Mais de dez anos após o lançamento de Americanah (2014) , os leitores da escritora Chimamanda Ngozi Adichie vão poder novamente saborear um romance da autora. A contagem dos sonhos foi lançado esta semana, e traz nas suas 454 páginas, a mescla de temas que costumam seduzir os apaixonados pelas sagas da nigeriana: mulheres que buscam um lugar no mundo, que se confundem entre as tradições e a opção de mesclar os hábitos tribais com os continentais. E, em alguns casos, os sofrimentos das mais vulneráveis, para quem não existe a possibilidade de conjecturar sobre amores perdidos, profissões alternativas, dilemas emocionais, mas apenas aceitar o que vem pela frente, e sobreviver da melhor forma possível.
Diferentemente dos seus livros anteriores, especialmente Meio Sol Amarelo, cujo conteúdo é fortemente histórico, focado na criação de Biafra e no extermínio dos igbos na Nigéria dos anos 1960, A contagem dos sonhos traz uma narrativa moderna, uma Chimamanda mais preocupada com impasses e cobranças atuais, apesar da história ser sempre permeado pelas raízes ancestrais.
No novo livro, Chimamanda nos apresenta quatro personagens cujas histórias se entrelaçam, e que tem em comum - pelo menos três delas - o fato de serem nigerianas de famílias abastadas, e se sentirem pressionadas por ainda não terem se casado nem encontrado um grande amor.
No livro, sente-se a metamorfose do tempo se acoplando às personagens, que não são mais jovens buscando uma profissão ou aventuras. Em cada página é palpável a perplexidade das mulheres que se defrontam com a “maturidade” e a possibilidade da solidão. Com o temor de perder a beleza e a atenção dos homens. E principalmente, de não cumprirem o papel que é esperado pelas famílias tradicionais africanas: que sejam férteis e tenham muitos filhos.
Trama
A personagem principal, Chiamaka, ou Chia, é uma escritora de livros de viagem que vive nos Estados Unidos. A partir do recolhimento imposto pela pandemia da Covid-19, ela começa a relembrar dos relacionamentos do passado e a ponderar sobre suas escolhas. Chia lamenta o fato de não ter um parceiro e se questiona se as suas decisões não a fizeram perder a chance de estar ao lado de um grande amor.
Zikora, sua melhor amiga, é uma advogada bem-sucedida, mas que após ser traída e ter sua autoestima e vida reviradas por uma desilusão amorosa, decide levar em frente uma gravidez sem o apoio do parceiro, contando com a ajuda de quem menos esperava: a própria mãe, a pessoa que mais lhe cobrava que tivesse um casamento estável e oficial.
Omelogor, a terceira amiga, a prima ousada e franca de Chiamaka, e a mais cerebral das três garotas, é igualmente uma mulher bem sucedida, que lida com finanças, na Nigéria, mas também começa a se questionar o quanto se conhece de verdade. E passa a ser cobrada pela família - e por si própria - por não ter se casado nem ter filhos.
A quarta personagem, Kadiatou, uma criada que cuida da casa de Chia, que conseguiu escapar da extrema pobreza na Guiné, uma muçulmana que cria com orgulho a filha que conseguiu trazer para os Estados Unidos, é o oposto das três amigas: escapando da miséria e da violência, sua única preocupação é conseguir sobreviver e manter os benefícios que encontrou fora da África. Um salário razoável, uma casa razoável e educação razoável para a filha.
E aí vem o nó da questão: a história das quatro personagens se entrelaçam, mas apenas de forma superficial quando diz respeito a Kadiatou, cujos problemas estão relacionados às suas origens, ou seja: acorda a cada dia disposta a não voltar para a miséria da aldeia onde nasceu e passou boa parte da sua vida.
O entrelace dessas mulheres, portantos, se dá apenas parcialmente: as aflições que atingem o trio de amigas não se aplica à guineense pobre, cujo marido foi preso por vender drogas, que está nos Estados Unidos devido a um visto de asilo humanitário, e que se sente extremamente feliz com seu cargo de camareira num hotel de luxo e com as faxinas que faz para Chia.
A história de Kadiatou é uma narrativa à parte, com questões e aspirações bem diferentes das três outras personagens que sofrem por questões emocionais, sem um pingo de preocupação com os problemas materiais.
Desejos
Em uma nota explicativa no final do romance, a própria Chimamanda diz que o livro fala dos desejos interligados de quatro mulheres, mas reconhece que o cerne da história são as relações entre mães e filhas. Atribui essa escolha devido ao luto e à perda de sua mãe nesse período.
Mas o livro, na verdade, é perpassado por duas narrativas: a da obrigação imposta às mulheres de cumprirem o papel de boas mães e esposas, mesmo que não precisem de um homem para conduzir suas vidas abastadas, em contraponto a uma criatura que veio da miséria extrema, de uma educação religiosa fanática, e cuja única finalidade de vida é sobreviver e dar condições para que filha possa não trilhar sua sina.
Nesse ponto, ao tentar criar uma ligação entre as quatro personagens e debater em torno do papel materno, Chimamanda deixa os laços frouxos. A ligação entre as três amigas cumpre a tarefa de mostrar os dilemas vividos por mulheres contemporâneas, sempre questionadas sobre estabilidade amorosa e maternidade. E que, no caso específico delas, têm mães culturalmente alinhadas à estrutura do casamento tradicional e da procriação como sinal de que uma mulher tem uma vida, de fato, bem sucedida.
A presença de Kadiatou no romance é, portanto, quase uma história à parte. E de certa forma, a própria Chimamanda admite indiretamente que o é.
Se com as três nigerianas ela conseguiu abordar as cobranças aos quais as mulheres modernas são submetidas, com a guineense reproduz um caso verídico que a impressionou, e que foi amplamente veiculado pelos jornais americanos nos início da década de 2010.
Apesar de contextualizar a vida anterior de Kadiatou na sua vila natal na Guiné, seus anseios nos Estados Unidos, a autora acaba resgatando, na verdade, o caso real de Nafitassou Diallo, uma imigrante guineense que virou camareira de um hotel de luxo, e que em maio de 2011 acusou um hóspede - Dominique Strauss-Kahn, diretor do Fundo Monetário Internacional - de agressão sexual.
Um caso onde a camareira - apesar de ser vítima - foi exposta como uma trapaceira que queria dinheiro de um homem poderoso. E que foi encerrado devido ao suposto caráter duvidoso da mulher que buscava justiça, mas que foi, massacrada pela imprensa durante toda a condução do processo..
A contagem dos sonhos, portanto, é um livro que aborda problemas diversos vividos por mulheres de origens diversas, e que costumam ser igualmente pesados, mas que para as mais frágeis sempre acaba saindo mais caro.
Diferente de Hibisco Roxo, onde Chimamanda traça o perfil e a violência do machismo de forma exemplar, levando o leitor a um nível de opressão intensa; ou de Meio Sol Amarelo, onde nos mostra com clareza o terror que se instalou na Nigéria nos anos 1960; ou até mesmo com Americanah, onde retrata uma jovem africana em confronto e se adaptando nos Estados Unidos com uma cultura totalmente diferente da conhecida, em A contagem dos sonhos Chimamanda abre a teia de assuntos abordados, mas tem problemas em amarrá-la de forma consistente.
Apesar da linguagem saborosa, das sempre presentes passagens africanas - que fazem toda a diferença na sua narrativa e escrita - em A contagem dos sonhos faltou força para unir a história dessas mulheres num texto que nos tirasse do lugar comum, nos levando aos caminhos sempre imprevisíveis pelos quais Chimamanda já nos guiou.
As passagens relativas a Kadiatou são o que há de mais interessante e humano no livro. Mas quando sua história se mistura às experiências das três nigerianas, tem-se a impressão que a costura acabou gerando um livro dentro de outro livro.
De qualquer forma, a escrita saborosa da autora e suas narrativas ancestrais são sempre bem vindas. Depois de 10 anos afastada dos romances , Chimamanda dá sinais de que seu repertório tenta alagar-se. E que A contagem dos sonhos foi o primeiro passo em direção a esse novo caminho.
A contagem dos sonhos
Chimamanda Ngozi Adichie
454 páginas
R$ 89,90
Companhia das Letra