A morte imita a arte

Breves apontamentos sobre alguns aspectos estéticos e éticos de Mishima, no seu centenário

Cinco homens invadem um quartel. Estão armados e vestidos como samurais. Fazem de refém o comandante. O líder dos invasores fala a uma multidão de soldados. Concluído o seu discurso, rasga com uma adaga o próprio ventre. Ato contínuo, tem a cabeça cortada pelos seus seguidores, que cumprem um roteiro de imitação macabra. Todos eles se matam.

Um leitor avisado sabe que não se trata de uma cena de romance, conto ou filme. Mas do último e curto capítulo da vida do escritor Yukio Mishima (1925-1970). Premeditado. Meticulosamente. Como uma obra de arte. Numa sequência fria, Mishima seguiu bem a agenda planejada para aquele 25 de novembro de 1970.

Cuidou de entregar ao editor o seu último manuscrito, e só mais tarde, rumou ao quartel da Força de Autodefesa. Foi recebido sob o pretexto de uma visita de cortesia, em que daria a um general uma espada rara. Prendeu o general, rendeu os guardas, e da varanda do quartel fez suas proclamações, sob a indiferença e o escárnio dos soldados. Depois de gritar três vezes ‘viva o imperador’, praticou o sepukku, terminando por ser decapitado pelos que tomavam parte no seu pequeno exército pessoal. Com a cabeça cortada, apenas depois de três tentativas, teve uma morte horrivelmente dolorosa.

“Por quê? Para quê? Perplexidade”. De pouco serve, ao escrever-se sobre o suicida Mishima, repetir as palavras do suicida Maiakovski sobre o suicida Iessiênin. Cada um teve suas razões e desrazões. Quem perguntou num verso “para que aumentar o rol dos suicidas?” foi o mesmo que pôs em si mesmo, anos depois, “o ponto final de um balaço”.

A exclamação cortante do haraquiri não altera em uma vírgula sequer a importância dos escritos de Mishima. A inutilidade do seu gesto extremo apenas acende outras narrativas, com interrogações e reticências. Na conspiração nem sempre bem-sucedida entre a vida e a obra de um escritor, esta quase sempre leva a melhor.

Nas motivações para a morte voluntária raras vezes aparecem os ideais, no sentido antigo do termo. Por mais que se repita de cor a frase de Albert Camus (1913-1960) sobre o suicídio, “o único problema filosófico sério”. Ou a de Emily Dickinson (1830-1886): “morri por beleza”. Dramatizada num diálogo entre tumbas. Como aquela ‘amizade verdadeira, de uma caveira para outra caveira, do meu sepulcro para o teu sepulcro’, do tragicômico verso de Augusto dos Anjos (1884-1914).

Bem pôde uma poetisa como Dickinson expressar a ideia de morte por beleza. Mas, ela, a autora do verso, morreu por causa de um problema nos rins, ou em consequência da hipertensão que sofria. Ninguém pergunta, obviamente, do quê, nem como, morre um suicida, e, sim, “por quê?” Tratando-se de Mishima, antes de ceder-se à tentação de colocar a causa política como causa mortis, deve-se fazer um passeio pelas veredas de sua vida e literatura.

Tudo parece na vida de Mishima andar sob o signo da dualidade. Isso aparece bem nítido na sua biografia. A obra literária segue uma linha muito mais coerente, mas construída, em totalidade, por máscaras. Sabendo-se disso, não chega a ser propriamente uma surpresa ele ter usado um pretexto político para matar-se. Do contrário, não seria contraditório. Alguns anos antes, havia dito, numa entrevista, quando lhe perguntaram sobre a Segunda Guerra:

“Mentiria se dissesse que a derrota não me estremeceu ou que não recebi o pós-guerra com um sentimento de liberação. Também eu senti, em determinado momento, que estava totalmente perdido. Cheguei a odiar o romantismo. Um ódio que me aproximou do classicismo. Foi quando escrevi O rumor das ondas. Entretanto, por muito que sofresse, não consegui negar-me completamente a mim mesmo. Além disso, não tinha interesse algum por isso que chamam de política. Como estava cego para assuntos políticos, não entendia bem as correntes políticas do pós-guerra. Se me punha a articular pontos de vista políticos isto me causava tal confusão, que sentia vergonha, de verdade. Assim, pois, e como escapatória, tomei a decisão de encarnar o papel de intérprete da supremacia absoluta da arte”.

O menino de sua avó

Há autores lunares e solares. Mishima é do primeiro tipo. Um estudo interessante sobre sua inclinação ao mórbido, patológico e perverso foi feito por Alice Miller. Ela explora uma série de particularidades biográficas que vale a pena mencionar. Lembra que, já no começo da vida, abriu-se ao menino um leque familiar doentio. Começando pela avó, que sofria com mais de uma enfermidade. Ela, então com 50 anos, levou o menino Mishima para morar consigo. No seu quarto. Numa cama ao lado da sua. Em qual geografia mais ampla encontram-se os dois?

Mishima era de Yotsuya, em Tóquio. Embora esse bairro seja citado como de classe alta, estava mais para aquele tipo de nobreza esquecida. Sequer levado em conta, quando houve a reconstrução, após o terremoto Kantō, de 1923 (dois anos, portanto, antes do nascimento de Mishima).

Foi nessa atmosfera de pós-ruína ainda não de todo restaurada que ele respirou os primeiros anos de vida. Da sua avó Natsuko vieram as primeiras lições de morbidez. Sofria ela com a ciática, e não aliviavam as dores saber-se de origem nobre: uma prestigiosa família de samurais.

O marido dela, depois de ocupar o importante posto de diretor-geral da Agência de Karafuto (sul da ilha de Sakhalin), perdeu o emprego. Em consequência de um escândalo político. Isso contribuiu para acentuar nela a insatisfação com a sua condição, piorada pela baixa autoestima, rumo seguro para a depressão.

A infância de Mishima cheira a decadência e a sonhos frustrados. Num meio em que ninguém gostava de ser como era. Suas futuras obsessões com o vigor físico indicam mais fragilidade do que força. Ao ser amparado pela avó enferma, ganhava um refúgio, mas não resolvia a debilidade de sua própria saúde. Na infância e parte da adolescência chegou a passar temporadas em quartos de hospitais.

A literatura, para a maioria dos autores, antes de ser um meio de vida, é uma forma de enfrentar a solidão e o sofrimento. O refúgio aponta para a fuga, mas a busca nem sempre conduz ao encontro. Ler e escrever cumprem uma função quase terapêutica, na construção de uma realidade paralela formada por palavras e imagens. Foi assim que Mishima procurou nas letras e nos desenhos uma solução temporária e precária para um mundo sem salvação. O dos outros, e, sobretudo, o seu próprio. A literatura não era uma ambição (como bem expressou outro poeta, Fernando Pessoa), mas uma “maneira de estar sozinho”.

Conta-se que, Mishima, aos 10 anos de idade, teria terminado um conto de fadas chamado de “As maravilhas do mundo”. História ambígua da chegada do outono à ilha de Gokuraku. Maravilhas algo sombrias, pois se apaga a chama de uma vela e a escuridão total varre o lugar.

Para muitos o mundo atual padece dos males de um viver hiperconectado. Na verdade, trata-se de algo mais complexo. A conexão excessiva só é possível com uma alienação associada e não menos desmesurada. Na primeira infância, Mishima desconecta-se do mundo, mas conecta-se na avó. Na segunda infância e na juventude, a literatura assume o seu lugar.

Deve ter influído ou se impregnado nele as repetidas crises de depressão de sua avó, ao nível da histeria. Ficou na memória do ‘menino da sua avó’ o calor extremo e o mau cheiro do quarto, onde ficavam juntos. Um quarto assim aos quatro anos parecia o anagrama perfeito de uma primeira infância e uma primeira doença castigadora do corpo: a autointoxicação.

Depois desses anos de peculiar isolamento, ele começa a conviver na escola, aos seis anos, com outras crianças de sua idade. Sente-se estranho e deslocado. Mais três anos se passam, e a única mudança é a de lugar, feita pelos pais, que não o levam consigo. A avó continua a protegê-lo. Ele começa a escrever poesia. Outros três anos mais, e volta a viver com os pais. A mãe, ao descobrir o filho poeta, enche-se de orgulho, como a avó. Mas o mesmo não ocorre com o pai, que rasga aqueles manuscritos infantis.

A poesia passou a ser para Mishima um vício secreto. Ou talvez melhor: uma Jura secreta. Como na canção de Sueli Costa, cujos versos bem podiam ser subscritos por um aprendiz de escritor, ainda adolescente, e, morbidamente, romântico:

Nada do que posso me alucina
Tanto quanto o que não fiz
Nada do que eu quero me suprime
De que por não saber ainda não quis

Só uma palavra me devora
Aquela que meu coração não diz
Só o que me cega, o que me faz infeliz
É o brilho do olhar que não sofri

Sentia-se Mishima, nos seus primeiros anos de vida, entre extremos negativos. Nem era a menina, que a avó queria que fosse; nem o macho forte, almejado, violentamente, pelo pai.

Sua verdadeira educação sentimental/emocional não a obteve na família, mas no teatro. Ao acompanhar a avó, que gostava de assistir aos espetáculos. Diz Alice Miller, em A revolta dos corpos:

“No meu entendimento, o suicídio de Mishima é a expressão de sua incapacidade para viver os prévios sentimentos infantis de rebelião, ira e indignação pelo comportamento de sua avó, sentimentos que Mishima nunca pode exteriorizar porque estava agradecido. Sentia-se muito só e, em comparação com o comportamento do pai, a avó deve ter parecido a ele uma salvadora”.

Mais detalhado em sua contextualização é Henry Scott Stokes, na biografia A vida e a morte de Yukio Mishima. Explica, inclusive, em glossário, a terminologia da morte no Japão, definindo-a com clareza. Um exemplo é Seppuku: “O termo japonês para hara-kiri, que tem um elemento de admiração pelo ritual”. Contextualiza:

“Meu estudo dos primeiros anos da vida de Mishima se baseia em grande medida em uma única fonte, sua obra-prima autobiográfica Confissões de uma máscara. Este romance é uma das muitas obras de Mishima. Revela mais de seu caráter e de sua educação que qualquer outra coisa que haja escrito. Confissões de uma máscara descreve a gênese de uma ideia romântica que influi diretamente em sua decisão de suicidar-se. A ideia de que a morte violenta é a beleza suprema, sempre que quem morra seja jovem. Assim, Mishima se inspirou na antiga ideia de que a beleza é efêmera. Trata-se de uma ideia particularmente japonesa e se repete amiúde na literatura clássica: por exemplo, nas crônicas do século VIII Nihonshoki e Kojiki, e no monumental romance do século XI A história de Genji. Mishima, no entanto, deu um giro romântico à tradição clássica; tinha tanto em comum com a cultura contemporânea do Ocidente – por exemplo, o culto à violência nas canções de rock ocidentais, e no cinema – que com o Japão clássico. Desde a mais tenra idade, sempre foi acessível às ideias ocidentais e aos clássicos da nossa infância”.

Uma leitura ainda mais aguda do episódio final da vida de Mishima foi feito por Marguerite Yourcenar (1903-1987). Quando publicou Mishima, ou a visão do vazio, em 1980, fazia já uma década do suicídio ritualizado dele. Seu ensaio tem a fineza de não só esclarecer o autor, mas todo um tempo. Como neste parágrafo:

“Já se foi o tempo em que se podia saborear Hamlet sem se preocupar muito com Shakespeare: a curiosidade grosseira por anedotas biográficas é uma característica de nossa época, e os métodos de uma imprensa e mídia voltadas para um público que cada vez sabe ler menos”.

As questões da biografia generalizadas por Miller ganham exemplos ricos de sentido traduzidos por Yourcenar:

“O mais estranho é que muitas dessas crises emocionais da criança ou do adolescente Mishima nascem de uma imagem tirada de um livro ou filme ocidental ao qual o jovem japonês, nascido em Tóquio em 1925, se abandonou. O garotinho que joga fora uma bela ilustração de seu livro ilustrado porque sua empregada lhe explica que não se trata de um cavaleiro, como ele pensa, mas de uma mulher chamada Joana D’Arc, vivencia o fato como um engano que o ofende em sua masculinidade pueril: o que é interessante para nós é que foi Joana quem inspirou essa reação nele, e não uma das muitas heroínas Kabuki disfarçadas de homem”.

Uma vida presumida, resumida

Sabendo-se de antemão as últimas cenas e datas, convém recuar ao começo e, depois, avançar, cronologicamente, pela sua vida, pari passu as obras.

Kimitake Hiraoka (nome real de Yukio Mishima) nasceu em Tóquio, Japão, no dia 14 de janeiro de 1925, e morreu, na mesma cidade, em 25 de novembro de 1970. Os apenas 45 anos de vida impeliram uma produção impressionante em quantidade e qualidade. Dezenas de romances, peças de teatro, ensaios, contos e poemas.

Um aspecto não desdenhável do cruzamento entre sua história pessoal e a História é a chamada era Shōwa. Teve início no Japão no ano seguinte ao seu nascimento, e tal “período de paz ilustrada” foi marcado várias vezes por turbulências, sendo a mais grave delas a Segunda Guerra Mundial. A derrota levou o Japão a ser ocupado pela primeira vez na história por uma potência estrangeira, no caso os Estados Unidos, e por sete anos. só em 1952, quando Kimitake Hiraoka contava já 27 anos de idade o Japão voltou a ser novamente uma nação soberana. Diferentemente de muitos japoneses, ele não assimilou, de modo nenhum, aquela perda. Ao mesmo tempo em que sua própria obra resulta de uma mescla. Dos rígidos valores tradicionais do Japão e pegajosas influências da Modernidade ocidental, sem começo nem fim bem definido.

CONTEÚDO NA ÍNTEGRA NA EDIÇÃO IMPRESSA

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