UM VAPOR DO MAL
Do tratado de Sêneca aos personagens de Homero; desde Montresor, de “O barril...” (1846), de Poe, enterrando o vaidoso Fortunato, vivo, ao miserável Heathcliff desenterrando o corpo de Catherine, nO Morro dos Ventos Uivantes (1847), de Emily Brontë, chegando à obsessão do capitão Ahab, de Moby Dick (1851), escrito por Melville, a raiva, esparramada ou não, tem origem em outra emoção: o medo.
Isso inclui o próprio medo da raiva.
Assim vê e crê o sempre “raivável” Riobaldo, de raivas nem sempre abertas, em seu “monólogo”, Grande Sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa: “O prazer muito vira medo, o medo vai vira ódio, o ódio vira esses desesperos?” “Raiva tampa o espaço do medo, assim como do medo a raiva vem.”
A raiva é assim mesmo: uma emoção mesclada por outras emoções, um sentimento reprimido, de protesto, insegurança, frustação ou timidez ou todas essas coisas juntas. Sua intensidade e proporcionalidade varia de pessoa a pessoa. Da agressão verbal ou física até o isolamento, a comportamentos autodestrutivos, tudo está no reino desse redemunho. Mas o desejo de vingança, motivada por afetos negativos, como a raiva, é o mais comum e literário dos seus resultados. Esse efeito colateral da raiva é sempre um topos: na literatura, no entretenimento popular, nos textos religiosos, e até nas leis, como resposta natural dos humilhados e ofendidos.
E, em todos os casos, e são muitos na literatura, desde quando Medeia mata os filhos, ou quando o rei Lear expulsa a filha Cordélia de seu reino, a raiva, esse “vapor do mal”, nasce do desejo de retaliação.
A palavra desejo nos leva direto à psicanálise e a Sigmund Freud, que fez observações clínicas sobre impulsos agressivos em alguns dos seus textos mais importantes. Desde o artigo “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” (1905) a Mal-estar na civilização (1929), no qual apresenta a agressividade do homem como o principal fator de ameaça à vida em sociedade, Freud aponta essas manifestações como reações humanas inatas. É algo complexo a explicar, porque a raiva é também importante para a autopreservação do indivíduo.
Todavia, os problemas podem surgir a partir da repressão.
Essas emoções reprimidas, como a raiva, nunca morrem, diz Freud. São enterradas vivas e, em alguma hora, voltam à superfície, de forma descontrolada e destrutiva. A ideia não pode ser mais literária e precisa. Mas os fenômenos sempre transbordam as teorias, quando o assunto é o humano.
A literatura e o teatro vivem desses excessos e dos transbordamentos. Pelos titãs, heróis, gigantes. Pelos anões, também, pelo homúnculo, por qualquer assimetria, para mostrar o desequilíbrio do mundo, e tentar algum equilíbrio no jogo das emoções. A literatura e o teatro se interessam sobremaneira por essa raiva além da medida. Da vingança aniquiladora de Medeia ou de Hécuba, o delírio ciumento de Otelo, a fúria cega do capitão Ahab, chegando-se aos dias atuais, a raiva exerceu e sempre exercerá grande fascínio sobre escritores e leitores ao longo dos séculos.
MAÇÃ ENVENENADA
Nem só da literatura terrível vive a raiva, ou a expressão estética dessa emoção.
Há ainda a terrível literatura chamada infantil.
Em Branca de Neve (1812), dos irmãos Grimm, é a raiva da Rainha Malvada ao descobrir que a heroína permanece viva e bela, que a leva a consumar tudo com a maçã envenenada.
A mais singela estória d’Os três porquinhos (coletada por Joseph Jacobs, em 1890) nada mais é que a demonstração da raiva do Lobo Mau, com seus planos sempre frustrados.
Além disso, aquele conto de 1843, escrito por Hans Christian Andersen, o que é senão a esmagadora pressão da raiva de uns irmãos e uma mãe (embora adotiva) sobre um patinho feio?
Não é à toa, ainda, que se chama Fera o personagem dominado pela raiva, em A bela e a fera (1740) originalmente escrita por Gabrielle-Suzanne de Villeneuve, na França.
Por um ângulo, a raiva nos contos infantis aparece como uma emoção “desagradável”, “a sombra e o mal”. Por outro, igual ao que ocorre nas fábulas, surge como sentimento ou ação edificante, capaz de estimular mudanças. Isso se dá, por exemplo, com a Fera ou o Patinho Feio, citados: a raiva pode ser superada e transformada em crescimento. Já em outros contos, vilões como o Lobo Mau e a Rainha Malvada, de Branca de Neve, a raiva, porque obsessiva, só pode levar à destruição. A “lição” é dura demais para uma criança. É como se ela não pudesse sentir raiva. Cercada pela moral, a raiva é, em si, a vilã das emoções. É preciso higienizar a alma da criança. Assim está o mundo.
A psicanalista Marie-Louise Von Franz (1915-1988) dedicou sua vida aos contos de fada e sua interpretação clínica. Entre seus estudos, está A sombra e o mal nos contos de fada. O termo “sombra”, no título, é a expressão de um conceito da psicologia junguiana. Embora não tão fácil de simplificar, tem a ver com a personificação de (in)certos aspectos inconscientes da personalidade. A parte não-vivida, sufocada, do ego, grosso modo. A parte reprimida, de ego, grosso modo.
Há estudos neurológicos importantes, para se compreender como raiva e vingança se entrelaçam, inclusive ao crime. Entre eles, o artigo “A vingança é doce: investigação dos efeitos da raiva...”, de Threadgill e Gable, parte do estudo Mapeamento do cérebro humano, publicado em 2020 pela Biblioteca Nacional de Medicina dos EUA. O artigo discuter como a raiva pode impulsionar reações capazes de fazer alguém buscar a oportunidade de retaliação contra um transgressor. Experimentos atuais descobriram que a raiva tende a aumentar a sensação de recompensa, especialmente quando esse objetivo é a vingança. Essa “frouxa nervosia”, como diz Riobaldo. Esse desejo de devolver uma dor, como disse Sêneca. A ideia de eliminar a raiva e seus vapores.
BUDAS E CRISTOS NA CAPA
Mas se pode mesmo banir a raiva? Há como mantê-la sob controle? Haverá uma técnica terapêutica, como o tratamento Ludovico, em Laranja mecânica, romance distópico de Anthony Burgess, publicado em 1962?
Algumas correntes religiosas e filosóficas não avançam tanto, mas acreditam que se possa buscar o banimento da raiva do repertório dos chamados estados psíquicos.
Buda orienta a abandonar a raiva, porque a considera um sofrimento desnecessário. Mas para Buda é fácil. O leitor verá muitos livros de autoajuda, com budas e cristos na capa, no mercado editorial, prometendo esse controle.
Porém, há opiniões sérias sobre o assunto. A historiadora Barbara Rosenwein, professora emérita de história na Loyola University Chicago, demonstrou em seu estudo sobre a história da raiva, como outras tradições filosóficas e religiosas são bem menos otimistas quanto a se manter a raiva sob o controle da razão. Noutro diapasão, essa rejeição, quase estoica, da raiva, é um ponto defendido pela pensadora americana Martha Nussbaum. Ela ensina que certos “restos emocionais” como o rancor e a amargura devem ser eliminados. Nussbaum talvez seja uma otimista, por isso recomenda tocar a vida em frente, sem nos prendermos ao passado e ao que se sofreu. Sua teoria é baseada em um tipo de perdão nas relações, que tem fortes ligações com o catolicismo e o judaísmo. Enfim, um jogo de renúncias, que se aproxima tanto à psicanálise quanto ao platonismo, em um universo mental em que a raiva é mantida dentro das linhas racionais.
A ciência, tão racional, explica a raiva e vingança de Clitemnestra ao matar seu marido Agamenon com um machado; e Orestes, ao matar a mãe, Clitemnestra, para vingar o pai; e o mais vingativo dos homens, Hamlet, ao matar alguns antes de dar cabo do tio Cláudio, assassino do seu pai; explica Otelo assassinar Desdêmona por raiva e ciúme? Tenta entrar na cabeça de Tito para lhe perguntar por qual razão matou os filhos de Tamora, cozinhou seus corpos e os serviu a própria mãe, antes de matá-la? Ou, ainda no reino de Shakespeare, vemos crescer a raiva e ambição no coração de Macbeth? Explicará porque Raskólnikov, inflado pela raiva e ressentimento mata a velha Aliona, em Crime e castigo? Ou a razão de um homem matar outro somente porque sentia raiva do seu olho doente, como em “o coração delator”, de Poe, ou Meursault, de O estrangeiro, dominado por raiva não contida nem controlada e o calor do sol, assassina um árabe com um tiro? Compreenderá a ciência a razão de Paulo Honório ser tão persecutório a ponto de levar Madalena à derrota emocional e ao suicídio? Não dá para saber. A literatura não precisa tanto assim de cientistas e juízes. Essas serão história da raiva que ouviremos e leremos até o fim dos nossos dias calmos sobre a Terra, quando toda raiva será banida do mundo.