As pessoas idosas desempenhavam papel ativo na educação e formação de crianças e jovens.

Por mais que, nesse período, a sociedade tivesse uma posição respeitosa da pessoa idosa como fonte de sabedoria e experiência, o fato é que a velhice novamente se tornou sinônimo de vulnerabilidade, com poucos direitos e assistência limitada de saúde e prevenção por parte do Estado, cujo sistema de previdência social era incipiente. A participação social dos velhos era restrita, abrigos eram incomuns, pois acreditava-se que cabia à família o apoio e o cuidado de seus velhos.

Mas com o passar das décadas o preconceito começou a se escancarar. Nos anos 1990, o presidente Fernando Henrique Cardoso chamaria quem se aposentava com menos de 50 anos de “vagabundos”. Era uma crítica, segundo ele, aos marajás do Judiciário, Legislativo e Executivo estaduais e municipais. Mas os velhinhos sentiram o golpe.

No contexto de empobrecimento do país, que viveu uma pequena onda de crescimento de renda nos anos 1970, os anos 1980 vieram com altos índices de inflação e de caos. E numa sociedade mais pobre, os velhos se tornaram um peso. E começou a se espalhar o “etarismo”, preconceito de idade contra velhice, algo que permanece forte até hoje, uma espécie de racismo com quem consegue driblar o tempo.

Além das sucessivas crises econômicas, nas últimas décadas, principalmente com o advento da contracultura, o fosso das gerações enfraqueceu a imagem da velhice. Elas transformaram o velho num ser dispendioso, careta, pouco confiável.

“Não era só a diferença de anos, ideias e hábitos, mas a sensação de que não se podia mais confiar nos velhos. Eles não eram mais esteio de nada e eram culpados de tudo: a crise de energia, a volta da inflação, o regime de exceção, a censura nas artes e na cultura, tudo, enfim, que sufocava o país.”, escreveu Mary del Priore.

Nos anos 1980, no Brasil, apareceu outra categoria: a terceira idade, para designar os seniores ricos, executivos, com um estilo de vida mais sofisticado e agitado. A antropóloga Clarice Peixoto escreveu que, a partir daí, o velho passou a ser usado para as camadas populares. E idoso, mais respeitoso, para as camadas médias e superiores. “A classe média aposentada, constituída por “jovens senhores”, adotou então o rótulo terceira idade, ajudando a difundir uma imagem nova da velhice…Com o dinheiro, membros da terceira idade passaram a ser alvos preferidos da “indústria de envelhecimento positivo”, das academias de ginástica às viagens, dos restaurantes aos carros, dos remédios aos aparelhos ortopédicos e à roupa, do consumo do lazer ao prazer.”

Mary Del Priore lembra que esse fenômeno aconteceu devido a uma reação inédita dos próprios velhos. “Em 1987, federações e associações que defendiam os interesses dos idosos se organizaram para participar da Constituinte de 1988…E a vitória de suas demandas ficou conhecida como “a revolta dos velhinhos”.

Cirurgias e pesquisas

Apesar do preconceito da juventude hippie, roqueira e cabeluda - ou exatamente por ele -  as velhas entraram na mira dos médicos nos anos 1970. Aos 40 anos, ninguém mais tinha o rostinho de 20. E eis que a mulher de meados do século XX começou a se sentir “marginalizada” quando seus atributos físicos já não eram mais os de antes.

A historiadora Denise Bernuzzi de Sant`Anna conta que a saga das cirurgias plásticas teriam começado antes. “A plástica passou a ser apregoada nas revistas femininas desde os anos 1960, como solução para as que emagreciam muito rápido. Na década seguinte, passou a se falar de levantamento facial, em prótese mamária e em rejuvenescimento. A evolução da expectativa de vida convidava as pessoas a se manter fisicamente atraentes depois dos 50 anos, estratégia que melhoraria a posição de cada um, na concorrência com os mais jovens.”

Atualmente, o IBGE afirma que até 2030 o Brasil terá mais pessoas acima dos 60 do que crianças até 14 anos. Diante disso, multiplicam-se os doutores e especialistas em rejuvenescimento.

“Durante quase quinhentos anos, velhos eram apenas sobreviventes. A ninguém importava quantos anos tinham. No início do século XX, passaram a ser trintenários. Em 1970, eram os tais marginais de 40 anos. Em 2024, chegamos aos sexagenários, curiosamente, a mesma idade com que Amato Luciano, no Renascimento português, definia seus velhos. E para falar deles novos conceitos não faltam. A socióloga francesa Rose Marie Lagrave acabou de inventar um que achei ótimo: trans-idades…Pois há velhos que se sentem jovens e vice-versa. Afinal, quem envelhece não se sente envelhecer.”, diz Mary del Priore.

Ela ressalta, ainda, que o economista José Pastore, do FEA/USP vê esse envelhecimento da população como uma questão a ser ainda solucionada. “Viver mais e melhor é desejo de todos. Mas isso é um enorme desafio para países como o Brasil, que envelhecem antes de ficarem ricos.”