Os traços e a permanência de Péricles e do Amigo da Onça

O cartunista pernambucano Péricles de Andrade Maranhão completaria 100 anos neste mês de agosto.

Centenário de nascimento do cartunista pernambucano, criador d’O Amigo da Onça, resgata trajetória do fenômeno popular do humor gráfico brasileiro no século XX
Centenário de nascimento do cartunista pernambucano, criador d’O Amigo da Onça, resgata trajetória do fenômeno popular do humor gráfico brasileiro no século XX

“Dois caçadores conversam em seu acampamento:

— O que você faria se estivesse agora na selva e uma onça aparecesse na sua frente?
— Ora, dava um tiro nela.
— Mas se você não tivesse nenhuma arma de fogo?
— Bom, então eu a mataria com meu facão.
— E se você estivesse sem o facão?
— Apanhava um pedaço de pau.
— E se não tivesse nenhum pedaço de pau?
— Subiria na árvore mais próxima!
— E se não tivesse nenhuma árvore?
— Sairia correndo.
— E se você estivesse paralisado pelo medo?

Então, o outro, já irritado, retruca:

— Mas, afinal, você é meu amigo ou amigo da onça?”

Essa era uma das piadas mais populares do Brasil, nos anos 1940. Circulava pelas mais diversas cidades e rincões do país. Transitou de carro, de trem, de jegue e a pé, tanto que resiste até hoje, sendo ainda ouvida pelas novas gerações. No início daquela década, essa anedota foi além do riso e provocou um impacto profundo na vida de um pernambucano, Péricles de Andrade Maranhão.

Nascido em 14 de agosto de 1924, no Bairro do Espinheiro, zona norte do Recife, Péricles, desde cedo, demonstrou talento para desenhar. Leitor das histórias em quadrinhos de personagens como Dick Tracy, Agente Secreto X9 e Flash Gordon, o garoto vivia rabiscando. Embora gostasse de brincar com outras crianças e jovens de sua idade, seu passatempo predileto era com papel e lápis.

Estudante do Colégio Marista, cujo jornal interno fez a primeira publicação de um desenho seu, o ponto de virada na vida do garoto de classe média baixa surgiu quando participou de um concurso para a Semana do Trânsito, organizado pelo escritor Souza Barros. Mesmo disputando com nomes como Lula Cardoso Ayres, Manoel Bandeira (o pintor) e Eros Gonçalves, o adolescente conseguiu alcançar o primeiro lugar. Encorajado pela vitória, levou seus desenhos ao Diario de Pernambuco.

Seus traços entusiasmaram o diretor do jornal, Aníbal Fernandes, que, no dia 5 de novembro de 1940, publicou sua opinião. O jornalista escreveu sobre “um garoto que entrou pela redação com um rolo de desenhos” e arrematou em tom profético: “Guardem bem seu nome: Péricles Maranhão. Quem viver verá se ali não está um artista, sobretudo se tiver ambiente para estudar e produzir”.

Péricles não parou por aí. Com apenas 17 anos, reuniu seus desenhos, enfrentou a timidez e arriscou uma viagem até à capital do país, com uma carta de recomendação de Aníbal Fernandes. No Rio de Janeiro, procurou Leão Gondim de Oliveira, diretor da então mais famosa publicação do país, O Cruzeiro.

Criada em 1928, pelos Diários Associados, conglomerado de mídia de Assis Chateaubriand, a revista semanal atraía o interesse dos leitores com matérias de entretenimento, comportamento, artes; além de dicas de saúde, beleza, moda, turismo, curiosidades, intercaladas por notícias sobre a política nacional e internacional, e muitas fotos de gente feliz na praia. As capas eram atrativas e coloridas, estampando imagens de modelos sorridentes, celebridades, sub celebridades, políticos e artistas.

No início da década de 1940, O Cruzeiro vendia 11 mil exemplares, superados, em meados da década de 1950, por uma tiragem que alcançou 720 mil, em 1954, na edição sobre a morte de Getúlio Vargas. Eram números bastante expressivos, se levarmos em consideração que, na época, o país tinha pouco mais de 50 milhões de habitantes, sendo a população urbana composta por apenas 18 milhões. E do total, apenas 15 milhões eram alfabetizados.

Uma vez contratado como o mais novo funcionário de O Cruzeiro, Péricles começou a trabalhar como contínuo na empresa, no dia 6 de junho de 1942, em um ano muito agitado para o país. Em fevereiro, o cineasta Orson Welles já havia pisado no Rio para filmar It’s all true. Em agosto, o Brasil declarou guerra à Alemanha e à Itália, e em outubro, um novo padrão monetário substitui o mil-réis, o cruzeiro – nome e pleito propostos, em crônica de 1889, por Machado de Assis, que questionara “Por que não teríamos nós nossa moeda batizada?​​“

No ano de 1942, Péricles publica as histórias de Oliveira, O Trapalhão, seu primeiro personagem, na revista O Guri e no Diário da Noite, ambos dos Diários Associados. Na tirinha, baseada no conceito da “piada de português”, o autor começa a utilizar figuras pitorescas do Rio, como o coadjuvante Laurindo, malandro carioca, de pele escura, com direito ao inevitável clichê “camisa listrada”.

No ano seguinte, Leão Gondim de Oliveira pensou em um personagem fixo para O Cruzeiro, a partir de um cartum de Guillermo Divito, Enemigos del Hombre, publicado na revista argentina Patoruzú. Este, por sua vez, era inspirado em Enemies of man, da revista norte-americana Esquire. O editor já tinha até definido o nome: Amigo da Onça. Só faltava quem fizesse o desenho…

A sina do personagem parecia pertencer às mãos de um pernambucano. Augusto Rodrigues, primo do escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, que também já havia saído do Recife e se tornou um ilustrador e chargista bem-sucedido no Rio, foi sugerido para criar o desenho, mas recusou. A justificativa da negativa: não quis fazer “um tipo que já veio criado”.

O interesse de Gondim tinha respaldo nos fatos. O estouro do Yellow Kid – personagem do norte-americano Richard Felton Outcault, precursor das “tirinhas”, surgido em 1894 na revista Truth – já havia demonstrado a influência do humor gráfico na venda dos impressos. Nesse novo contexto, os cartunistas e chargistas passaram a ser valorizados e disputados – e conquistaram maior visibilidade quando as agências de distribuição (syndicates) começaram a vender as tirinhas para diversos jornais simultaneamente.

No Brasil, Zé Caipora (1869), do ítalo-brasileiro Angelo Agostini, era considerado o primeiro grande personagem do humor gráfico no país. Depois veio o Juca Pato (1929), do cartunista Belmonte, publicado na Folha da Manhã (atual Folha de S.Paulo). Com as vendas expressivas da revista em quadrinhos Tico-Tico (1907), cerca de 30 mil exemplares, Roberto Marinho, de olho no novo filão, lançou, em 1939, O Gibi, cujo êxito transformou a palavra que significa “moleque” em sinônimo de histórias em quadrinhos.

É nesse cenário favorável ao humor gráfico que Péricles chega ao Rio de Janeiro. Na então capital federal, morou por dois anos no mesmo prédio em que residia Millôr Fernandes, na Rua das Marrecas, situada no Centro, a uma quadra da Cinelândia e da Lapa. Nessa rua, também moravam Jorge Amado, Augusto Rodrigues e Alceu Penna (autor das Garotas do Alceu, publicada n’O Cruzeiro).

Não demorou muito para que Péricles fosse fisgado pela vida boêmia carioca. Frequentador de um bar na Rua Uruguaiana, foi lá que teve a inspiração para compor o Amigo da Onça. Um dos garçons que o servia costumava perguntar inconvenientemente o que o cliente estava desenhando na mesa. Certa vez, ouviu um comentário passivo-agressivo: “Você ganha dinheiro com esses rabiscos? Puxa, eu queria ter esse vidão!”

Péricles olhou para o homem e teve o estalo que precisava para criar o personagem: um sujeito de tamanho médio, olhos esbugalhados, bigodinho, cabelo preto impecável na brilhantina, paletó de linho branco, gravata borboleta e calça social preta. Nos cartuns, o Amigo da Onça poderia assumir qualquer profissão: barbeiro, médico, advogado, delegado ou apenas um grã-fino flâneur.

O objetivo era criar diferentes oportunidades para que os personagens secundários fossem colocados em situações constrangedoras, a partir de comentários do Amigo da Onça que expusessem mentiras, hipocrisias, erros, segundas intenções, (supostas) imperfeições dos seus coadjuvantes. Ou, simplesmente, a pura vontade do protagonista de perturbar a vida alheia.

Esse humor fazia muito sucesso com os brasileiros, que, fãs do personagem, passaram a identificar “amigos da onça” entre seus conhecidos. Foi assim que o português radicado no Recife, Antônio da Costa Oliveira, que costumava colocar, com suas brincadeiras, os colegas em situações embaraçosas, passou a ser apontado como a pessoa que havia inspirado Péricles.

O desenhista, quando morava no Espinheiro, frequentava a pelada dessa turma do Antônio, organizada em um terreno na Avenida João de Barros, próximo aonde hoje se encontra o viaduto (construído na década de 1970). “E até o biotipo do personagem era parecido com papai: calvo, bigode fininho, pequeno, baixinho”, afirma Paulo da Costa Oliveira, filho de Antônio e conhecido na boemia recifense como o antigo gerente do saudoso Balcão Centenário, onde, em meados do século XX, funcionava a bodega do pai.

Dream team

Além de colaboradores de peso no texto, como David Nasser, Joel Silveira e tantos outros, a redação de O Cruzeiro era repleta de garotos-prodígios na área das ilustrações: Millôr, Péricles, Ziraldo... O desenhista mineiro havia chegado à revista cheio de moral. Sua carta de recomendação foi endereçada à esposa de Leão Gondim – Amélia Whitaker Gondim de Oliveira, Dona Lili, presidente da revista.

Ziraldo foi responsável por uma reformulação gráfica na revista, que já havia passado por transformações editoriais a cargo do novo diretor Frederico Chateaubriand. Dentre seus planos de mudança, estava justamente O Amigo da Onça. Ele costumava pedir a Péricles para mudar o desenho, pois considerava que não estava condizente com os cartuns contemporâneos, publicados em revistas como Playboy, Look, Paris-Match. Péricles até levava o material para “estudar” em casa, mas argumentava que o povão não queria aquilo.

Se Ziraldo possuía talento e poder, Péricles também tinha seu trunfo: uma pesquisa de opinião confirmou que, dentre as 64 páginas de O Cruzeiro, ele era responsável por aquela de maior sucesso – e que atraía os anúncios mais caros.

No início, O Amigo da Onça era publicado na última página. Mas a direção percebeu que o público chegava às bancas para ver o cartum da semana e descartava a compra. Então, a empresa resolveu realocar o desenho nas internas. Muitas dessas páginas foram arrancadas por leitores para serem emolduradas em bares, restaurantes, oficinas de automóveis e barbearias.

Como nordestino e “homem do povo”, Péricles intuitivamente sabia como agradar o seu público. Tendo no DNA a irreverência pernambucana, sua fonte de inspiração era inesgotável. Ao publicar semanalmente durante 18 anos, a partir de 23 de outubro de 1943, criou quase mil situações cômicas para os seus cartuns.

Nas histórias, o personagem podia estar presente em qualquer ambiente, da favela à high society. Apesar de o Amigo já ter dado conselhos a Getúlio Vargas, o personagem não tinha vocação política – provavelmente, por isso, não sofreu perseguição do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo, órgão que vigorou entre 1939 e 1945. O conteúdo de suas anedotas expressava os costumes e comportamentos no cotidiano da sociedade da época, com seus conceitos e preconceitos. Mas eram inofensivos ao governo.

Alguns desses desenhos hoje não sobreviveriam a um simples post nas redes sociais, devido aos sinais de racismo, gordofobia e machismo - questões ainda distantes das preocupações de uma sociedade que, em meados do século XX, vivia suas primeiras décadas de República e de fim da escravidão, aumento populacional nas capitais, recentes conquistas trabalhistas e sociais, como o voto feminino, decretado apenas em 1932, dez anos antes da chegada de Péricles ao Rio de Janeiro.

Capturando, mesmo sem intenção, o espírito de seu tempo, O Amigo da Onça, devido à imensa criatividade de seu autor, foi o primeiro grande caso de – muito – sucesso de um produto do humor gráfico brasileiro. No auge do fenômeno, o personagem gerou brinquedos, enfeites, figurinhas, adesivos, artefatos natalinos e bibelôs – sem que o cartunista tivesse lucrado com isso.

O êxito avassalador d’O Amigo da Onça não causava somente uma pontinha de inveja nos colegas desenhistas, mas, de alguma forma, no próprio Péricles. Afinal, o criador era menos conhecido do que sua criatura – quando alguém falava sobre o primeiro precisava mencionar o segundo. “Que Péricles? – “Péricles, d’O Amigo da Onça” (Hoje, além do compositor Péricles Cavalcanti, o Brasil tem um outro Péricles famoso, o sambista).

Ser chamado de “Amigo da Onça” e ter sua personalidade confundida com a de seu personagem era outra coisa que o incomodava. Tímido, e muitas vezes introspectivo, costumava fazer seus desenhos em casa e os levava semanalmente à redação. Às vezes adiantava dois, três ou quatro desenhos e passava semanas sem aparecer.

E quando aparecia, aproveitava para ir ao refeitório da revista, almoçar e fazer chistes com a diferença no cardápio diário dos patrões e dos empregados – reforçada pela divisória que separava as duas castas no ambiente. Péricles ia comer junto aos funcionários do bandejão, enquanto Ziraldo sentava com o pessoal da diretoria.

Em casa, Péricles gostava de pintar e ouvir música, chegando também a compor um punhado delas (como Alvorada, gravada por Alvarenga & Ratinho, em 1948). Costumava desenhar na mesa da sala, depois do jantar, trabalhando, às vezes, até de madrugada. A esposa, Angélica Braga Guimarães, nessas ocasiões, apontava lápis, limpava a caneta nanquim e as borrachas. Era a primeira pessoa a ver os cartuns - ele gostava de testar seus desenhos a partir da reação dela.

Angélica era amiga da irmã de Péricles. Um dia, passeando pelo Rio de Janeiro, foi avistada por ele numa rua. O rapaz puxou conversa. E os dois começaram a namorar. Isso foi em 1948. Como ambos gostavam da vida noturna e de festas, viviam saindo à noite. A afinidade levou ao casamento, em setembro de 1949. Ainda sem pílula anticoncepcional, não demorou a surgir a gravidez. O filho (único) nasceu em 1950 e ganhou o nome do pai. Mas Péricles não abandonou a vida boêmia. Por isso, Angélica acabou pedindo o desquite em 1957.

A separação foi um dos motivos para que o cartunista tenha se afundado no alcoolismo. Ele também se sentia culpado pela morte do irmão, que havia precisado de uma cirurgia para retirada de um tumor no cérebro. Quando a ajuda chegou, já era tarde. Isso agravou a depressão de Péricles, que o levou à solidão. Então, durante o período das festas de final de ano, onde os espíritos fraterno e familiar são muito requisitados, o desenhista, sozinho em seu apartamento em Copacabana, ficou bastante vulnerável. Escreveu duas cartas, abriu o gás de cozinha e deixou um aviso anti-Amigo da Onça na porta: “Não risquem fósforos”.

“A quem interessar possa. São precisamente 14h30 do dia 31 de dezembro de 1961. Estou completamente sóbrio e não desejo culpar ninguém pelo meu gesto. Apenas estou me sentindo profundamente só. Os amigos, se assim posso chamá-los, estão em suas casas junto a suas famílias, o que não acontece comigo, pois a única família que possuo – minha querida mãe e irmã – está em Recife. Aqui, no Rio, não possuo um único parente, a não ser meu filho que se encontra com a mãe, pois sou desquitado e a mesma falou-me que iria passar o Ano Novo com a família dela, no Recife, pois são, também, pernambucanos. Conclusão: sou profundamente sentimental e nunca passei essa época sem uma palavra de carinho. Apenas a solidão me levou a este gesto extremo. Talvez assim as coisas melhorem para todos.”

Nas duas mensagens de Péricles, ele destaca a solidão como o motivo de sua angústia e atitude extrema. Para a mãe explica: “Sinto profundamente, pela senhora, mas o meu estado de espírito levou-me a isto. O Natal, passei-o sozinho, neste apartamento, ouvindo os risos e a alegria dos apartamentos vizinhos. Passei pela provação, mas agora, de 31 para 1º, não me foi possível.”

Muitos jornalistas e escritores tentaram explicar os motivos da morte do cartunista. Chocou a todos o fato de alguém que vive do humor acabar tirando a própria vida. No futuro, o público se surpreenderia com as mortes de outros gênios da comédia, como o ator Robin Williams e o humorista Fausto Fanti, criador da série televisiva Hermes & Renato – ambos se mataram em 2014; e também com os relatos de depressão dos comediantes Jim Carrey e Whindersson Nunes.

Sobre a trágica morte de Péricles, o poeta Carlos Drummond de Andrade tentou uma análise meio poética, meio filosófica, quase psicanalítica: “A solidão do caricaturista seria talvez reação contra a personagem, que o perseguia, que lhe era necessária e que lhe travara os meios de comunicar-se e comungar com outros seres”.

O escritor Tristão de Athayde (Alceu Amoroso Lima), em artigo no Jornal do Brasil, confirmou a fama enviesada do cartunista: “Poucos, muito poucos lhe sabiam o nome. Confesso que ouvi, pela primeira vez, ao saber da sua morte. E que morte! A morte por um amor desesperado da vida. Por uma insofrida ânsia de viver. Mais que de viver – amar. Veio do Recife. Tímido, desajeitado, pobre. Mas com a glória na ponta dos dedos. Em pouco tempo tinha conseguido o que raros o alcançam no fim de longa vida: ser o artista mais popular de uma nacionalidade. Criar um tipo. Fazer da caricatura talvez um símbolo do espírito de uma raça”.

O último ano da vida de Péricles, 1961, pode ter sido um imenso vazio para ele, mas a História estava repleta de acontecimentos que transformariam (a forma de ver) o mundo – e o Brasil – a partir de então: em 3 de janeiro, os Estados Unidos cortaram relações com Cuba; em 12 de abril, o astronauta russo Yuri Gagarin se torna o primeiro homem a ir ao espaço sideral; em 13 de agosto, o Muro de Berlim começa a ser construído; em 7 de setembro, Jango toma posse após a renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto; em 30 de outubro, a URSS testa no oceano Ártico a maior bomba atômica a ser detonada na história.

Péricles saiu de cena muito jovem, muito cedo na história do humor e do jornalismo, ainda na metade do século mais importante para a consolidação de ambas as áreas como produtos para as massas. Sua obra contribuiu para que o humor gráfico se tornasse conhecido e reconhecido no país como um trabalho relevante (e sério) tanto para o jornalismo quanto para a cultura, como um documento para se entender uma sociedade.

O pernambucano morreu em 1961, ano em que o Brasil, pelas inovações em várias áreas, inclusive com a inauguração de Brasília um ano antes, imaginava entrar numa rota de desenvolvimento social, cultural, econômico e político. Mas estava nos últimos anos da primavera democrática pós-Estado Novo e prestes a entrar no inverno da ditadura militar a partir de 1964, quando os humoristas passaram a ser alvos de perseguição e censura.

Outros colegas contemporâneos tiveram uma longa vida, como Millôr Fernandes, que morreu, aos 88 anos, em 2012, e Ziraldo, falecido em abril de 2024, aos 91 anos. Eles também contribuíram com o humor gráfico, mas nenhum de seus desenhos teve a dimensão alcançada pelo Amigo da Onça, expressão que acabou dicionarizada, ganhando o significado de acordo com o personagem elaborado pelo pernambucano: “Pessoa que parece amiga, mas que é falsa ou traiçoeira”.

Por causa desse ingresso definitivo no imaginário coletivo e na cultura brasileira, a figura do Amigo da Onça vem sendo resgatada em momentos oportunos, como na charge O Partido da Onça, de Aroeira, publicada em 30 de agosto de 2016. Nela, o vice-presidente Michel Temer aparece como um garçom servindo a então presidente Dilma Rousseff em um restaurante. Ele, com o cardápio na mão escrito PMDB, pergunta: “Mais alguma coisa… ou eu posso pedir a conta?”. Ela responde: “Ué, mas eu acabei de sentar!”.

O personagem inspirou e intitulou uma composição de Sílvio da Silva Jr e Aldir Blanc, lançada no LP Bons Tempos, hein? (1979), do MPB4, e outra, um choro ao piano, do cartunista paulistano Paulo Caruso, que considerava o pernambucano um de seus “deuses”. Já o irmão gêmeo, Chico Caruso, também devoto de Péricles, escreveu o roteiro da peça O Amigo da Onça (1988), com direção de Paulo Betti.

No século XXI, a expressão Amigo da Onça ainda vigora, como pode ser comprovado em diversos nomes de perfis no Instagram. Se estivesse vivo, em seu centenário, Péricles poderia ficar surpreso como a matéria-prima de seu ofício cresceu em importância no mundo. O humor está presente diariamente na vida das pessoas. E não como em meados do século XX, quando era mais difundido nas publicações impressas.

Hoje, o humor está nos posts, nos memes, nos podcasts, no Instagram, no YouTube, no Tik Tok. Nos discursos dos políticos e de premiações como o Oscar, Emmy, Globo de Ouro, Grammy... Os talk shows são comandados por humoristas milionários. A comédia rende milhões de faturamento no cinema, nas séries de TVs, nas turnês de comediantes, exibidas nas plataformas de streaming, como a Netflix. Mas será que o humor de Péricles sobreviveria aos cancelamentos das redes sociais?

O cartunista Gilberto Maringoni acredita que o Amigo da Onça não resistiria ao mundo contemporâneo. “Aquele picareta era um tipo excepcional no cenário. Com a evolução, ou involução, das coisas, de alguns costumes, normas de convivência, fruto de crise, de falta de perspectiva, a convivência nas cidades ficou muito mais tensa, muito mais atritada, e uma coisa que era exceção passou a virar quase regra: passar os outros para trás, a Lei de Gerson”, analisou, no documentário O Amigo da Onça (2004). E conclui: “Você ser um pouco mau caráter, um pouco cafajeste é uma coisa exaltada. Então, o Amigo da Onça hoje é um inocente. Fatalmente seria passado para trás na primeira esquina. Talvez, por isso, ele seja um personagem que ficou para trás. Ele é inocente demais para andar nas ruas de uma grande cidade brasileira hoje”.

Apesar de Millôr Fernandes, com quem Péricles trabalhou no Pif-Paf (n’O Cruzeiro), ter afirmado que “o Amigo da Onça se transformou no tipo mais popular da história do humor brasileiro” e “um personagem imortal”, não há como adivinhar como se comportaria o humor do cartunista pernambucano nos tempos atuais. Sua curta existência humana durou apenas 37 anos. Seu nascimento e morte couberam dentro da longa vida de Millôr, nascido um ano antes, em 1923.

O multiartista carioca, em certo dia de Carnaval, no final dos anos 1980, estava em casa trabalhando. O barulho da folia solta nas ruas invadiu sua casa. No seu isolamento, ele pensou: “Poxa, e eu tô aqui fazendo isso (tradução de Hamlet)… Mas só EU estou fazendo isso aqui!” Um pensamento como esse poderia ter mudado o rumo da vida de Péricles. Como uma vez escreveu o Filósofo do Meyer, “Viver é desenhar sem borracha”.

Débora Nascimento é editora-assistente das revistas Pernambuco e Continente.