A riqueza poética de César Leal, estampada em livros como Invenções da noite menor (1957), O triunfo das águas (1968), Tambor cósmico (1978), Os heróis (1983) ou Constelações (1986), guarda as marcas recorrentes da tradição moderna, vislumbradas no empenho do autor em explorar o espaço da página, polir e afrontar o verso clássico, florir polissemia na disposição visual do texto. Se por um lado, portanto, o poeta aproveitou a herança dantesca pelo teor cósmico de suas especulações e perplexidades, e recuperou algumas tópicas de Camões, Pessoa e Ezra Pound (na retomada do heroísmo enquanto motivo poético), reativou, por outro, modelos formais tão praticados por T.S. Eliot (em sua poética do fragmento), e.e. cummings ou Joaquim Cardozo (pela aventura semiótica do verso e, ainda, por certa nostalgia formalmente antirromântica).
Em César, verifica-se uma erudição poética assimilada nas encruzilhadas intertextuais, pelas quais se tonificam sentidos que a escrita aciona. Num poema como “Dandômear – I” (anagrama da galáxia Andrômeda), o encantamento gerado pelos astros se condensa homericamente nos feitiços de Circe e no enleio das sereias. Além disso, ali, alguns sinais diacríticos – frequentes em poetas de extração mallarmaica – enfatizarão a semântica do enigma, tematizada em relevo, na fatura:
Estrela, constelação, divina voz, dedos divinos,
que me tocam às pálpebras,
nenhum calor, só teu reflexo a visão consuma,
ordem nas raízes (///) ((( ), no caule e na fronde,
Zoroastro te acompanha em teu mistério, insólita
harmonia dos círculos celestes
revela-se nas órbitas vazias que abrigaram
os olhos de Circe,
na canção das sereias
nos cristais marinhos,
orvalhados pela noite
e as lâminas do gás oceânico: Dandômear – Dandômear.
É notável, ainda, o quanto Leal descongela o imaginário corrente, ao reformular o que sempre se apresenta em sentido sublime. A luz, num texto como “Libertação”, vem plasmar a dor no “sangue aceso” das águas: [...] e essa luz que no ar cintila/ É o diamante das mágoas: /Cintila em meu sangue aceso/ Já que sou parte das águas. Aliás, nesse mesmo poema, Castro Alves também ecoa num voo condoreiro – visível, de antemão, no título. Com a diferença essencial, em todo caso, de que o “eu”, agora, não tem o timbre marcadamente coletivo; antes, expõe a busca de emancipação da própria alma, pelo tom de um dueto conhecido: amor e morte.
Nos poemas de César Leal, nota-se uma profusão de imagens vivas, inesperadas, efetivamente estéticas – escapando à anestesia do uso corriqueiro. Na “Segunda Elegia” do livro A quinta estação (1972), por exemplo, um verdadeiro quadro se elabora na matéria verbal, repleta de experimentos que alargam o espraiar das interpretações:
/As janelas do limbo
abriram-se /............/
( de par em par
/............/ e folhas
desenhadas ( ) ..... ( )
/pelas linhas / ....... /
de suas mãos
brotaram
(como escamas d’água)
( ) sob os
cílios do Sol
A criação poética de César dá sequência, como notou o escritor José Rodrigues de Paiva, ao que os modernos reciclaram das tradições antigas: a poesia é um estímulo para olhos e ouvidos, e o poema “Ursa Maior”, sintomaticamente dedicado ao poeta Cassiano Ricardo, se torna um caso exemplar desta verve semiótica. Ali, vislumbra-se a irônica metalinguagem de um eu-lírico exigente, reclamando uma dupla atenção – às urgências do mundo e à gerência da linguagem. Nos versos, já se ouve o crítico literário em ação, avaliando o processo criativo:
pouco falastes
da corça ferida, dos meninos
cujos berços ruíram
ao punho dos bombardeios;
[...]
aqui estou para cantar
para cantar um novo tempo
em jogo com as vogais
em jogo com a flexha
em jogo com as vogais
em jogo com a guerra [...]
O poema tem um alvo crítico relativamente definido: o excesso de uma pretensa objetividade, uma “desumanização da arte”, que circulava em certa lírica moderna. A ideia de cântico, sublinhada nos versos acima, responde bem ao que o poeta consegue desenvolver por meio de rimas internas e toantes. Semelhante melopeia ilustra o quanto a participação pela poesia, mencionada no texto, só acontece pela inevitável trilha da sedução verbal. Ao se percorrer o poema por completo, uma polifonia visceral se faz ouvir com nitidez, na qual se reconhece a voz de Arthur Rimbaud e a terça-rima de um Dante que fotograficamente se estampa. Em tal variedade, vislumbram-se teoremas físicos e, bem ao modo de Apollinaire, homologias entre a tipografia das palavras na página e seus relativos significados.
Aquele apelo ao mundo e à linguagem (evocação vislumbrada em célebre formulação de Francis Ponge) já se enunciava nos primeiros versos do poema “L’Alta Fantasia”, de O arranha-céu e outros poemas (1994): “Elevar-se com vida,/ com vigor de linguagem,/ áspero como o sangue/ aceso em cada face” – e aqui se flagra um motivo recorrente do poeta, que é o de uma seiva continuamente aquecida, para que a vida enfim se justifique. Ou seja, a sua literatura representou uma recusa à negação do mundo para além da língua, como foi praxe em tantas poéticas, àquela altura. Em todo caso, a arte, segundo Leal e os versos da Commedia, manifesta-se mesmo é no instante em que destoa do que o mundo empírico já oferece no correr dos dias. Em outros termos, é quando se ofertam as merecidas férias da realidade, a que o filósofo Gaston Bachelard fez menção em dado momento, que o fenômeno estético emerge e salta aos olhos de um leitor até então alheio ou entorpecido. Para tanto, é necessário “Não esquecer por fim/ o que Dante dizia:/ a arte só é arte/ com alta fantasia”. O arranha-céu e outros poemas se apoia em colunas que sustentam um olhar calibrado para as palavras e para os elementos físicos e metafísicos (o rio, o sol, as pedras; a alma, o tempo e a velhice) – o que faz o poeta confirmar, na própria obra feita, o que a sua concepção de arte planejara como ideia.
Teórico literário de fina reflexão, César transmite suas lições especulativas em linguagem transfigurada, de modo que distinções conceituais se elaborem numa forma sintética e memorável. Na micrologia de seus textos, por exemplo, ele assim estabelece o contraste essencial entre estilo e maneira: à guisa de uma mancha, o maneirismo de um escritor se torna um descuido indelével, ao passo que o estilo – vazado em novidade – denota o apreço pelo próprio artefato linguístico. Um tal ensinamento destina-se, vale realçar, a todo poeta que, sem ajustar o tom ao que deseja cantar, elege uma forma específica para transformá-la em seu passe-partout. E, todavia,
Todo a priori formal
é rígido em sua teia:
isso não é estilo
– se chama isso maneira!
Para ter limpo estilo
cuide bem da linguagem:
a nódoa na poesia
não há água que lave.
Na verdade, com o recurso da metalinguagem, o que se percebe de imediato é o artista anunciando em verso aquilo que, sob a máscara de injunções destinadas aos leitores, se plasma como a sua arte poética particular. Assim, ao advogar a presença premente da imagem na fatura de um texto (“A imagem”), o poeta de uma elocução tantas vezes clássica recorre à analogia tecnológica para fazer sua palavra dizer com mais precisão – numa exata simetria entre a perícia do poeta e o discurso que a convoca: “e diga ao pensamento/que o poema a se fazer/precisa de palavras/exatas como o laser”. O seu livro O arranha-céu ensina o quanto, nas artes, o rigor, a disciplina e o domínio do cinzel podem – com o vínculo entre sonho e sono – arranhar as pedras sem, como um diamante, ser por nenhuma delas arranhado. Para além das metalinguagens, no entanto, é preciso lembrar que, na escrita de César Leal, a razão vaporosa inevitavelmente ganha som e contorno, convertendo em pulsão poética a noese da filosofia.
O baú poético de nosso autor reúne formas fixas como o soneto – talhado em verso medido e comedido (com a presença notória do canônico verso decassílabo) – às quais se acrescentam as suas mais arrojadas aventuras e liberdades formais, concretizadas no verso livre ou no movimento oscilante das polimetrias. Seja qual for o molde selecionado, é certo que a sua linguagem não se permite a negligência de comparecer no poema sob o constrangimento de um estado bruto. E tampouco o apuro verbal resulta numa subserviência da palavra ao ornamento, armadilha que esvaziou a poesia de numerosos escritores do século passado. Ao contrário, a criação de César consiste na convicção de que, em plena dualidade, pensamento e vigor do verbo inextricavelmente se alimentam. Tome-se por amostragem o admirável “O Triunfo das Águas”: no poema, o eu-lírico se afunda em si, num percurso dantesco de autognose, pelo qual o ser desperta os seus infernos e, no ulterior clarão da consciência, dali emerge para os aplacar: “e quero quando atingir-/me penetrar como um corte/depois dormir como a dor/nas águas neutras da morte”. Aqui, o novelo de artifícios revela o ofício: redondilhas se encorpam em aliterações miméticas, finalizando-se o trecho em reformulação de sentidos: a natureza táctil da dor se converte na visão de seu afogamento – graças à morte líquida e irrevogável, que salvificamente a submerge. E sempre importa frisar que esse modo mental não é contingente na literatura de César: já Weydson Barros Leal, em seu texto “O Garimpeiro de Dante” – breve análise do livro A oriental safira (1992) –, notava que alguns versos da obra funcionam como um vestíbulo, a partir do qual “o poeta inicia sua descida ao ‘escurecimento’ de suas imagens”, destacando ainda que “é no final dessa descida [...] que as sombras de Dante, atormentadas pelo fogo [...]”.
De tudo isso, portanto, resta a certeza: o autor de Constelações nutriu uma lúcida paixão da linguagem, em suas variadas veredas. E tal confluência de vertentes ou procedimentos confere ao poeta um lugar de destaque na cena moderna. Relembrar César Leal é, por metonímia, celebrar o vigor da poesia.
Peron Rios é poeta, crítico literário e professor. Autor de A viagem infinita: estudos sobre Terra Sonâmbula e de A espiral crítica