Mary del Priore: uma pesquisadora que não complica a História

Historiadora participou ontem da palestra na Bienal e, como sempre, mostrou que descomplicar, ser natural e se comunicar de uma forma menos acadêmica, é a melhor forma de informar o grande público

A historiadora fez palestra nesta quinta, dia 9, na Bienal. Sua facilidade em facilitar a compreensão do público, torna-a uma das maiores difusoras da História no Brasil
A historiadora fez palestra nesta quinta, dia 9, na Bienal. Sua facilidade em facilitar a compreensão do público, torna-a uma das maiores difusoras da História no Brasil

Com mais de 50 livros publicados nas duas últimas décadas, a historiadora Mary del Priore conseguiu uma façanha que poucos profissionais da sua área conseguiram. Tratar de temas sensíveis, como a trajetória de mulheres, crianças, escravizados,nobres no período colonial e imperial, e agora idosos, de uma forma compreensível, fazendo com que todos possam entender e se interessar pelas narrativas que ela apresenta. Mary, portanto, tirou a História das academias e levou-a para a sala de casa das pessoas. Sem fazer concessões à qualidade e riqueza dos seus trabalhos.

Na quinta-feira à noite, dia 9.ela participou de um painel na 15ª Bienal Internacional do Livro em Pernambuco sobre seu último livro, Uma história da velhice no Brasil, lançado este ano,  que se tornou um sucesso de público, tendo em vista o envelhecimento da população brasileira. Em conversa com a Revista Pernambuco, a historiadora falou do seu trabalho, projetos e da sua admiração por Gilberto Freyre e pelos escritores nordestinos. Confira abaixo.

Entrevista

Você escreveu sobre a velhice no Brasil, mas vocês têm outros livros, sobre as crianças, sobre as mulheres, sobre os escravizados. Seus livros têm um tom leve, chegam a ser bem-humorados. Como você  consegue tratar dessa forma temas tão pesados?
— 
Olha, eu acho que o sofrimento são experiências tão individuais, porque se nós formos vitimizar todos os protagonistas que fizeram parte da nossa história, eu acho que nós mexemos muito com a autoestima do povo brasileiro. Eu sempre procurei mostrar justamente nessa variedade de personagens que aparecem, homens, mulheres, das elites, das classes médias que sempre tivemos, entre escravizados, mas também das classes pobres, formas de resistência.

Resistência ao sofrimento. O sofrimento existe, ele faz parte da condição humana. E eu acho que o brasileiro aprendeu a resistir. Quer dizer, eu estou mais interessada em contar. Em contar a história da resistência do que do sofrimento. Eu acho que nós temos que escapar desse viés de estarmos o tempo todo fazendo uma vitimologia da nossa cultura.

Nossa cultura é vasta, é complexa, ela é mestiça, insisto sempre nisso. E nós temos muito o que aprender com as experiências de dor ou de alegria

Os seus livros têm uma coisa que os diferenciam muito dos outros historiadores. Você tem uma linguagem fácil. Ao mesmo tempo, leve e às vezes até divertida,mas sempre embasada, inovadora, porque você é uma historiadora acurada. Como você consegue isso?
— 
Sendo uma menina muito solitária e lendo muito desde muito pequena. Eu cresci numa casa onde havia uma grande biblioteca onde nada era proibido. Então eu comecei a ler muito cedo, eu acho que isso me deu um vocabulário bastante amplo.

E outra coisa, sempre gostei de estar no meio de gente mais velha do que eu ouvindo essas pessoas falarem. E era uma época em que se falava um português maravilhoso, porque hoje você liga a televisão e você vê os jornalistas falando errado o português. Então eu acho que esse domínio do vocabulário é muito positivo.

Eu quis trazer a poesia para os meus textos. Eu faço questão de que eles sejam poéticos, de que eles sejam líricos, de que eles tenham imagens. Eu acho que isso faz parte do convite que eu quero fazer para o leitor me acompanhar na minha história.

Você é contra jornalistas escreverem livros de História, como grande parte dos historiadores?
— 
Ao contrário, sempre dei a maior força. Peninha, Eduardo Bueno, é um queridíssimo amigo meu. Rui Castro, uma pessoa que eu respeito, admiro e quero muito bem. Sempre dei a maior força para tudo isso. Acho que nós, historiadores, temos que ter a humildade de aprender com o jornalista a escrever.

Mary, como é que você consegue produzir tantos livros?
— 
Eu vivo na roça, crio galinha. E quando estou na Europa, estou sempre no inverno. Os invernos são muito rigorosos, então eu fico muito em casa. E a minha cabeça é um caldeirão de ideias. E eu convivo muito com arquivos, com outras pesquisas.Então daí brotam ideias.

Houve uma época em que o sociólogo Gilberto Freyre chegou a ser muito criticado pelos historiadores. E hoje se observa um retorno à figura de Freire. Ou seja, chegou-se a conclusão que Freire foi capaz de fazer uma das melhores leituras da sociedade brasileira. Você concorda com essa retomada das ideias dele?
— 
Eu me tornei historiadora lendo Casa Grande e Senzala, Sobrados e Mucambos e Ordem e Progresso. Eu sou apaixonada por Gilberto Freyre. Sempre fui. Todo aniversário de Gilberto eu ligo para Sônia Freire, que se tornou minha amiga. Eu ganhei duas vezes o prêmio da Fundação Joaquim Nabuco.

E eu dedico todo o meu trabalho a ele. Ele é citado em todos os meus livros. Eu acho que Freyre é um inspirador. Nós não temos que pensar só naquilo que ele disse modelado por uma época. Porque é isso. Ele é fruto do seu tempo, como eu sou fruto do meu. Mas ignorar a pesquisa que esse homem fez, é impossível.

As notas do rodapé que inspiraram milhares de teses. O conhecimento, a vivência que ele tinha do Brasil. E mais, trazer o Nordeste para o Sudeste. O Sudeste vive de salto alto. O Sudeste acha que se basta. Isso é um equívoco.

A literatura feita no Nordeste é a melhor desse país. E Gilberto abre para tudo isso. Porque ele era amigo de Zé Lins (o escritor José Lins do Rêgo). Ele conviveu com os grandes, Oliveira Lima (historiador). Essa turma toda de grandes pensadores é daqui. Eles têm que continuar nos inspirando.

Atualmente, alguns historiadores e sociólogos vêm fazendo críticas a Sérgio Buarque de Holanda, afirmando que Raízes do Brasil serviu apenas aos paulistas. Você concorda com as críticas que são feitas? Ou você acha que são uma bobagem?
— 
Olha, eu vou dizer uma coisa. Eu acho que é uma falta tão grande do que fazer. As pessoas precisam se perguntar por que não está se fazendo literatura séria no Brasil. Porque outro dia eu ouvi de um grande escritor uma frase que nós não temos literatura no Brasil. Nós temos livros de ficção. E isso fala muito da falta de criatividade e profundidade com que é feita a literatura no Brasil.

Criticar o Sérgio Buarque realmente é uma falta do que fazer. Um homem exponencialmente culto. Viveu na Alemanha. Se inspirou, sim, em muitos autores alemães para fazer, por exemplo, Visão do Paraíso, que eram trabalhos que já estavam sendo feitos na Europa na sua época. 

Mas e daí? Ninguém é uma ilha. Todos nós nos inspiramos outrem. E eu acho que isso é uma perda de tempo. Total. Acho que as pessoas deveriam estar mais preocupadas com a qualidade da literatura que está se fazendo aqui.

Além de Uma história da velhice no Brasil você está fazendo agora uma série de livros menores, sobre temas como o ciclo de ouro em Minas, a descoberta do Novo Mundo.. Isso está dirigido para um segmento mais jovem?
— 
Olha, não foi nem isso. Esses livros nasceram de um convite que me foi feito para fazer audiolivros. Os audiolivros foram feitos. A editora Record viu, gostou tanto que resolveu publicar.

Então, isso eu escrevi anos atrás. Mas é justamente uma experiência de unir a musicalidade, unir um contexto poético a uma história da história do Brasil. E foi isso que eu fiz.

O que falta você escrever mesmo, depois de tantos temas e personagens que você ja abordou?
— 
Ah, meu amor, tanta coisa. Qual o tema que você pensa em escrever? No momento, eu estou muito impressionada com o desamor do brasileiro pelo seu passado, pela sua história. Eu estou assim. Esse livro da Velhice está sendo um sucesso porque o Brasil está envelhecendo.

Mas eu não quero correr atrás de temas de sucesso. Eu quero correr atrás de temas de História. Eu tenho que achar no arquivo alguém, algum mortinho, como eu digo, algum morto lá que queira conversar comigo. 

Estou chegando da Academia Pernambucana de Letras. Que lugar maravilhoso. Os pernambucanos têm que se orgulhar desse lugar e recuperar esse lugar, se apropriar desse lugar. Tem muita pegada, viu?