Como definir um clássico? Uma obra clássica é aquela que pode ser lida repetidamente, em diversos momentos da vida, e sempre nos proporciona não só a sua grandeza conhecida, mas também algo novo, um olhar fresco, uma relevância que não se manifestara nas leituras anteriores. Há obras clássicas que ocupam um patamar especial de glória e reconhecimento, e há autores clássicos, aqueles que, além de uma obra pontual fabulosa, têm deixado ao benefício nosso e de muitas gerações um complexo povoado por obras que, como conjunto, definem um mundo. A possibilidade de entrarmos nesse mundo, cada vez que quisermos, é a realização da qualidade “clássico”.
Visto assim, é quase desnecessário estabelecer uma sequência recomendada para quem quiser entrar ao mundo de Franz Kafka. O globo terrestre do mundo kafkiano é redondo e nos convida de acordo com as nossas preferências pessoais. No entanto, Kafka oferece tesouros para todos os gostos. Vinhetas de humor, paradoxo e absurdo, textos decididamente intimistas em formatos de diários e correspondência pessoal, contos fantásticos, sátiras com momentos de realismo daquele que hoje chamamos de “mágico”, e obviamente – os grandes romances, com as metáforas que têm se tornado universais que deram para produzir de Kafka o adjetivo que povoa os dicionários de tantas línguas europeias: “kafkiano”. O nosso grande Houaiss não o esquece, e define assim: “...que, de forma semelhante à obra de Kafka, evoca uma atmosfera de pesadelo, de absurdo, esp. em um contexto burocrático que escapa a qualquer lógica ou racionalização (diz-se de situação, obra artística, narração etc.)
Seja como for, se, por algum motivo, os leitores ainda precisam de um manual de usuário, mesmo temporário, para ser logo abandonado com a viagem entre as maravilhas de Kafka, podemos oferecer algumas paradas essenciais.
A metamorfose, a obra mais famosa e emblemática, tanto que até quem não tem lido nada de Kafka, sabe quem é Gregor Samsa, o seu protagonista, e sabe que há ali uma barata. Grande parábola da vida absurda do homem normal no mundo moderno. Gregor Samsa, um jovem, acorda um dia e descobre que tem se transformado em algo imenso, sem forma ou identidade definidas. Na fábula, Kafka trata da questão mais importante da vida, que é também aquela da qual nós todos fugimos. A morte, a nossa mortalidade. Como encontrar sentido numa vida onde não significamos nada, sabendo que vamos morrer? Fosse o mundo simpático, flexível, compreensivo, ajudava-nos a esquecer o nosso fado irremediável. Mas não é nada disso, e nós, humanos, nem dominamos as metamorfoses que nos acontecem, e às vezes tornam a nossa humanidade em ficção.
Outro jovem, desta vez Joseph K., é o protagonista do O processo. Detido pelas autoridades, julgado por um crime que nunca é de maneira satisfatória, Joseph K. tem de lutar simultaneamente contra a acusação e contra o absurdo, porque não sabe por que está sendo julgado, nem... por quem. Como se defender? Num mundo onde o indivíduo pode perder a liberdade que pensava que tinha, e descobrir que não tem proteção nenhuma, a mesma ideia da liberdade é colocada em dúvida, e de fato – julgada por Kafka no seu livro.
Autoridade, instituições, liberdade (ou pelo menos autonomia existencial), são os temas tratados em O castelo, com o protagonista K. Inspetor topógrafo, é enviado a uma pequena aldeia, onde tem de analisar o castelo imponente. Aceder ao castelo, identificar as suas autoridades e chegar à verdade, tudo está obstaculizado. O homem no labirinto da burocracia que não tem rosto humano, dotada de uma existência absoluta, quase sobrenatural.
Além dessas viagens fantásticas à realidade do homem do século XX, onde Kafka analisa a modernidade e questiona a sobrevivência da ética e da humanidade no mundo impessoal, burocrático, os leitores, se quiserem, podem escolher o Kafka mais pessoal, mais perto do homem biográfico. Este está presente nas cartas, gênero que Kafka cultivou ao longo de muitos anos. Cartas às principais personagens femininas da sua vida, como Milena Jesenská e Felice Bauer. Vida artística, luta contra os obstáculos práticos, a doença que se tornaria mortal – tuberculose –, sonhos, projetos e uma sexualidade torturada. Ainda mais, gerações de leitores têm lido Carta ao pai e se sentido que a carta trata deles, da sua complicada luta para protegerem a sua individualidade perante um pai imponente, o nosso criador, uma autoridade que nos coloca no mundo, nos define, e pode também nos derrubar e até dar cabo de nós.
A obra de Kafka tem um olhar duplo. Por um lado, olha para a modernidade, o caráter impessoal, mecânico e burocrático da realidade, onde tudo é objetivo e, portanto, absurdo. Por outro lado, olha para um passado mais romântico, onde o humano se reflita em atitudes de compaixão e gentileza. Longe de sentimentalismo, Kafka coloca as duas realidades produzidas na duplicidade do seu olhar sensível. É assim que, além das grandes parábolas e das metáforas que dominam as suas obras extensas, temos uma galáxia de textos breves, lidos e relidos por gerações de leitores, que sempre encontram elementos para se identificarem com a visão do autor, tornando a obra de Kafka num poço de eterna sabedoria, num labirinto de autorreflexão.
Se tivermos de escolher um exemplo só, talvez fosse o conto “Na galeria”. Uma página. A história é anedótica. Uma mulher está cavalgando na arena de um circo, dando voltas. Um apresentador está lá com ela, observando, e a observa também o público. O conto contém duas versões do acontecimento. Na primeira, a crueldade imponente do apresentador domina. O público tem de satisfazer a sua fome. Quer é espetáculo, seja o preço o que for. Cavalo, chicote, velocidade. A mulher não importa. O horror, portanto, vira duplo e triplo. Mas isto tudo é apresentado regido por uma condição: “se as coisas são assim...”. Mas não são. Porque se fosse, um jovem cavalheiro apressava-se a salvar a mulher. Corria, baixava da arquibancada, entrava na arena e exigia que o espetáculo grotesco fosse interrompido. Na verdade, de acordo com o texto, na segunda versão, o apresentador trata a mulher como se ela fosse a sua neta, acompanha o salto final com todos os cuidados mais delicados imagináveis, a beija em ambas as bochechas, e ela quer só compartilhar a sua sorte com o público presente. “E como isto é assim. o visitante na galeria coloca o seu rosto na grade, se afundando na marcha final como se fosse um sonho difícil, chora, sem se dar conta.” Homem moderno entre cultura selvagem de espetáculo e o instinto compassivo, protetor do ser humano. Ambivalência fatídica, conhecida por toda pessoa que habita este planeta e consegue se ver na verdade das coisas. Porque a escolha é nossa, sempre, e requer reconhecermos o nosso pior lado.
É só um exemplo. Um texto muito curto, centenas de pérolas na obra de Franz Kafka, que estão ao nosso dispor, se tivermos vontade de testar os nossos nervos éticos. Mais uma definição do que é de fato um clássico? Você, leitor, dirá.