Madri, enigmas claros

Tendo morado em várias cidades, foi inevitável ouvir a pergunta: de qual mais gostou. As razões, no caso da capital do mundo hispano-americano, são várias

Em 2011, Bia e eu deixamos a mais gelada das cidades onde moramos, Chicago, para pegar 40 graus num agosto madrilenho.

Uma semana depois, Cidade livre ganhava o Prêmio Passo Fundo e eu deveria ir recebê-lo na cidade gaúcha. Comprei um pulôver que nada serviu para me proteger de temperaturas próximas de zero. O prêmio, o enorme público e os encontros compensaram o frio. Em Madri ficou fácil aceitar convites para outros encontros literários (Europalia, na Bélgica, em 2011; festivais na França coincidindo com a tradução de Cidade livre, em 2012; Frankfurt em 2013, ou na própria Espanha, em Santiago de Compostela, Salamanca e na Residencia de Estudiantes, em Madri).

Tendo morado em várias cidades, foi inevitável ouvir a pergunta: de onde mais gostou.

As razões, no caso da capital cultural do mundo hispano-americano, são várias, da comida (muitas vezes compartida com o crítico Antonio Maura, a escritora Pilar Gómez Bedate - viúva de Ángel Crespo, tradutor de Guimarães Rosa –, o mexicano Alberto Ruy-Sanchez, a uruguaia Ida Vitale ou Nélida Piñon) ao conforto de andar a pé pela Castellana a cinco museus; ir ao Parque do Retiro e caminhar a qualquer hora do elegante bairro de Salamanca à animada Chueca; ou da Plaza del Sol ao bairro de Malasaña, onde teve lugar o movimento de jovens La Movida. Ou ainda tomar um trem rápido a Córdoba, visitar sua famosa Mesquita e seguir para Granada, onde o legado da ocupação árabe da Península Ibérica é mais visível.

Meu novo romance pela metade era a história de um personagem jovem, desorientado diante dos dilemas contemporâneos e revoltado contra a passividade de seu tempo, sobretudo quando confrontada com a dos que tinham transformado os costumes nos anos sessenta e setenta do século passado.

O papa Bento XVI viria a Madri para a Jornada Mundial da Juventude, e os controles migratórios tinham sido relaxados. Dez mil jovens brasileiros inscritos. Passei pelo seu centro de acolhimento e pensei: por que não trazer meu personagem de Brasília para cá? Uma de suas amigas se interessaria pela Jornada. Ele e outra amiga se juntariam.

Chegaram à época do movimento dos indignados, da primavera árabe, da ascensão do Estado Islâmico no Oriente Médio e de manifestações em vários lugares do mundo (Ocupy Wall Street em Nova York, revolta estudantil no Chile). Já no regresso, manifestações no Brasil e nova Jornada Mundial da Juventude, desta vez com o papa Francisco.

Eu morava a 50 metros da Biblioteca Nacional da Espanha, por onde criei o hábito de passar ao final do dia. Para a construção de parte da trama amorosa, inspirei-me numa antiga lenda árabe, de um amor impossível entre Majnun e Layla. Fiz leituras do Corão. Tinha vivido em Beirute e imaginei que uma das avós fosse árabe, muçulmana, e servisse de inspiração ao protagonista. Personagens menores o levaram a se interessar tanto pela tradição de tolerância do Islã quanto por se integrar aos radicais na Síria.

Estando meu romance já publicado, Enigmas da primavera, um brasileiro de Goiânia foi preso por suspeita de querer se integrar ao Estado Islâmico e lhe fiz uma visita. Um jornalista brasileiro quis saber: então eu já conhecia a história?

Houve também quem pensasse que não havia enigma: o mundo árabe um dia se democratizaria; outros, que surgia um novo tipo de totalitarismo.

Os enigmas são de outra natureza, claros como queria Drummond. Enigmas próprios das primaveras, que enchem a juventude de contradições, angústia e esperança. Que perduram. A Espanha é transcultural e exemplo das encruzilhadas tanto do século VIII quanto de hoje.