O repórter policial Antônio Maria

Durante dois anos, o cronista sentou-se à mesa do bar Pavão Azul para observar os acontecimentos na delegacia de Copacabana, que ficava em frente, para escrever seu “romance” dos fatos ocorridos

Em abril de 1948, depois de completar um ciclo de formação profissional nas rádios do Recife, Fortaleza e Salvador, Antônio Maria desembarcou no Rio de Janeiro para tocar a direção artística de duas emissoras dos Diários Associados, o império midiático de Assis Chateaubriand: a Rádio Tupi, carro-chefe do grupo, e a Tamoio, recentemente adquirida.

Com o espaço conquistado na alta cúpula das comunicações, os anos 1950 foram um longo período de consolidação profissional para Maria. Decolando como foguete, ele abraçou tudo o que coube em seu imenso coração: dirigiu boates, escreveu programas variados de rádio, apresentou televisão, tornou-se um requisitado compositor de fossas e bossas e coroou-se como o grande cronista da noite, mas não só. Em suma, foi ao longo da década que Antônio Maria virou Antônio Maria.

Em 1959, no entanto, Maria se afundou num momento de escassez literária. É provável que o excesso de trabalho tenha prejudicado a sua veia artística e, aos poucos, suas crônicas foram rareando. Os leitores já não encontravam na imprensa os dois dedos diários de prosa do cronista. A seca durou até agosto daquele ano, quando Samuel Wainer, dono do jornal Última Hora, o convidou para reintegrar seu expediente – como cronista, Maria já tinha colaborado com o jornal em 1952, mas a proposta agora era para exercer uma atividade excêntrica em sua biografia: a de repórter policial.

De olho na crescente onda de violência urbana que começava a tomar conta do Rio, Wainer foi assimilando o universo policialesco nas repartições do UH, até que o jornal popular, vendido a cinco cruzeiros, orbitasse inteiramente o cotidiano das delegacias. Nas reuniões de pauta, pedia que o fato policial fosse de qualidade, “humanizado e romanceado”, segundo registrou o jornalista Pinheiro Júnior no livro A Última Hora. Ele queria que seus jornalistas fossem capazes de transformar sentimentos complicados em assuntos de fácil digestão, ou ao menos com sabor literário.

Um pouco na linha de “A vida como ela é…”, coluna de Nelson Rodrigues encomendada pelo próprio Samuel Wainer em 1951, já com a rudeza urbana em vista, seguiu a “Romance policial de Copacabana”, de Antônio Maria, publicada diariamente por dois anos completos. Toda madrugada, depois do périplo usual pelas boates cariocas, Maria se sentava com sua Remington portátil no bar Pavão Azul, em frente ao 12° dp de Copacabana na rua Hilário de Gouvêa, 102, e observava o fluxo das ocorrências, acompanhando tudo que acontecia por ali.

Instigado a florear os fatos crus da delegacia, Maria escreveu sobre os crimes de Copacabana com o mesmo olhar lírico que empenhava como cronista. A matéria das ruas não lhe era estranha e, com a crônica, já tinha aprendido a lapidar e distorcer elementos da vida real até resvalar na medula narrativa, até torná-los interessantes, cativantes, inesquecíveis. Encontrar a flor brotando do asfalto é tarefa do poeta, mas transformar cascalho em diamante é labuta do cronista. E assim, pequenos registros de furto foram elevados a dramas existenciais, e bêbados, prostitutas, mendigos e menores abandonados foram alçados à condição de protagonistas do romance aludido pelo nome da coluna – romance no sentido bronco, isto é, uma longa narrativa que evoca realismo e ficção, embora obviamente muito distante do que se vê num romance de fato. Era como se Copacabana tivesse à disposição um escritor particular que testemunhava o que a cidade quisesse mostrar e, um capítulo por noite, escrevesse seu grande compêndio urbano.

Maria, que já tinha vivenciado a experiência da prisão, registrada na clássica crônica “A senha do sotaque”, conseguia desentranhar dignidade humana daquelas figuras oprimidas, registrando com coração aberto detalhes ocultos dos desvalidos do submundo carioca. Por extensão, evocava um lado invisível da metrópole e acabou por registrar um momento de transição social, quando certa inocência de charlatões passou a dar espaço ao que viria ser, dali uns 15 anos, a brutalidade escancarada do crime organizado.

Difícil estabelecer quando o crime organizado começou a se estruturar no Rio de Janeiro, mas, de todo modo, aquele ainda era o tempo de bandidos folclóricos, alguns exóticos a ponto de parecerem saídos das páginas dos quadrinhos, como o famoso Homem-Mosca, capaz de escalar prédios sem nenhum equipamento para saquear apartamentos que, por acaso, dormissem de janela aberta. Veloz e furtivo como o inseto, chegou a galgar o 13º andar para subtrair joias de uma senhora desavisada. Dizia a lenda que nunca tinha sido visto por ninguém. O primeiro a testemunhar sua operação criminosa foi um segurança do Copacabana Palace, que o flagrou pendurado nas paredes do hotel e, sob disparos imprecisos, fez com que se jogasse de um andaime direto para o chão. No hospital, confessou o crime e foi levado à delegacia, onde Antônio Maria o entrevistou.

Enquanto todos queriam saber como era o Homem-Mosca, Maria quis saber quem era o Homem-Mosca. “Chama-se Josias. Tem um sobrenome sem importância”, escreveu sobre aquele jovem nordestino, “igual a tantos que aqui chegam sobre a carga de um caminhão longeiro”. Tinha um “físico arrochado”, subnutrido mesmo, e não era nem artista de circo nem atleta, como se especulava. Era só mais um destemido que, digamos, mirou mais alto que o ladrão comum. O repórter não deixou de apontar o “lado admirável” de quem não teme a morte: “Imagine-se um homem que se gruda a uma parede, como uma lagartixa, e passa de uma janela a outra, por fora de um prédio de apartamentos”, enquanto “lá embaixo, distante, o chão o espera para esborrachá-lo”.

Mesmo naquele momento de agitação conturbada, quando o detido dava entrada no recinto, Maria era capaz de extrair detalhes poéticos de uma conversa rápida: Josias, o Homem-Mosca, confessou-lhe ter rezado “uma jaculatória” no instante em que desviava dos disparos do vigia. Foi isso que o fez escapar da morte. Nas páginas de “Romance policial de Copacabana”, aquele ladrão que tirava o sono das madames tinha sido salvo por Deus.

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