Uma amizade mística

Mais do que parceiros na música brasileira e na boemia carioca, Antônio Maria e Vinicius de Moraes mantiveram, nas palavras do Poetinha, uma “identidade espiritual”

A longa e apaixonada amizade com o poeta Vinicius de Moraes pode ser uma chave para descerrar a alma de Antônio Maria. Mais do que parceiros, os dois viveram, nas palavras de Vinicius, uma “identidade espiritual”. Não foram só dois poetas, dois artistas que compartilharam as mesmas inquietações e as mesmas trilhas. Foram dois artistas que dividiram a mesma visão espiritual e o mesmo sentimento do mundo.

Diplomata de carreira acostumado aos protocolos e à solenidade do mundo diplomático, autor de sonetos, de poemas metafísicos e de versos elevados, crítico de cinema fino e erudito, o poeta Vinicius de Moraes se apegou a Antônio Maria como a um preceptor, que o guiava em suas descidas às belezas e aos segredos do baixo mundo. Juntos, e felizes, livres dos protocolos e da afetação do mundo literário, os dois amigos faziam a ronda noturna dos bares cariocas. No Rio de Janeiro, podiam ser vistos durante a madrugada no Vilariño, em frente à Associação Brasileira de Imprensa; no Vermelhinho, na Rua Calógeras, a duas quadras da Academia Brasileira de Letras; ou, já em Copacabana, no Au Bom Marché, onde se apresentavam também Tom Jobim e João Gilberto. Tornaram-se, juntos, personagens da noite carioca.

Em longas conversas, que atravessam as madrugadas, os dois fizeram juntos grandes descobertas. Por exemplo, de que seriam parentes distantes, através de uma linhagem dos Moraes radicada em Pernambuco, da qual descenderia, ainda, o poeta João Cabral de Melo Neto. Segundo essas investigações noturnas, regadas a música e a uísque, o nome Moraes viria do espanhol antigo, de “morales”, isto é, “lugar onde havia amoreiras”. O elo sanguíneo passaria, ainda, pela família de usineiros Ferreira de Moraes, radicada na zona de mata, em Pernambuco.

Homem de muitas faces – disse certa vez: “Se eu fosse um só não me chamaria Vinicius de Moraes, mas Vinicio de Moral – , o poeta Vinicius encontrava em Antônio Maria um semelhante, senão um duplo. Se existem muitos Vinicius, existem também muitos Marias. Antônio Maria foi cronista, compositor, autor de marchinhas de carnaval, poeta lírico, letrista, humorista, gourmand, produtor e diretor de rádio e de TV. Impossível dizer quantos Marias cabiam dentro daquele gigante desengonçado, de 1.80 m de altura, chamado Antônio Maria!

Vinicius de Moraes tinha a respeito de Maria um intenso sentimento não só de amizade, mas de posse. Tanto que se referia a ele, em geral, como “o meu Maria”. Vinicius o adorava. Algumas vezes o vê como um santo, ou um anjo caído na Terra, fantasiado com os figurinos da contingência – mas santo, ainda assim. “Às vezes, posso vê-lo num burel de monge”, escreveu certa vez. “Nessas horas, eu o vejo em um mosteiro, caminhando entre roseiras, dando de comer a pombas brancas”. Se não era um santo, era um místico.

A paixão de Vinicius por Maria o leva a lhe dar de presente a parceria de um samba, “Quando tu passas por mim”, que, na verdade, ele compôs sozinho. Foi o primeiro samba de que Vinicius fez a música e a letra. Talvez por não suportar a solidão da estreia, preferiu ter Maria assinando música a seu lado. Antônio Maria entrou para a história da música popular não como o autor da letra, que o próprio Vinicius assinou, mas como autor da música.

A amizade entre eles tem muitos desdobramentos. Por exemplo, durante os anos 1950, eles foram dois frequentadores habituais do apartamento do cronista Rubem Braga na Rua Barão da Torre, em Ipanema. Na mesma época, podem ser vistos sempre juntos no famoso Juca’s Bar, na Rua Senador Dantas, no centro do Rio. Depois de atravessar uma noite bebendo em um bar de Copacabana, os dois amigos resolvem dar uma caminhada pela calçada da praia. Diante deles, alguns senhores de idade se empenham em exercícios de ginástica. “Veja como eles são ridículos”, Vinicius diz. E desafia Maria: “Quero fazer contigo um pacto. A partir daqui jamais faremos qualquer esforço inútil”.

Vinicius era “viciado” em Maria – e por isso a perda do amigo o destroçou. Em 1964, o poeta passava uma temporada de descanso em um chalé de Visconde de Mauá, na Serra da Mantiqueira, quando um amigo o avisou da morte de Antônio Maria, vítima de um ataque cardíaco. Maria tinha só 43 anos de idade. Depois de se recuperar do baque, Vinicius, mais uma vez, tentou se salvar da dor através da escrita. Foi para a varanda do chalé e se pôs a rascunhar uma crônica de despedida do amigo. De repente, um pássaro gorducho entra pela varanda, dá algumas voltas em torno de sua cabeça e, em uma doce brincadeira, tenta, ainda, lhe arrancar os óculos. Um calafrio sacode Vinicius: só pode ser Maria, encarnado no pássaro, que veio até Visconde de Mauá para se despedir.

Aturdido, com seu coração influenciável, Vinicius passa a ver Maria por toda parte. Por exemplo, em um galo que, de repente, se posta à sua frente, imóvel, e passa a encará-lo. “Quem mais poderia ser aquele galo senão o Maria, que não se esqueceu de mim”? – explicaria depois, ainda grato e comovido com a aparição. A morte, em vez de fazer Antônio Maria desaparecer, desdobra sua imagem em vários corpos, multiplica o amigo, aumenta-lhe a presença e a vida.

Mas o pior vem à noite. Ainda abatido e insone, Vinicius de Moraes resolve dar uma caminhada em um bosque de eucaliptos. E aí, de repente, vê: Maria, jura que vê, que, encostado a um tronco, silencioso, o encara. Entre a alegria e o medo, o poeta volta para seu quarto – isso não antes do fantasma de Antônio Maria desaparecer. E, como a fúria dos abandonados, passa a escrever – ou a “psicografar”, como diria depois – uma longa entrevista com o amigo perdido. Nessa entrevista, proferida desde o Além, Maria faz longas reflexões a respeito da morte, e ainda dita uma mensagem para o presidente Castelo Branco, que acabara de assumir o poder, depois de um golpe, seis meses antes.

Vinicius julgava que Maria era, na verdade, um poeta, e grande poeta. Gostava de dizer: “Poeta não é aquele que escreve poesia. Poeta é poesia, ou não é poeta”. Maria era poesia, pura poesia, e isso lhe bastava, argumentava. Como letrista, Antônio Maria foi, antes de tudo, um iniciador do “samba de fossa”. Sambas cheios de melancolia, cantados por corações rasgados e movidos por angustiantes dores de cotovelo. O “samba de fossa” começa, provavelmente, com o samba-choro “Ninguém me ama”, que Maria compôs em parceria com Fernando Lobo, gravado por Nora Nei em 1952. O “samba de fossa” retoma a tradição de Lupicínio Rodrigues, Nelson Gonçalves, Dolores Duran e Tito Madi. Artistas para quem o amor parece ser, antes de tudo, uma doença.

Mesmo ultrapassando a perspectiva melancólica de Antônio Maria e do samba de fossa, Vinicius de Moraes não perde – ao contrário, dele incorpora – o forte veio romântico. Para Vinicius, ao contrário dos “músicos da fossa”, o amor não precisa se transformar em sofrimento para ser levado a sério. Faz, ainda, uma distinção decisiva entre a fossa e a melancolia: enquanto a fossa se relaciona à perda de uma relação concreta, com nome e endereço, a melancolia é vaga, é um sentimento vago de tristeza que dispensa o objeto amoroso. Como explicou certa vez: “Você não tem nada, não lhe aconteceu nada, e mesmo assim você está mal”. Por vias diversas, e até contraditórias, Vinicius de Moraes e Antônio Maria se tornam dois grandes poetas do amor.