Com o M repetido de Multiplicidade escreve-se o nome Mauro Mota, o poeta que faleceu há exatas quatro décadas, em 22 de novembro de 1984. Poeta, sobretudo, mas nele coexistiam o jornalista, o memorialista, o geógrafo, o historiador social, o cronista e o observador dos costumes da província e das pequenas e grandes coisas do cotidiano.
“Mauro Mota foi um poeta dos inventários. Em seus melhores poemas, não teve medo das coisas miúdas que seu olhar poético observava, cantou os objetos da casa, as ervas daninhas, as ruínas, as ruas, as paixões de subúrbio, as mães, os cajus, os meninos. E os fantasmas…”, escreveu o jornalista e mestre em Literatura Cristhiano Aguiar, quando da celebração de 100 anos do poeta.
Nasceu em 16 de agosto de 1911, no Recife, mas passou toda a sua infância em Nazaré da Mata, que dista cerca de 70 Km da capital. Despontou com o livro de poesia Elegias, publicado em 1953 (prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras).
Na primeira parte, há 10 sonetos inspirados na morte da sua primeira mulher, Hermantine. Mas o texto de maior repercussão foi um voltado para o sentimentalismo não de ordem individual, e, sim, coletivo: “Boletim Sentimental da Guerra no Recife”. Nele, aborda a presença dos soldados estadunidenses no Recife, na época da Segunda Guerra Mundial na cidade. Tem como pano de fundo as meninas pobres que se encantaram pelos estrangeiros e sofreram as consequências com suas partidas. A condição patética daquele tipo de relação fica bem-exemplificada nestes versos: “Meninas, tristes meninas/de mão em mão hoje andais/ Sois autênticas heroínas/da guerra sem ter rivais…”
Mauro Mota foi professor de História e Geografia durante grande parte da vida; além de secretário, redator-chefe e diretor do Diario de Pernambuco – com destaque para sua atuação no Suplemento Literário –; diretor-executivo do Instituto Joaquim Nabuco por 14 anos; diretor do Arquivo Público de Pernambuco e membro das Academias Pernambucana e Brasileira de Letras.
Entre os anos de 1965 e 1971, ele ficou ligado a três ambientes de trabalho nos quais era funcionário: diretor do Instituto Joaquim Nabuco; editor e posteriormente diretor do Diario de Pernambuco e professor do Instituto de Educação do Recife, segundo relata a tese de doutorado em História do jornalista Tércio de Lima Amaral, É impossível substituir uma amizade fraternal: as conquistas de um intelectual em uma biografia de Mauro Mota, apresentada à Universidade Federal de Pernambuco em 2021. Além dessa análise, dois livros sobre sua vida foram escritos por Waldemar Valente (As diabruras de Mauro Mota, 1986) e Nilo Pereira (Mauro Mota e seu tempo, 1987).
Tendo sido extremamente prolífico, as obras brevemente comentadas adiante são uma pequena amostra do que ele produziu.
Academia Brasileira de Letras
Mauro Mota foi o sexto ocupante da Cadeira 26, eleito em 8 de janeiro de 1970, na sucessão de Gilberto Amado. Sua posse se deu em 27 de agosto daquele mesmo ano.
Sua eleição contou com forte articulação do escritor Álvaro Lins, do sociólogo Gilberto Freyre e do poeta João Cabral de Melo Neto, que era primo de Mauro Mota. Mas a campanha para levá-lo à ABL começou bem antes, em 1968.
Nessa época, pouco antes da sua morte, em 13 de outubro de 1968, Manuel Bandeira (também membro da ABL) chegou a escrever ao amigo e primo. “Sim, meu caro Mauro, somos primos e dominamos a poesia pernambucana, danem-se os desafetos!”, referindo-se a si, a Mauro e a João Cabral, que, com a almejada eleição de Mauro, formariam um trio de poetas-parentes pernambucanos na ABL.
Os familiares de Mauro lembram que ele passou cerca de três meses no Rio para os preparativos de posse. Fez cerca de cinco provas da roupa – ou fardão – necessária para assumir a vaga. Apesar da alegria e da vitória pessoal, a festa não teve sabor completo. Em 4 de junho de 1970 morreu seu amigo mais caro e mais antigo: Álvaro Lins, que faria sua recepção na Casa. Por conta disso, Mauro foi recepcionado por Adonias Filho.
Academia Pernambucana de Letras
A posse de Mauro Mota na Academia Pernambucana de Letras, em 13 de março de 1957 (sua eleição ocorreu em 21 de junho de 1955), foi um acontecimento literário, segundo narra o escritor e amigo Nilo Pereira no livro Mauro Mota e seu tempo.
Ele ocupava a cadeira 20, e, por toda uma década, foi presidente da Academia. Sua passagem pelo cargo trouxe uma aura renovada à Casa de Carneiro Vilela, com a realização de palestras e seminários. No final, com uma grande conquista: ele conseguiu dotar a APL de uma sede própria, a atual, na Avenida Rui Barbosa, no solar dos Barões Rodrigues Mendes, em Ponte d’Uchôa, graças ao então governador Eraldo Gueiros.
Antes disso, durante seis décadas, a Academia ficava instalada em local improvisado, dentro do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, na Rua do Hospício.
Na ocasião da posse definitiva do terreno, Mauro escreveu o seguinte comentário na sua coluna Agenda, do Diario de Pernambuco, em dezembro de 1973:
“Dentro dessas instalações, a Academia já pode fazer o que lhe fora impossível fazer sem mantê-las aberta diariamente aos acadêmicos, a jovens escritores e estudantes interessados em pesquisas literárias: inaugurar a sua hoje consultadíssima biblioteca em conexão com as normas da moderna biblioteconomia; manter desde março cursos sistemáticos sobre temas de cultura com aulas semanais ministradas por acadêmicos e especialistas não acadêmicos convidados…”.
Alfinetes e Bombons
Publicado em 1984, sendo uma das últimas obras do autor, o livro Alfinetes e bombons mostra a face camaleônica de Mauro Mota, que transitava da geografia à poesia, do jornalismo à crônica social, sem se focar em um tema único, mas, ao mesmo tempo, fazendo um inventário de tudo que passara por sua vida
Nesse livro composto por aforismos, resgata, segundo sua própria narrativa, o interesse que lhe provocavam as folhinhas de calendário com frases escritas, que povoavam sua casa de menino, em Nazaré da Mata.
No início do livro, ele próprio disserta sobre o que o levou a produzir a obra. “Embora começasse a ‘praticá-los’ tarde, no ano de 1970, o meu gosto pelos aforismos – gênero textual que se caracteriza por frases breves, com preceitos morais ou práticos - vem do tempo de menino, dos dezembros de Nazaré da Mata, com as folhinhas de parede distribuídas pelos comerciantes entre os fregueses e amigos.”
Além dos cromos, dos números encarnados – como ele relata -, lhe agradavam, principalmente, os provérbios tirados de livros diversos e do Velho Testamento. Mauro chegava a recorrer à biblioteca local para saber quem eram Marco Aurélio, Pascal, La Rochefoucauld, Montaigne, Voltaire, Marquês de Maricá, entre outros autores registrados nas folhas do calendário.
Obviamente que ao resgatar aforismos, o fez de uma forma muito particular: com o notável bom-humor pelo qual era conhecido, registrando pensamentos sempre propensos a brincadeiras de duplo sentido.
Entre as frases registradas, algumas demonstram claramente o tom do livro. “Não há sapato para o pé de guerra” é uma delas. “Brigue com sua mulher e não pague à Celpe: da discussão nasce a luz”. Ou: ”Precisamos morrer para saber se somos imortais”.
Álvaro Lins
Um dos amigos mais próximos e perenes de Mauro Mota foi Álvaro Lins. A amizade dos dois começou no Colégio Salesiano, em 1924, onde colaboraram no jornal O Colegial. Ambos foram alunos do crítico literário Oscar Mendes, que despertou nos dois amigos o gosto por escrever. Em entrevista ao MISRJ, em 1971, Mauro revela que Álvaro foi sua maior influência literária.
Álvaro Lins foi uma das figuras mais representativas da sua geração. Caruaruense, lecionou em vários colégios do Recife e chegou a ser diretor do Ginásio Pernambucano. Mas, além do gosto pela escrita, era um habilidoso assessor político. Ao trabalhar com o governador Carlos de Lima Cavalcanti, contratou Mauro Mota para ajudá-lo.
Em parte, também, graças a Álvaro Lins, que fez campanha para Juscelino Kubitschek à presidência da República, chegando a ser seu chefe da Casa Civil, Mauro Mota foi indicado para assumir a diretoria do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, em 1956. Gilberto Freyre, igualmente, teve relevância nessa indicação, mas a aliança política de Álvaro Lins e JK foi decisiva na escolha final de Mauro Mota.
Álvaro Lins, que se notabilizou como um excelente crítico literário, mudou-se para o Rio de Janeiro, mas mantinha intensa correspondência com Mauro. Álvaro também foi fundamental para a eleição de Mauro Mota à Academia Brasileira de Letras. Foi quem sugeriu o seu nome e quem se movimentou nos bastidores em seu favor. Tanto que foi o escolhido para receber Mauro Mota na Casa de Machado de Assis.
Sua morte inesperada, meses antes da posse do amigo, frustrou a possibilidade de atuarem juntos na ABL. Em artigo publicado por Mauro Mota, é possível sentir a dor que a partida do seu amigo desde adolescência lhe causou:
“Álvaro Lins morreu. Morro um bocado com ele, pois a gente não se acaba de uma vez. Foi o crítico e foi o amigo firme e leal. Durante minha recente campanha de eleição para a ABL, lutou a meu favor mais do que se o fizesse por ele mesmo”.
Amigos
Pelo temperamento cordial, afetuoso e bem-humorado, pela cultura e inteligência, e por gostar da boêmia, Mauro Mota manteve amizades que duraram décadas. Teresa Motta, a mais nova dos seis filhos que MM teve nos dois casamentos, lembra que, no enterro do pai, podia se ver todo tipo de pessoa. Das mais discretas e humildes às mais empoderadas. “Ele tratava igualmente o motorista e o governador. Sempre foi um homem muito simples e acolhedor.”
Ela recorda que, na sua casa, as presenças de Álvaro Lins, Chico Barbosa e José Condé eram constantes. Assim como a de Aurélio Buarque de Holanda, que sempre se hospedava com Mauro, quando visitava o Recife. Na rua, um dos locais preferidos eram os extintos Restaurante Dom Pedro, na Rua do Imperador, e o Bar Savoy, que ficava na Avenida Guararapes.
“No Dom Pedro ele se encontrava com Esmaragdo Marroquim (que era editor do Jornal do Commercio), Alberto Cunha Melo (escritor e jornalista), Aníbal Fernandes, além de muitos outros intelectuais da época, como Nilo Pereira, Valdemar Valente, César Leal, Jaci Bezerra”, informa Teresa.
Arquivo Público
O Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano, localizado na Rua do Imperador, foi um importante capítulo do legado de Mauro Mota. Ao assumir o cargo, em 1972, o já imortal da ABL fez um trabalho que é lembrado por muitos como fundamental para a renovação da instituição. Ele permaneceu como seu gestor até sua morte, em 1984.
Na biografia Mauro Mota e o seu tempo, Nilo Pereira escreve que o escritor fez do “Arquivo um Arquivivo. O Arquivo vivo. Não apenas arquivando, mas desarquivando, como ele costumava dizer. Aberto a toda gente. Enquanto isso, a Casa era um cenáculo de conferências e de debates”. Além dos cursos de arquivistica, promovia palestras e simpósios que reuniam intelectuais do Recife e de fora. “Todos enfeitiçados pela simpatia ou empatia com que fazia as coisas. Pondo em tudo sua marca pessoal”, descreve Nilo.
O jornalista e poeta Alberto Cunha Melo (1942-2007), que trabalhou como assessor de Mauro Mota nos últimos dois anos da sua gestão, preferia ressaltar o temperamento afável do antigo chefe, com o seguinte depoimento a Nilo Pereira: “Mauro Mota era esse líder carismático, o amigo, o incentivador, o espírito que pairava acima de todas as tramoias e trapaças que sempre se articulam aos pés da grandeza…”
Ele lembra que durante a administração de Mauro Mota, vários intelectuais passaram a frequentar o local:
“Depois do anoitecer, na velha Rua do Imperador, seus amigos começavam a chegar, uns mais constantes, outros mais intermitentes, mas todos os visitavam, cruzando-se as gerações entre as antigas estantes abarrotadas de códices e de milhares de livros (a maioria doada por ele) que formavam a variada e interessante biblioteca de apoio aos pesquisadores”.
Entre os amigos, Alberto Cunha Melo cita Eugênio Bandeira, Arnoldo Jambo, Eduardo Mota, Nilo Pereira, Amaro Quintas, Laurênio Lima, Audálio Alves, Gladstone Vieira, César Leal, Iran Gama e Fernando Monteiro.
Boletim sentimental da guerra no Recife
No livro Elegias, além da série de 10 sonetos, existem outras divisões de blocos poéticos, e neles está uma das mais bonitas produções de Mauro Mota. Em Boletim Sentimental da Guerra no Recife, o poeta assume uma vitalidade diversa, uma linguagem cortante, e uma narrativa que chama atenção pela sensibilidade com que enxergava os grotões do Recife.
Neste caso, Mauro consegue recontar e traduzir a história dolorosa das meninas nordestinas iludidas pelo amor dos soldados americanos que aportaram no Nordeste durante a Segunda Mundial. (“Ingênuas meninas grávidas/ o que é que fostes fazer?/ Apertai bem os vossos vestidos/ pra família não saber”).
Em Rondó suburbano, ele também narra a história de uma senhora de meia-idade que “abre o piano numa tarde de domingo/ como uma caixa de lembranças e melodias”, recordando, solitária, do tempo perdido da juventude.
O jornalista, mestre em literatura e escritor Cristhiano Aguiar afirma:
“Nesses dois poemas, não são apenas desencontros amorosos que são tematizados; eles nos dão indícios da própria condição da mulher em uma sociedade ainda conservadora, que emparedava o feminino em ritos sociais e lugares excessivamente marcados (a jovem e ‘perdida’ mãe solteira; a solteirona que passará a vida na solidão). Tanto nos poemas solares quanto nos noturnos do livro Elegias, há um projeto de memória que os unifica. O luto vivido nos sonetos das Elegias, os fantasmas na Rua Real da Torre, os personagens em sua velhice ou a desgraça social – os poemas querem dar conta de vidas e tempos que não podem ser esquecidos. Essa será uma constante da sua poesia posterior: embora o tom soturno seja amenizado em prol de cores e perfumes mais exuberantes, a morte continuará presente, mesmo que ao lado dos cajus”.
Capitão de Fandango
O livro é baseado em fatos e personagens de Nazaré da Mata, para onde Mauro Mota mudou-se aos dois meses com a família, só deixando a cidade aos 16 anos, após a morte dos pais.
Na obra, ele relembra figuras locais e as transpõem para a literatura. Caso do coronel da Guarda Nacional, Victor Vieira de Melo, que ocupa espaço na sua memorialística.
Em uma das crônicas, Mauro lembra que, em certa ocasião, o interventor Agamenon Magalhães fez uma visita ao coronel, que o recebeu devidamente uniformizado. “A farda reluzia como nos antigos tempos e impunha respeito. De dentro de uma gaveta, puxa velha fotografia, já amarelecida pelo tempo, e diz ao interventor: -“Eu e meu estado-maior.” Com efeito, lá estava o coronel cercado dos seus ajudantes, cada qual com sua patente”, conta Nilo Pereira em Mauro Mota e seu tempo.
CONTEÚDO NA ÍNTEGRA NA EDIÇÃO IMPRESSA
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