Conto: Otelo

O escritor pernambucano Álvaro Filho vai buscar no clássico de William Shakespeare os elementos para a sua trama policial ambientada em Portugal

1
Iago lia o jornal na cama, quando a médica entrou no quarto. Cumprimentou-a com um breve menear de cabeça. Teve a impressão de ruborizar. Manteve a fleuma. Fingiu voltar à leitura de um artigo qualquer, enquanto a mulher madura, loira e magra, estudava o prontuário numa prancheta pendurada na cama.

A recuperação tem sido boa, comentou a médica, a cabeça baixa, a olhar a prancheta. O acento denunciava a origem estrangeira. O acento mais do que a fisionomia, mais do que a alvura excessiva da pele e os olhos, de um azul acinzentado. Talvez a pronúncia do erre, levemente acentuada, ao mencionar recuperação.

Deves ter alta pela manhã, disse a médica, a avaliação em tom de monólogo. Examinava-lhe, agora, o trauma na testa. Parecia gostar do que via. Muito bom, disse, com genuína satisfação. Em seguida, retirou da parede próxima à cama um espelho retangular e o postou diante dele.

O trauma era um risco irregular na testa de Iago, cerzido em pontos por uma linha azul, imerso na mancha violácea do hematoma. Iago também observou a si: o rosto magro, as maçãs da face murchas, a barba branca de dois dias por fazer, e o cabelo igualmente branco, ralo e despenteado.
Observou o corpo magro sob a bata verde-água de algodão. O tórax amplo denunciava o passado cada vez mais distante de atleta. Os braços guardavam certa rigidez e decoro. A bata, uma espécie de roupão entristecido, cobria-lhe parcialmente a pélvis. Com a mão, puxou o tecido para esconder a nudez flácida e embaraçosa.

A médica devolveu o espelho à parede e olhou na direção de Iago. Já te recordas do ocorrido?, perguntou-lhe. Negou com a cabeça. Ela anotou a informação no prontuário. Também vestia uma bata, embora a impessoalidade do fato profissional não lhe camuflasse a beleza. Não te preocupes. Logo irás lembrar-te, reforçou.

Iago fixou-se mais à pronúncia do que ao prognóstico. Tentou decifrar-lhe a origem. O erre acentuado em recordar-se ecoou-lhe nos ouvidos. Eslava, talvez russa ou polonesa. O exercício especulativo ajudava-o a esquecer de não se lembrar do ocorrido. Mais assertivo solucionar o enigma que esperar o futuro lhe descortinar o passado.

Um dia, talvez o ocorrido irrompesse do nada. Os médicos culpavam o trauma. Uma amnésia temporária. Iago desconfiava que não. Há tempos a memória era-lhe traiçoeira. A idade ou álcool em excesso. Ou ambos. Brancas na memória. O ocorrido sempre opaco, uma dúvida. Nunca cristalino, uma certeza.

Fechou os olhos enquanto a médica o examinava. Não sabia se a pontada fria no peito era do auscultador ou da dúvida. Teria sido verdade? Espremeu os olhos com força. Das brumas da memória, imergiu a imagem nublada dos seios de uma mulher. Os seios da médica? O toque frio do auscultador no peito. O toque quente dela no sexo dele.

Apesar de Iago não se lembrar do ocorrido, o corte e o hematoma conferiam veracidade ao mesmo. Não havia, porém, marcas que atestassem a médica de ter-lhe realmente banhado na noite anterior. Se as mãos delas realmente se demoraram no sexo dele. Se realmente deslizaram no sexo dele. Um sexo vivo, não o flácido de agora.

Iago abriu os olhos e a médica sorriu-lhe. Talvez um sorriso de cumplicidade. Talvez a médica houvesse captado a dúvida a reverberar pelo corpo através do auscultador. Na ausência de marcas, o sorriso lhe valia como prova. A mão magra de Iago no seio da médica, no pescoço dela. A apertá-los. Ela, a sugar-lhe o polegar. O gozo.

A médica poderia lhe sorrir por simpatia. Foi muita sorte a sua, disse-lhe, apontando com a cabeça para o jornal deitado na maca. A notícia do ocorrido estampada no jornal. Poderias ter morrido, seguiu a médica, inclinando o corpo de Iago com as duas mãos para que repousasse. Ele voltou a fechar os olhos.

Poderias ter morrido, disse ela. O erre levemente puxado. Provavelmente, russa ou polonesa. Emigrante. Mais um. Havia imenso deles no país dele, agora. Em busca de trabalho e segurança. Em busca do calor do sol, do calor de uma companhia. Iago sabia do fascínio das frias eslavas pela fama de bons amantes do quente homem latino.

Foi subitamente tomado pela certeza de tudo ter sido verdade. O banho, a carícia, o sugar do polegar dele. O gozo. Apesar de fragilizado, do trauma, da sutura na testa, apesar da idade, era um homem latino. E ela, uma mulher cansada do frio de onde viera. Cansada da frieza dos homens de onde viera. Bárbaros a recender vodka.

2
Na manhã seguinte, enquanto esperava na recepção do hospital por Roderigo, Iago foi abordado por um homem de baixa estatura, nariz pontiagudo e olhar esvaziado. Tenente Cássio, dizia o cartão ofertado, acompanhado de um sorriso gasto. O senhor teria dois minutos, solicitou gentilmente o policial.

Não teve escolha. Se pelo menos Roderigo chegasse, haveria uma desculpa. Ir para casa, descansar. Em vez disso, viu o policial acomodar-se na poltrona em frente à sua. Tenente Cássio, já ouvira esse nome. O jornal mencionara-o como responsável pela investigação do assassinato da mulher do terceiro-direito.

Iago fez questão de lembrar ao tenente o depoimento já dado por escrito. O policial consentiu. Gostava apenas de verificar se ele não havia, no ínterim, recordado de algo mais. Iago lamentou não poder ajudá-lo. O tenente parecia esperar pela negativa. Sacou de uma pasta escura de couro uma foto.

Os olhos de Iago foram imediatamente atraídos pelo vermelho intenso da cena. O corpo despido da jovem e bela mulher. Uma ninfa a banhar-se no rio escarlate do próprio sangue. Os seios grandes. O sexo em forma de flor.
No depoimento, começou o tenente, o senhor disse pensar que Desdêmona fosse uma prostituta e o assassino, possivelmente, um cliente. Iago mirava o olhar do tenente, esvaziado como a maré baixa. Ainda guardava na retina a mórbida nudez da vítima estampada na foto. A foto de Desdêmona. Era esse, então, o nome dela.

Iago repetiu o que já havia dito por escrito. Não conhecia nada a respeito da vizinha do andar de cima. Nunca conversara com ela, salvo o social bom-dia e boa-noite, no entra e sai do prédio. Sabia que costumava chegar tarde, após a meia-noite, através de sons: batidas de portas, sapatos atirados ao chão, passos, o chuveiro.

O quarto dela era acima do de Iago. Disse ouvir vozes masculinas com frequência. Não percebia o que falavam. A cama dela gemia. Eles também gemiam. Era uma moça jovem. Jovem e solteira, a morar num bairro caro. Uma coisa levou-o a inferir a outra. Nada concreto, apenas uma suspeita.

O tenente folheava um bloco tão gasto quanto ele. O senhor também mencionou um possível suspeito, um morador, seguiu o tenente, a vagar pelo bloco em busca do nome. Otelo, apressou-se em dizer Iago. Isso mesmo, Otelo, anuiu o policial.

Iago disse também conhecer pouco o vizinho. Sabia-lhe o nome pois ele o dissera, um dia, enquanto esperavam a chuva passar, na saída do prédio. Otelo apresentou-se como jornalista, a mesma profissão de Iago. Aparentava 30 e poucos anos. Não fosse o leve acento da ex-colônia, seria impossível distingui-lo como estrangeiro.

Um emigrante, quis ter certeza o tenente. Iago confirmou. O senhor sabe, tenente, os jornais falam disto o tempo todo. Há uma vaga deles, a fugirem de guerras, guerras civis ou urbanas. O mundo tornou-se subitamente um lugar bastante hostil, percebes? O olhar marejado do tenente a observar onde Iago iria chegar.

O emigrante já não é mais o outro, tenente, explicou Iago. Parece-se comigo, consigo. Antes, era fácil percebê-lo, a executar tarefas menores. Hoje, dominam a nossa língua, a nossa profissão. Otelo é jornalista. Deve haver emigrantes na polícia, não estou certo? O tenente não respondeu. Como o senhor sabia que Otelo e a vítima se conheciam?

Da janela da cozinha, era possível a Iago observar a entrada do prédio. Por várias vezes, testemunhara Otelo e a jovem mulher a conversarem no átrio. Pareciam se divertir. Riam-se bastante. Talvez fosse dele a voz masculina nas visitas noturnas ao quarto dela. A voz a gemer em uníssono, ele, ela e a cama.

Roderigo rompeu, ofegante, na recepção do hospital. Logo que avistou Iago, sinalizou com a mão. Preciso ir, disse Iago. Fez menção de levantar-se. O tenente não esboçou objeção. Apenas uma última questão, insistiu, a dardejá-lo com os olhos esvaziados. Iago sentiu-se um barco encalhado naquele olhar.

Apenas o fato de terem sido amigos, e até amantes, não faz de Otelo um suspeito natural, sugeriu o policial. Iago ponderou por segundos. Óbvio que não, respondeu. Mas às vezes, tenente, saímos de um lugar e o lugar não sai de nós. Segue entranhado na nossa pele, tenente, como o odor de um perfume barato.

Roderigo havia se aproximado. Hirto, um poste a testemunhar o diálogo. Deu o braço como apoio para Iago levantar-se, lentamente. Otelo viveu a guerra, tenente, e isso o faz por definição um ex-combatente, disse Iago, antes de partir. O mundo, repetiu ele, tornou-se subitamente um lugar bastante hostil.

3
Iago acordou-se de madrugada, sobressaltado, assombrado por um pesadelo. A médica plantonista invadiu-lhe os sonhos, nua, os cabelos loiros e despenteados colados na pele alva e empapada de suor. Olhava-o com um esgar e beijava-o com sofreguidão. Parecia desejar sorvê-lo, como uma feiticeira eslava.

Bruscamente, como normalmente decorrem-se nos pesadelos, a médica plantonista metamorfoseou-se em outra pessoa. Assumiu a inefável aparência de Desdêmona. Iago, ele também convertido no Iago varonil de outrora, tocava-lhe os seios, enquanto a ninfa docilmente ofertava-o o sexo em forma de uma delicada papoula.

Durante o beijo, subitamente a boca de Desdêmona enrubesceu. Dela, passou a jorrar um viscoso líquido vermelho. Iago, tomado por asco, tentou desvencilhar-se. Porém, Desdêmona mantinha-o preso dentro dela com os braços e pernas. Mesmo em pânico, atado à mulher, Iago chegou ao gozo. Dois corpos inertes a flutuarem num rio de sangue.

Ainda na cama, já desperto, Iago teve a impressão de ouvir sons no andar de cima, no quarto de Desdêmona. Passos, sussurros. A cama a gemer. Prendeu a respiração para tentar ouvi-los melhor, mas os ruídos cessaram. Buscou abrigo na sala. Sentou-se na poltrona. A tíbia luz de um poste iluminava parcialmente o cômodo.

De onde estava, avistava o pequeno móvel na entrada do apartamento. Os médicos disseram que fora encontrado ali, desacordado no chão. Provavelmente, perdera os sentidos. Durante a queda, batera com a cabeça na sapateira de mogno. Não tivera nem tempo de fechar a porta. Um vizinho o encontrou e chamou por socorro.

Iago lembrou-se de acordar no hospital. Numa maca. A dor lancinante na cabeça. Está tudo bem, disse-lhe uma voz. Mãos despiram-no. As roupas de Iago sujas de sangue. A visão turva. Lembrava apenas do rosto magro e belo da médica. Ela não olhava para ele. Parecia olhar para o sexo dele. Antes de perder os sentidos, desejou possuí-la.

Iago acreditava ter desmaiado após voltar do jantar na casa da filha. Havia bebido. Sabia que não deveria. O álcool precipitava o débil estado de saúde, às sucessivas brancas na memória. Precisava de repouso. Foi o que dissera Roderigo. Iago havia dedicado a vida, a saúde ao jornal. Fê-lo o mais respeitável do país. Em troca, era descartado.

Roderigo foi o único colega de trabalho a visitá-lo no hospital. Ressaltara a sorte de Iago em não encontrar o assassino. Poderia ser tomado como testemunha, ter o mesmo destino da vítima. Iago agradeceu a preocupação e pediu-lhe um favor: apurar a respeito de um jornalista, Otelo, jovem, assim como Roderigo.

No dia anterior, no retorno para casa, Roderigo disse ainda não ter informações. Ligara para amigos e contatos em outras redações e jornais menores. Não havia registo de um jornalista com esse nome. Otelo parecia um fantasma. Talvez houvesse mentido. Talvez o vizinho emigrante não fosse quem ele disse ser.

Iago decidiu telefonar para o tenente Cássio logo ao amanhecer. Guardara o cartão do policial. Mencionaria sobre o mistério da identidade de Otelo, do vizinho emigrante. Falaria dos sons no andar de cima, no apartamento de Desdêmona. Talvez o assassino tenha voltado ao lugar do crime. Sempre voltam.

4
Cedo pela manhã, o telefone tocou estridente e imperioso na secretaria do tenente. Era o jornalista. O policial sorriu pela coincidência sensorial: pensava justamente em Iago quando o aparelho tocou. Ao lado do telefone, também sobre a secretaria, os resultados da perícia técnica criminal e legista do assassinato da jovem mulher.

O tenente ouviu em silêncio o jornalista falar de sons renitentes no andar de cima e na fantasmagórica identidade de Otelo. Sorriu novamente à menção de os assassinos sempre voltarem ao local do crime. Era verdade, sempre voltavam. Otelo voltaria ao local do crime. Os papéis sobre a secretária revelavam isto.

Acredito que o senhor pode ter razão, respondeu o tenente. Enquanto falava ao telefone, observava o próprio reflexo no tampo de vidro da secretária. O olhar esvaziado pelo que viu em duas décadas na esquadra. Caso não seja incômodo, seguiu, gostaria de visitá-lo e averiguar, sugeriu o policial. É possível, senhor Iago?

Senhor Iago. Jornalista experiente. Notório. Poderoso. Decadente. Nos últimos anos, apresentara fadiga de material, devido ao estresse e à idade. Em depoimento, o adjunto de Iago, Roderigo, mencionara o alcoolismo e os constantes lapsos de memória do superior. Os frequentes episódios de ira do superior. O ocaso do superior.

O comissário advertira o tenente sobre a delicadeza da situação. O diretor de redação era articulado. Precisava ter certeza dos fatos. O adjunto também o advertira da delicadeza da situação. O diretor de redação agredira um dos repórteres. Um jovem jornalista emigrante. A gota d’água. O afastamento. Talvez, temporário. Talvez, não.

5
Iago tateava a pequena farmácia na casa de banho em busca de algodão. Havia cortado o braço no prego saliente na parede do corredor. O maldito marceneiro, um africano conversador, mas fiável, havia-o esquecido ao desmontar um armário. Vez ou outra, Iago magoava o braço ao passar, como agora.

Pensava já ter ele mesmo extirpado o prego. Após estancar o sangue do braço, buscaria o martelo na caixa de ferramentas. Mais uma vez, refaria o trabalho malfeito dos outros. Assim como faria o trabalho malfeito do policial, por quem esperava chegar.

A campainha anunciava, o tenente não se demorou. Sentiu um leve frêmito ao reencontrar o olhar esvaziado do policial. O tenente trazia uma chave na mão. Noutra, a pasta escura de couro. A chave do terceiro-direito, o apartamento de Desdêmona. O local do crime. O policial fez um gesto para Iago acompanhá-lo.

Subiram em silêncio. A entrada do terceiro-direito estava selada com fitas amarelas. O policial retirou agilmente as fitas. Abriu a porta com a chave. Iago sentiu um lufar funesto emanar do cômodo. Havia a mórbida sensação de não se entrar num apartamento, mas num jazigo. Ele, um violador de sarcófago.

A mancha escarlate reinava no chão da sala. Iago sentiu o sangue fugir-lhe. As pernas falsearam. O tenente Cássio acudiu-lhe e o conduziu cuidadosamente a um jovial sofá amarelo. Iago sentou-se, ofegante. Transpirava. O policial puxou uma cadeira e sentou-se à sua frente. Da pasta escura de couro, sacou folhas de papel. Um dossiê.

Desdêmona, 25 anos, começou a ler pausadamente o policial, era médica. Cumpria o plantão noturno, o que explicava a tardia hora de chegar em casa. Ganhava bem, era solteira. Poderia pagar a renda num bairro caro. Mulher saudável, era natural que gozasse de eventual companhia masculina.

Iago ouvia, em silêncio. A necromante eslava poderia estar certa e a memória irromperia do nada. Teria condições de desmentir o tenente e seu ridículo dossiê. Desdêmona foi violentada, seguiu o tenente Cássio, alheio ao pensamento de Iago. Em seguida, assassinada. A nuca perfurada por um objeto sólido.

O policial observou Iago passar os dedos sobre o próprio trauma, na cabeça. Ela tentou defender-se, disse o tenente Cássio. Era jovem, mas não possuía a força de um homem. Mesmo um homem maduro. O tenente não mais lia o dossiê. Olhava para Iago.

O tenente voltou aos papéis. No depoimento, sua filha informou tê-lo esperado para jantar, mas o senhor não apareceu. Iago mirava o olhar esvaziado do policial. Buscava na retina dele a imagem do jantar com a filha. Em vão. Como no pesadelo da noite anterior, só via o sangue escorrer dos lábios de Desdêmona.

A memória subitamente irrompera, como a feiticeira eslava vaticinara. Iago, o martelo na mão. O braço magoado pelo prego saliente na parede. Não há ninguém no prédio chamado Otelo, seguiu o tenente. A campainha. Iago abriu a porta. A jovem mulher do andar de cima. Um favor, mover uma estante de lugar. Precisava de um homem.
Iago havia bebido bastante, sozinho, em casa. Sentia-se invencível, apesar do braço a sangrar. O maldito africano. Se o visse pela frente, era capaz de enfiar-lhe o martelo na cabeça. Iago seguiu-a até o apartamento dela. O apartamento da prostituta. Notara como ela o olhava. A estante, o favor, tudo uma desculpa. Precisava de um homem.

O braço a sangrar. O africano filho da puta. Era capaz de enfiar-lhe o martelo na cabeça. A puta resistia. O martelo na estante. Ela o alcançou. Atinge Iago na cabeça, mas não o derruba. Ferido, irado. Excitado. Toma-lhe a ferramenta. Um golpe basta. O corpo dela desaba inerte no chão. Da boca, escorre-lhe um filete escarlate de sangue.

As roupas usadas pelo senhor ao dar entrada no hospital, seguiu o policial, continham amostras do sangue da vítima. A cena revela-se agora nítida na memória de Iago. A mão magra dele no seio, no pescoço dela. A apertá-los. Ele a enfiar-lhe o polegar na boca. O gozo. Dois corpos inertes a flutuarem no rio escarlate.

Falta apenas a arma do crime, lembrou o tenente Cássio, recolocando o dossiê na pasta escura de couro. Os assassinos sempre voltam ao local do crime. Iago levantou-se e caminhou lentamente até o canto da sala. Na estante, movida por ele antes de matar Desdêmona, ocultara o martelo ensanguentado atrás de um livro.
Na capa do livro, lia-se o nome Otelo.

Álvaro Filho é jornalista e escritor, autor do livro Curso de escrita de romance - Nível 2 (Cepe), entre outros