Os 130 anos de nascimento e os 50 anos de morte do escritor, jornalista e político Plínio Salgado (1895-1975) passaram sem pena nem glória. Ambos neste ano. Em tempos de discussão sobre a democracia e as iniciativas da extrema-direita, surpreende essa indiferença? Não; tendo em vista que, raras vezes, os que escrevem nos mass media, no Brasil da atualidade, se interessam pela História. A maior parte exerce a informação a partir da opinião, num predomínio avassalador daquilo que os antigos chamavam de Doxa. Poucos são os que não se limitam a arranhar a superfície dos assuntos.
Além do homem de ação, Plínio Salgado foi um intelectual. Devotado ao catolicismo conservador, ligou-se às vanguardas artísticas e literárias de 1922 (não nos esqueçamos de que os modernistas paulistas e cariocas, no seu início, se autodenominavam futuristas, do futurismo à Marinetti, nacionalista e de extrema-direita). O grupo Verde Amarelo, de que participou Salgado, era fundamente nacionalista, e se opôs a Oswald de Andrade.
Plínio Salgado foi o inventor do Integralismo, que muitos, erroneamente, simplificam como se fosse uma versão brasileira do fascismo. Basta ter lido um pouco os livros do seu fundador para chegar à frase em que ele denuncia “a burla do fascismo e a traição do nazismo e do comunismo russo”.
Foi tão sedutor o Integralismo, que atraiu para suas hostes pessoas como D. Helder Camara (líder católico associado à esquerda) e Paulo Cavalcanti (comunista, por excelência).
Houve um Plínio Salgado das letras, do gosto pela poesia. É justamente esse quem se ocupa de Fernando Pessoa. No jornal católico A Cruz - órgão da paróquia de São João Batista, no Rio de Janeiro, ele publicou, em 23 de março de 1969, o artigo” Mistérios do grupo de Orfeu”.
Nesse texto Plínio se reporta à sua relação com os portugueses, e chega a mencionar um outro artigo seu – “Recordações de Lisboa”, sublinhando a importância de Luís de Montalvor, o primeiro grande editor de Fernando Pessoa.
Foi pela Ática, fundada por Luís de Montalvor, que, pioneiramente, saiu a obra completa de Pessoa, tanto a poesia quanto o Livro do Desassossego e vários outros de sua prosa. Num tempo em que era incipiente o interesse do público pelo grande poeta, foi Montalvor quem soube dar valor aos tesouros ocultos na famosa arca pessoana, ou seja, o baú em que o poeta guardou dezenas de milhares de inéditos.
Luís de Montalvor não era um heterônimo, mas um pseudônimo. Chamava-se, na verdade, Luís Filipe de Saldanha da Gama da Silva Ramos. Nasceu a 31 de janeiro de 1891, em Cabo Verde (aos dois meses de idade, mudou-se, com a família para Portugal). Seu falecimento é um dos mais trágicos da história cultural de Portugal: ele, sua mulher e seu único filho morreram no dia 2 de março de 1947. O carro em que iam foi arrastado pelas águas e caiu no Rio Tejo, nas proximidades da estação fluvial de Belém.
Plínio Salgado teve os seus livros Vida de Jesus e Como nasceram as cidades do Brasil publicados pela Ática portuguesa (o adjetivo cita-se para não se confundir com a brasileira, notabilizada principalmente por causa dos seus livros didáticos e paradidáticos).
Quando, no seu artigo em A Cruz trata Plínio Salgado da história do grupo da revista Orpheu, sublinha suas “figuras tão singulares nas letras como trágicas em seus destinos”. Destaca o nome de Fernando Pessoa, a quem define como “vulto de rara grandeza”. No brevíssimo escorço biográfico, acerta em quase tudo, exceto sobre a morte de Pessoa. Escreve Salgado, no artigo já referido:
“Em 1934 foi lançado o seu pequenino e grandioso livro Mensagem, síntese eloquente da epopeia marítima dos lusitanos. Ao traçar-lhe a biografia, o conceituado crítico João Gaspar Simões o denomina 'poeta temporal' e o considera como 'um dos homens mais universais que tem vindo ao mundo, em Portugal’”.
Erra ao informar que Sá-Carneiro nasceu em 1884 (o ano correto é 1890), mas não se equivoca ao mencionar a morte dele (por suicídio, há quase 110 anos, em Paris) e a de Ronald de Carvalho (num acidente automobilístico no centro do Rio de Janeiro, há 90 anos). Exagera e confunde-se, no entanto, quando trata de enfatizar, com derivações equivocadas sobre o “destino final dos poetas”, generalizando e forçando a nota:
“Feitos estes resumos biobliográficos, agora o trágico destino que assinalou, de maneira brutal, os componentes do grupo de Orfeu (sic). Façamo-lo por ordem de datas. O primeiro a malograr-se foi Mário de Sá Carneiro, que se suicidou em Paris, na plenitude de suas atividades intelectuais. O segundo foi Fernando Pessoa; após publicar em 1934 a Mensagem, poemas de valorização da raça lusitana lançados como clarinadas concitando o povo português a continuar a obra de seus maiores, incompreensivelmente, pôs termo à vida no ano seguinte”.
Estranhíssima informação a última, principalmente se acreditarmos que Salgado tenha mesmo lido a biografia de Pessoa, escrita por João Gaspar Simões, pois aí estão os dados reais. Depois de mencionar, corretamente, que Ronald Carvalho e Fernando Pessoa morreram no ano de 1935, ele insiste, porém, no seu engano:
“Do grupo de Orfeu restava Luís de Montalvor, que fui conhecer em Lisboa, em fins de 1942. O seu caso tem para mim a significação de um mistério pelo fato que vou narrar. Durante o preparo das provas e a confecção do volume da Vida de Jesus, e, depois, por hábito adquirido, costumava eu, com frequência, ir pelo entardecer, à editora Ática, naquele tempo situada na Rua das Chagas, 23. A grande editora mudou-se, mais tarde, para a Rua Garret, com instalações amplas e modernas, mas a sua primitiva sede tinha o encanto e o aconchego dos ambientes propícios a conversas literárias e a confidências pessoais. Ali travei relações com artistas e escritores portugueses da melhor estirpe e, entre os estrangeiros, com Ortega y Gasset, que durante suas temporadas em Lisboa, frequentava a Ática”.
Quase num tom de romance gótico, Plínio Salgado lembra-se do dia em que permaneceu dentro da Ática até a noite na companhia dos Montalvor (o editor, sua mulher e seu filho). Ele informa que “nossos assuntos derivaram para casos misteriosos e sobrenaturais”. Passa, então, a narrar o que lhe teria contado Luís de Montalvor sobre Fernando Pessoa. Num dia em que esteve na sua editora e, no momento da saída, “sua fisionomia se transfigurou e, com os olhos dilatados e fixos num ponto vago, soltou um berro, que nos fez estremecer, exclamando: ‘coisa horrível a que vejo!’”.
O que viu Fernando Pessoa de tão terrível, que não quis dizer ao seu amigo Luís de Montalvor? Transcreve Plínio Salgado a que teria sido a opinião do editor da Ática:
“- Certamente, Fernando Pessoa teve a visão do seu fim, pois algum tempo depois, suicidou-se. Naquele momento, talvez, apareceu-lhe o quadro de sua própria morte”.
Estranha forma de morte – poderíamos dizer, parodiando o famoso fado. Estranha forma, não pelo gesto em si, mas porque assim não aconteceu. Plínio Salgado inventa uma causa mortis falsa, e um depoimento que talvez também não haja existido nesse ponto específico. Acrescenta o intelectual integralista:
“Essa opinião de Montalvor foi também a minha, porém estávamos enganados. Alguns anos depois, a verdadeira cena que Fernando Pessoa vira, ao despedir-se do amigo, ocorreu, estarrecendo a população de Lisboa”.
A partir daí, ele passa a contar a história da morte dos Montalvor, no carro conduzido pelo seu filho Dante:
“Tinham ido à missa e, ao deixar a igreja, tiveram a ideia de se dirigirem ao cais do Tejo para ver a grande enchente que elevava o rio a vários metros. Ao se aproximarem das águas revoltas, Dante, ao que tudo indica, teve um desmaio. O carro prosseguiu caindo na correnteza. Passageiros de uma barca procedente da outra margem viram, à proporção que o automóvel afundava. D. Ema, desesperada, a bater com o cabo do guarda-chuva no vidro traseiro. Minutos depois, o veículo submergia. Acabava-se a família Montalvor”.
Plínio Salgado estende o seu relato sobre “o mistério das intuições premonitórias”. Recorre ao escritor francês Édouard Schuré (1841-1929):
“Para o espírito, conforme nos explica Schuré, não existem nem passado, nem presente, nem futuro, sendo o tempo uma unidade que transcende ao relativismo de nossas concepções do movimento. para o espírito, o que vai acontecer é como se já tivesse acontecido. E Fernando Pessoa viu o que muitos anos depois iria suceder”.
Curiosa antecipação, ao menos em parte, da ideia de Tempo Tríbio, formulada por Gilberto Freyre. Similar, mas sutilmente diversa, num ponto: Freyre não trata de abolir os tempos, mas de fundi-los.
A nota final de Plínio Salgado, homenageando o grupo de Orpheu, tem um tom nostálgico e melancólico:
“Tocado por profunda mágoa, lembrei-me da última vez em que vi Montalvor, sua esposa e filho. Foi no aeroporto de Lisboa. Levavam-me um volume da Vida de Jesus, encadernado em couro, com fechos de prata e aplicações artísticas de granadas. Trazia em ouro a dedicatória: ‘ao grande escritor lusíada de além-mar e a sua tão espiritual companheira, testemunho afetuoso de Ema, Luís e Dante Montalvor’, nunca mais os vi, senão pela evocação de suas imagens, tornadas vivas e nítidas pelo sortilégio da saudade. Foi assim que desapareceu o último componente do grupo de Orfeu, assinalado pelo mesmo doloroso destino de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa e Ronald de Carvalho e, mais do que eles, marcado para um fim espetacular”.