O 67º Prêmio Jabuti permitiu uma união entre som, escrita e experimentação narrativa. O escritor e guitarrista dos Titãs, Tony Bellotto, foi o vencedor da categoria Romance Literário com "Vento em setembro", primeira incursão feita pelo autor em um território que extrapolou o romance policial propriamente dito. O prêmio foi entregue na segunda-feira, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
A vitória de Tony Bellotto surpreendeu a muitos que apostaram na escolha de Chico Buarque, Marcelino Freire, Alberto Mussa ou Jeferson Tenório, autores mais cotados para a mesma categoria. Até o próprio Tony ficou surpreso, apesar da boa aceitação dos seus livros, não esperava ser escolhido.
“Sinceramente, eu não esperava essa repercussão, porque com os meus livros - eu já tenho muitos publicados, são 11 ou 12 romances - não tenho muita expectativa de altas vendagens. Nunca fui um best-seller nesse sentido, e também nunca tive um reconhecimento de crítica muito grande. Tive um reconhecimento que me satisfaz muito. Os críticos, em geral, elogiam meus livros, saem boas resenhas nos jornais e tudo. Mas eu não esperava que esse livro fosse ser tão reconhecido assim... Aí quando ganhei ontem, eu me senti ganhando o Nobel de Literatura. Realmente eu não esperava essa repercussão. E estou muito, muito feliz.”
Bellotto, que desde os anos 1990 transita entre os palcos do rock e as páginas da ficção oferece, em "Vento em setembro", um cruzamento entre a linguagem urbana, a crônica social e o thriller psicológico.
Sua carreira literária já incluía obras como "Dom" (2020) e a série "Bellini", revelando um autor que se recusa a ficar restrito a um único gênero ou formato. O reconhecimento do Jabuti não apenas marca uma consolidação da trajetória literária de Bellotto. Representa também uma sinalização de que o híbrido entre músico-autor e romancista pode encontrar acolhida no campo da literatura “séria”. De certa forma, ele encarna o espírito do século XXI: alguém que não se satisfaz com a “etiqueta única”.
Vento em setembro
O livro "Vento em setembro" (2024) é um romance autobiográfico e de formação que mistura ficção e memória, mergulhando nas origens do próprio autor. A narrativa acompanha Toni, um jovem de classe média de São Paulo nos anos 1970, em plena ditadura militar. O garoto vive o despertar da adolescência, do desejo e da rebeldia, ao mesmo tempo em que descobre o poder transformador da música, da literatura e da amizade. A história fala sobre as primeiras bandas, o início do rock brasileiro, e também sobre a perda da inocência num país sufocado pela repressão.
Bellotto escreve com uma prosa sensível e nostálgica, evocando lembranças do Brasil setentista, dos bailes de garagem, dos vinis, da censura e do sentimento de quem sonhava com liberdade. Ao mesmo tempo, o livro reflete sobre o ato de lembrar — o passado visto de longe, com afeto e ironia.
Abaixo, confira a entrevista de Tony Bellotto à Pernambuco
PERNAMBUCO - O Prêmio Jabuti muda sua responsabilidade com a escrita?Dá mais liberdade, responsabilidade ou pressão?
TONY BELLOTTO - Olha, sinceramente, eu acho que esse prêmio, ele me inspira a escrever mais, sabe? Não sinto, assim, que aumente uma pressão ou uma responsabilidade... Logo que eu soube que fui indicado aos finalistas, já me deu coceira de escrever, eu estou aqui já terminando um novo romance, eu fui direto ali escrever. Então, mais que responsabilidade ou pressão, ele me motiva, é um prêmio que me dá inspiração, essa é a palavra.
PERNAMBUCO - Seu novo livro traz uma temática que cruza dois tempos. Os anos 1979 e os tempos atuais. Existe algo de autobiográfico nele?
TONY BELLOTTO - Tem sim, tem muita coisa autobiográfica. Eu acho que sempre que a gente constrói os personagens coloca um pouco de si. Mais em "Vento em Setembro" foi um pouco além disso. Até eu chamo às vezes esse livro de um livro psicanalítico. Eu estava fazendo um processo de psicanálise muito intenso enquanto eu escrevia e o livro, os personagens passam e vivem e se expressam em lugares e épocas em que eu estava lá. Então, a história toda que se passa nos anos 70 ali em Assis, no interior do estado de São Paulo, lugar onde eu morei por muito tempo. A parte da trama que se passa em Santos, também no litoral de São Paulo, onde eu estudei, fiz uns anos de faculdade de arquitetura lá, antes de me dedicar totalmente à música. Então eu acho que é um livro que tem, sim, alguma coisa autobiográfica, se bem que todos os livros têm, né, sempre dá para achar, mas esse aqui localiza algumas algumas passagens, que são muito de coisas que eu vivi ou observei.
PERNAMBUCO - Apesar de não ser um policial, não deixa de ser um livro que contém suspense. Isso é inevitável na sua escrita?
TONY BELLOTTO - Eu acho que sim, eu acho que eu tenho muito forte em mim como escritor essa formação de escritor de romance policial. Romance policial no sentido mais amplo, no sentido do Edgar Allan Poe, que é o cara que inventou essa coisa toda de romance policial. Para mim é interessante, ao escrever, imaginar que será também interessante ao leitor, ao ler, porque criar é sempre um enigma, né?
Nos meus livros, geralmente tem assassinatos, tem crimes, e mesmo quando não tem, existe um enigma a ser decifrado. Eu acho isso muito importante, me move muito a escrever em cima de algo que tem que ser decifrado. Então, eu acho que fica assim, apesar de não ser um policial clássico, um livro de história de detetive, ele fica na prateleira ali dos livros de suspense. Eu acho que o “Vento em Setembro” é um thriller psicológico.
PERNAMBUCO - Você sempre transitou entre o romance policial e o psicológico. Como é equilibrar o suspense com a densidade literária?
TONY BELLOTTO - Eu acho que existem livros bons e livros ruins, não existe um gênero bom e um gênero ruim, então existem livros policiais que são obras-primas da literatura, livros do Dashell Hammett, do Rubem Fonseca, do Raymond Chandler, existem livros psicológicos, livros que tentam ser muito literários, que são ruins também, então o gênero não me interessa tanto. Até no começo da carreira, quando eu lancei "Bellini e Esfinge", depois "Bellini e o Demônio", eu fiquei com um certo receio de me tornar um autor que fosse refém de um personagem, ter sempre que escrever histórias de detetives, ser só esse tipo de literatura que as pessoas iriam esperar de mim. Então desde o início eu comecei a variar, para que as pessoas percebessem que eu não queria fazer só histórias de detetives, e quem me inspirou muito nesse sentido foi o Georges Simenon, o escritor belga que foi um mestre em todos os sentidos, absolutamente um mestre de literatura. Ele fazia muitos livros policiais, o inspetor Magret dele é um dos grandes detetives da literatura universal, então eu acho que eu sempre tentei colocar a densidade literária em histórias de detetives ou não, mas acho que às vezes para as pessoas é meio difícil perceber. Às vezes as pessoas dizem, ah, é um livro policial, não é um livro policial, então eu não me importo de ser chamado de um escritor de policiais, eu até me orgulho disso, porque eu acho que essa questão do enigma me move, mas eu sou um apaixonado por literatura, e quando eu estou escrevendo um livro, é claro, eu quero fazer o livro melhor do mundo, eu estou pensando no Tolstói, estou pensando no Rubem Fonseca, nos meus ídolos, assim como quando eu estou fazendo uma música, eu quero fazer um solo igual ao do Jimi Hendrix, eu nunca vou chegar no Hendrix nem no Tolstói, mas nessas tentativas, a gente vai se descobrindo.
PERNAMBUCO - Você passou por uma fase difícil, de doença. A literatura lhe ajudou nesse processo?
TONY BELLOTTO - Olha, realmente faz mais ou menos um ano, né, eu descobri um câncer de pâncreas, é uma doença grave, eu já tinha escrito o Vento em setembro, então não podemos encontrar nada, nenhum sinal da doença no Vento em setembro, porque eu ainda não conhecia que aquela doença se desenvolvia em mim. Mas sem dúvida, eu estou escrevendo um livro novo, a literatura me ajuda muito a enfrentar esses problemas. Não só a doença, como todas as pequenas mazelas da vida cotidiana, né. Escrever e tocar... Eu estou fazendo música, estou viajando, fazendo shows com os Titãs, então a arte me ajuda muito nesse sentido, quando eu estou tocando, quando eu estou escrevendo, eu esqueço que eu tenho uma doença, eu esqueço tudo, e isso me faz muito bem. E o tratamento também da doença está muito positivo. , eu não sinto dor, eu estou podendo levar uma vida normal, fazendo tudo que eu gosto, que eu mais gosto, que é tocar música e escrever, então é dessa forma assim que eu encaro como a doença entra assim nesse processo, o processo é que entra anulando a doença assim. É uma poderosa arteterapia.
PERNAMBUCO - Você esperava a repercussão que teve seu livro?
TONY BELLOTTO - Sinceramente, eu não esperava essa repercussão, porque com os meus livros, eu já tenho muitos publicados, são 11 ou 12 romances, eu não tenho muita expectativa de altas vendagens. Nunca fui um best-seller nesse sentido, e também nunca tive um reconhecimento de crítica muito grande. Tive um reconhecimento que me satisfaz muito, assim: os críticos em geral elogiam meus livros, saem boas resenhas nos jornais e tudo. Mas eu não esperava que esse livro fosse ser tão reconhecido assim. Vento em setembro, eu achei que ia ser mais um livro que eu estava publicando.Quando ele entrou nos semifinalistas do Oceanos, eu já fiquei: poxa, caramba, o livro chegou lá entre os semifinalistas de um prêmio tão considerável. Um prêmio tão conceituado, né, que premia autores de língua portuguesa de vários países, de Portugal, países africanos e tal. e o meu editor, o Emílio, ia me mandando [notícias]. Aí ele falou: [você é] finalista do Jabuti. Daí, poxa, eu já estava realizado de ser um finalista do Jabuti, já foi algo que eu não esperava como repercussão. Quando ganhei ontem (segnda-feira), eu me senti ganhando o Nobel de Literatura. Realmente, eu não esperava essa repercussão. E estou muito, muito feliz.
Vento em setembro
Tony Belotto
Companhia das Letras
296 páginas
R$ 94,90