Ao entrar na Embaixada do Brasil, me deparei com um caixão fúnebre sobre a mesa de uma sala de reuniões. Havia chegado ali após meses de tratativas e viajaria para Brasília.
Não acredito em vida após a morte para quem morreu, mas para quem está vivo e se recorda, sim, mesmo que sua recordação seja de leituras ou do que ouviu falar.
Era março de 2001. O corpo estivera enterrado na igreja da Virgem Santa Maria (St. Mary-The-Virgin) do vilarejo de Hurley. A exumação tinha sido autorizada pela rainha, sempre tão simpática nos poucos encontros sociais. Num deles, fez questão de mostrar o colar ganho do embaixador Chateaubriand e a tiara que depois mandara fazer para combinar com o presente.
Sobre a mesa da sala de reuniões, nada menos do que os restos mortais daquele que é visto como o pioneiro da imprensa brasileira, defensor da liberdade de expressão e da independência do Brasil. Fundou um jornal em Londres, de onde enviava suas matérias, o primeiro jornal brasileiro, que circulou de 1808 a 1822, o Correio Braziliense.
Estava ali Hipólito José da Costa, ou melhor, um símbolo, algo que não morre. Não encontrei a foto que fiz daquela visão nada usual que bem poderia ilustrar esta matéria.
“Abril é o mais cruel dos meses.” Retrocedo ao ano 2.000 para passar a outro cadáver. Recebo um recado. A família de um historiador gostaria de contar comigo na cerimônia de cremação de seu corpo. Seria Eric Hobsbawm, que aos 82 anos vinha dirigindo seu próprio carro para almoços na embaixada? Ou Leslie Bethell, que eu via com frequência em Oxford?
Não sabia que a cerimônia seria tão pequena e íntima. Estavam presentes diante do caixão de Charles Boxer apenas membros da família e amigos muito próximos. Depois que três falaram sobre detalhes da convivência com o grande historiador, fui convidado a tomar a palavra. Sentia-me constrangido por não poder dizer nada pessoal, pois não o havia conhecido. Falei da importância das pesquisas de Boxer para o Brasil e disse algo de leituras que fazia ao integrar uma das comissões Brasil-Portugal dos chamados 500 anos, de O império marítimo português, A idade de ouro do Brasil e Os holandeses no Brasil, livros que cobrem do século XV ao XVII.
O que eu não sabia era dos laços afetivos que o uniam ao Brasil até sua idade avançada (morreu com 96 anos), a tal ponto de que o único estranho naquela cerimônia fosse um representante oficial do Brasil. Assisti, assim, à lenta descida do caixão ao fogo crematório com um respeito profundo e uma emoção sincera.
Não quero terminar com notas fúnebres, porque, afinal, a millennium wheel começara a rodar à beira do Tâmisa, celebrando a passagem do ano 2.000.
Outro número redondo, há 500 anos os portugueses haviam se encontrado com os povos originários do que viria a ser o Brasil. Entre as muitas manifestações culturais brasileiras, que envolveram exposições, teatro, shows de dança, eventos literários e concertos de música clássica, houve um show de João Gilberto no Barbican. Após duas horas, o público não queria que ele parasse. Surpreendente para quem conhecia João Gilberto era que ele tampouco quisesse parar, apesar do barulho e das palmas que o interrompiam, já passadas duas horas e meia.
Quando encerrei minha estada em Londres, em junho de 2001, lancei As cinco estações do amor, romance iniciado em 1994, em São Francisco, continuado em Lisboa e no qual os personagens, cumprindo promessa feita há 30 anos para um balanço de vida, se reencontrariam em Brasília na passagem do milênio.