Criação que supera o criador, O Amigo da Onça viveu muito mais do que os prematuros 37 anos do chargista pernambucano Péricles Maranhão (1924-1961). Pelas mãos - ou melhor, traços - de tantos outros desenhistas, o personagem nascido em 1943 viveu ao menos até a primeira década do século XXI. Não somente nas representações do humor gráfico brasileiro - em charges, tirinhas e HQs produzidas por Carlos Estêvão, José Alberto Lovetro (Jal), Fernando Carvall, Sérgio Morettini, Gualberto Costa e Octavio Cariello. O Onça também é protagonista de documentário, curta-metragem, animação em 3D, livros, trabalhos acadêmicos e até peça de teatro.
O papel principal, Péricles já havia perdido; a piada jamais. Em uma das mais de mil situações que desenhou, o próprio Péricles foi vítima da língua afiada do Onça: “Só conte comigo quando melhorar a piada!...”, diz o abusado personagem ao autorretrato do criador com cara de assustado desenhando sobre a prancheta, em charge publicada em 1948.
O Amigo da Onça descansa no fundo da gaveta, sem previsão de ressuscitar tão cedo. A família, detentora dos direitos autorais, não demonstrou interesse em publicá-lo novamente. Caso os herdeiros não mudem de ideia, só lidaremos com a língua ferina do Onça em novas produções quando ele entrar em domínio público. Segundo as leis brasileiras, após 70 anos contados do primeiro dia do ano subsequente à morte do autor, ou seja, em 2031.
“O desenho de Péricles é o clássico ‘linha clara’, em que o personagem se porta quase como um logotipo. Com isso ele fixou aquela expressão de fuinha impassível do Onça. Por isso o grande sucesso do personagem, que ‘casa’ perfeitamente a personalidade com o visual”, define Jal, que resolveu ser “padrasto” do personagem em 1988, após acordo para cessão de direitos autorais com a viúva de Péricles, Angélica Braga Guimarães, já falecida.
Com traços e piadas atualizadas por Jal, O Amigo da Onça apareceu na revista Semanário (1988-1992) em parceria com o conterrâneo de Péricles, Cariello, no desenho. Com o quadrinista Gual (Gualberto Costa), Jal inseriu o Onça no formato de tirinhas para o jornal Folha da Tarde, em 1989. Em seguida, já nos anos 1990, a dupla publicou o Onça na Revista 2000, encartada mensalmente no jornal Estadão. “Durou apenas cinco meses. Acho que foi mal projetada”, arrisca Jal, que deu continuidade ao Onça em 12 jornais pelo Brasil. Atualmente, o cartunista trabalha com Mauricio de Sousa, é presidente da Associação dos Cartunistas do Brasil e fundador do prêmio HQ Mix- mais importante do segmento no Brasil.
Jal pretende publicar um livro definitivo sobre a cínica celebridade maior do humor gráfico brasileiro. “Minha ideia é mostrar a produção de Péricles e de outros desenhistas.” Para ele, uma das razões da popularidade do personagem controverso é seu caráter anti-herói. “Quem faz mais sucesso nas novelas, por exemplo, é o vilão, e não o mocinho. O Onça era um meme da época”, compara. No livro Jal também promete revelar outras versões sobre a origem do Onça. A oficial é que se trata de uma versão brasileira da série argentina El Enemigo del Hombre. “Já ouvi falar também que Péricles poderia ter se inspirado em um taxista que ficava ‘enchendo o saco’ enquanto ele desenhava em um bar”. Outra versão, Jal não revela nem sob tortura. “Existe uma pessoa que é a cara do Onça, mas estou guardando para o livro.”
Até os 18 anos - completados com a morte de Péricles - O Amigo da Onça cometeu suas maldades incólume, com o aval da popularidade que alcançou semanalmente, na longeva revista O Cruzeiro (1928-1985), ajudando-a a ser campeã de vendas - 720 mil exemplares por semana. Foi difícil imaginar o semanário sem o Onça e a revista correu atrás de continuar dando vida à criatura já tão famosa que não houve quem ousasse matá-la. O primeiro a quem coube a tarefa de padrasto foi o ilustrador e colega de redação de Péricles, o carioca Getulio Delphim, outro amigo de Péricles.
Dois anos depois, mudanças de estilo e de conteúdo foram concebidas pelo cartunista também pernambucano Carlos Estêvão (1921-1972), outro integrante da equipe da revista e amigo de Péricles. Quando recebeu a proposta, Estêvão resistiu: “Eu substituir o Péricles? Vocês estão ficando loucos?”, bradou indignado. Durante uma década, Estêvão se esmerou em seguir o mesmo traço e as mesmas piadas, contudo, atualizadas, do homem de feições finas e elegantes. Mas nunca deixou de mencionar a paternidade da cria, colocando sempre no cabeçalho: “O Amigo da Onça - criação imortal de Péricles”.
A princípio, Estêvão não conseguiu alcançar o sucesso digno do personagem. Somente teve êxito quando resolveu interpretá-lo à maneira do humor que particularmente gostava de fazer e sem as características antiéticas do personagem. “Meu humor parte de mim mesmo. Sou um gozador. Mesmo que não fosse para ganhar dinheiro, faria humorismo”, disse certa vez. Diferente de Péricles, Estêvão preferia deixar de lado as maldades e o humor negro. “Ele é mau, sádico, ri da desgraça alheia. Qualquer dia eu o mato!”, chegou a dizer o desenhista que, para Octavio Cariello, foi mais bem-sucedido do que o próprio Péricles como pai do Onça. “Ele foi um grande artista gráfico e se adequou melhor em termos de técnica e conteúdo. Com ele a crítica de costumes passou a galhofa política”, afirma.
Após o falecimento de Estevão, chegou-se até a pensar em matar o Onça de uma vez por todas. Mas em pesquisa realizada pela revista O Cruzeiro junto aos leitores, foi decidido que ele deveria continuar existindo. A reação extremamente positiva chegou a causar surpresa por parte da revista, que escreveu uma carta aos leitores revelando que somente duas pessoas votaram pela sua extinção. Faltava conseguir outro desenhista que o fizesse renascer. O nome escolhido foi o do caricaturista mineiro de Bicas, Fritz Granado (?-2006), que atuou na revista Manchete e nos jornais Última Hora e O Jornal. Até o final de 1972, o Amigo da Onça surgiu com visual e texto bastante renovados: mais gordo, com pele escura e cabelos ora crespos, ora louros, ora ruivos, Fritz retirou dele uma suposta “superioridade” física.
Em 1988, o teatro encenou um embate entre o personagem ícone da história gráfica brasileira e seu “pai biológico”, Péricles. A peça O Amigo da Onça foi escrita pelo caricaturista, chargista e humorista Chico Caruso e dirigida por Paulo Betti. “A ideia de fazer a peça foi do [pesquisador, dramaturgo e diretor] Carlos Alberto Soffredini [1939-2001]. Mas ficou esquecida e um dia eu retomei e decidi fazer. Montamos um grupo: Antonio Grassi, Andréa Beltrão, Sérgio Mamberti, Eliane Giardini, Cristina Pereira, Rafael Ponzi, Chiquinho Brandão [1952-1991], Marcos Breda e começamos a ensaiar e quem escreveu foi o Chico Caruso”, conta Paulo, que se sentiu atraído pela história do criador - Péricles- que foi engolido pela sua própria criatura - O Amigo da Onça.
“Péricles pintava, fazia quadros a óleo, tinha outras formas de expressar, era um artista bem desenvolvido. Mas, aos poucos, o Amigo da Onça foi dominando o Péricles. Ele foi ficando monotemático”, diz Betti, após acesso a uma tese universitária e ao bilhete de suicídio deixado por Péricles na porta do apartamento. “Com durex, ele vedou as janelas, as vidraças e abriu o gás; deitou no chão vestido com um terno branco, colocou uma música do Românticos de Cuba e seus Metais em Brasa e abriu o gás. O bilhete dizia ‘não risquem fósforos’. Com isso ele queria matar o Amigo da Onça porque, se fosse o personagem, o bilhete diria: ‘ao abrir, risque um fósforo’ para explodir tudo.”
A intenção de Péricles de acabar com a vida do Onça é também visível, segundo Paulo Betti, na transformação do personagem em um criminoso. “Quando o personagem fala para o cego atravessar a rua justamente na hora em que está passando o caminhão, ele mata o cego. Então, aos poucos, ele vai ficando cruel. E a gente também procurava entender a tese do homem cordial brasileiro, do qual o Amigo da Onça é a antítese”, reflete o ator e diretor. “O mais cruel que aconteceu com o Péricles foi que ele, com o suicídio, tentou matar o Onça, mas não conseguiu porque ele continuou sendo desenhado.”
Primeira cena: O Onça (Chiquinho Brandão) entra no palco escuro e risca um fósforo. Entre números musicais, contracenam a esposa de Péricles, Angélica (Eliane Giardini), a amante cabeleireira (Cristina Pereira), a mulher ideal e inatingível (Andréa Beltrão), o diretor de redação da revista O Cruzeiro (Sérgio Mamberti), Péricles (Antonio Grassi), Millôr Fernandes (Marcos Breda) e Ziraldo (Rafael Ponzi). O clímax acontecia com uma luta livre entre Péricles e Onça, numa comédia bem-recebida pela crítica, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, por onde o espetáculo passou. “Chiquinho Brandão era um músico excepcional, tocava flauta transversa, fazia parte da banda de César Camargo Mariano com Elis Regina. Era um show, ele tocando na peça”, recorda Paulo, destacando a cenografia de Clóvis Bueno [1940-2015], “um dos maiores diretores de arte do cinema brasileiro”.
Paulo conta ainda como se deu a escolha do autor da peça, em uma reunião na casa do desenhista e escritor Millôr Fernandes (1923-2012). Na ocasião, o anfitrião, sem falsa modéstia, assim falou: “Ah, eu seria a pessoa mais adequada para escrever a peça, só que eu não vou escrever”. Foi a deixa para Chico levantar a mão timidamente e dizer que poderia se encarregar da tarefa. “Um dos aspectos mais importantes da peça é o texto sensacional do Chico porque ele tem uma identificação, já que é cartunista, assim como Péricles”, sentencia Paulo Betti.
As coletâneas de charges do nosso amigo sacana estão com edições esgotadas. No mercado sebista, as obras literárias estão disponíveis a preços que variam de R$ 10 a mais de R$ 2 mil. Um desses livros, O Amigo da Onça - A obra imortal de Péricles (editora Busca Vida, 1988), de 95 páginas, com “as melhores piadas do Amigo da Onça”, traz depoimentos do caricaturista Augusto Rodrigues (1913-1993), do cartunista Fortuna (1931-1994) e do humorista Ziraldo (1932-2024), com prefácio de Millôr Fernandes. “O Amigo da Onça se transformou no tipo mais popular da história do humor brasileiro. Quando Péricles morreu, 18 anos depois, o Amigo já era - sem nenhum exagero retórico - um personagem imortal”, escreveu o entusiasta Millôr.
O mesmo livro revela que Ziraldo propôs mudanças para o personagem ao próprio Péricles: “Eu falava para o Péricles: vamos mudar um pouco o desenho. Está muito quadrado. E dava para ele a Playboy, a Look, a Paris - Match, revistas que traziam os cartunistas avançados da época. Ele levava para casa para estudar. Depois jogava as revistas em cima da minha mesa dizendo: ‘O povão não quer isso!’”.
Em 1983, o historiador Marcos Antônio da Silva (1951-2024) organizou a exposição Péricles e O Amigo da Onça - 1943/1962, no MAC-São Paulo, que ele cita no livro Prazer e Poder do Amigo da Onça (editora Paz e Terra,1989), fruto da tese de doutoramento em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Na obra, o autor expõe um estudo sobre a “dimensão social do imaginário numa faixa específica de sua ação - o humor visual - e sobre um personagem que investe intensamente em prazer e poder para realizar sua trajetória”, escreve Marcos.
Há prazer e poder em constatar e até contribuir para a miséria alheia quando O Amigo da Onça se mostra distante e impiedoso diante de uma mulher maltrapilha, indicando com superioridade natural que ela pegue um táxi, como se, naquela situação miserável, pudesse fazer uso do serviço. “O Amigo da Onça consegue contribuir para tornar a vida alheia tão insuportável, a ponto de ser pior que a morte - a qual, por sua vez, faz-lhe sobreviver a força capaz de prejudicar os outros.” Sem reduzir o debate sobre se o personagem é mau ou de bom caráter, o historiador preferiu ressaltar a caricatura como arte que melhor reflete o tempo em que foi criada.
Em 2004, foi exibido o documentário O Amigo da Onça - A vida de Péricles Maranhão, dirigido pela dupla Dimas de Oliveira Junior e Felipe Harazim. A produção audiovisual traz depoimentos de Jal, Paulo Betti e da viúva do cartunista, Angélica Maranhão. Em 2005, foi lançado o curta de ficção A última do Amigo da Onça. Dirigido por Terêncio Porto, promove um suposto encontro entre a criatura e o criador. Em 2017, Luiz Gê assinou quadrinhos para a Folha de S.Paulo em que visivelmente se apropria da criação de Péricles sem, no entanto, revelar de quem se trata. A referência visual é que denuncia tratar-se do Onça, desenhado pelo cartunista como uma personificação do ex-presidente Michel Temer, cujas ações prejudicam sempre alguém. Nesse caso, o povo brasileiro.
Outra tentativa de prolongar a vida do personagem foi a produção de animações em 3D que deu voz ao irônico homenzinho de paletó branco, bigodinho bem-desenhado e gravata borboleta preta. Jal se juntou ao caricaturista, designer e professor Fernando Carvall, em 2010, para um projeto abraçado pela Faculdade Senac de São Paulo, onde Carvall ensina. “Dentro do Núcleo de Produção de Desenho Animado, propusemos aos alunos a produção de três curtas de animação. Pretendíamos dar continuidade às animações, mas não conseguimos patrocínio”, lamenta Carvall. Como trabalho didático, porém, foi um sucesso. “Havia roteiro, cenário, tratamento de cor bem particular, um baita estúdio de gravação, direção de arte bastante criteriosa e direção musical”. Os vídeos podem ser vistos no YouTube (veja box no final desta matéria).
Nos dias atuais, seria o Onça tão querido como no passado? “Ele era um homem do tempo dele: machista, retratava as mulheres de forma depreciativa”, diz Carvall, acrescentando que a maldade do Onça é condizente com a maldade humana, característica atemporal. Para Carvall, existem temáticas da crítica de costumes que são universais e continuam contemporâneas como a relação do patrão com o chefe, por exemplo. “Hoje em dia vejo mais espaço para tiras e charges políticas no Brasil”. Carvall acredita que isso se deve à escassez da mídia impressa e ao público ainda um tanto disperso da internet. “É tanta confusão na política nacional, que não dá para falar de outra coisa. Sabemos a escalação do STF e não mais a da seleção [brasileira de futebol masculino]”.
Paulo Betti define O Amigo da Onça como um malvado sutil, um inimigo do homem, do próximo, estando aí sua característica de atemporalidade. “O momento atual é mais bruto, menos engraçado. Você não pode dizer que o Bolsonaro seria O Amigo da Onça. Ele não tem essa sutileza. Malvado, sim. Mas não tem o charme do personagem”, defende Paulo. O humor, para ele, é sinônimo de maldade. “A pessoa quando está andando na rua e tropeça, você dá risada. Mas, se ela passar direto, você não ri.”
Não é o Onça a única criação politicamente incorreta dos quadrinhos. Jal destaca Os Fradinhos, de Henfil, e Os Skrotinhos, de Angeli, que de corretos não tinham nada. “O humor trabalha com o incorreto. Se você caminhar somente entre as regras, sem questionar, você vira um robô. As pessoas riem do Amigo da Onça, mas não querem ser como ele.” Carvall defende que é possível adaptar a linguagem. “O personagem é perfeito. O design é muito bom. Chique e elegante.”
Octavio Cariello pensa diferente dos colegas. Apesar de ter desenhado o galhofeiro de gravatinha e bigode fino com Jal, atualmente ele diz que não mais o faria. A não ser que fosse para colocar o personagem como vítima da piada ou trabalhá-lo de maneira diferente, ideia que já chegou a discutir com Jal. Professor, atualmente, de uma escola de arte em São Paulo, Cariello viu o convite do colega como um grande negócio. Afinal, era, então, um jovem desenhista de 24 anos recém-chegado à capital paulista para ganhar a vida. Após dois anos colaborando com Jal, ele foi para os Estados Unidos desenhar os heróis das gigantes DC Comics e Marvel. “Hoje em dia, O Amigo da Onça é anacrônico. Racista, machista, chauvinista, homofóbico, classista. Na década de 1950, fazia sentido porque a voz das mulheres era silenciada”, afirma Cariello.
O desenhista aponta ainda a falta de posicionamento político do personagem, característica também criticada pelos colegas Ziraldo e Jaguar. “Fosse publicado atualmente, o Onça seria um porta-voz da extrema-direita, tirando sarro de artistas, dançarinos, pobres, donas de casa e todos aqueles que aparentemente não pertenciam à elite cultural brasileira. Não é preciso ser politicamente incorreto para fazer humor”, opina.
A professora Ana Cristina Carmelino, do Departamento de Letras da Unifesp, explica que tantas continuidades e apropriações do Onça se originam da fácil comunicabilidade que o desenho exprime. “E pelo enraizamento no cotidiano dessa criação”, completa a pesquisadora, que escreveu sobre o personagem em pós-doutorado realizado entre 2017 e 2018 e intitulado “Os Amigos da Onça: o estereótipo do sacana no humor gráfico”. Para ela, o personagem continuaria fazendo sucesso em produções contemporâneas de humor gráfico pela imagem de sacana e pouco confiável que difunde. Imagem esta que, segundo Ana, “é muitas vezes associada a políticos brasileiros”.
A pesquisadora defende, ainda, que o humor segue regras ficcionais, o que o redime da função educativa ou moralizante. “É preciso considerar que as produções humorísticas seguem, muitas vezes, as regras da ficção, quais sejam: retratar, à sua maneira, fatos e pessoas, sem pretensões sociológicas; não pregar verdades ou diretrizes; não ter função educativa ou moralizante; não pretender ser pragmático, retratar a realidade (mesmo que apresente certa relação com ela), ser eficaz ou militante”, afirma Ana Cristina Carmelino.