era um homem de 35 anos. Podemos supor que não imaginava que essa idade se tornaria uma referência simbólica.
Em 1919, no mês de novembro, um homem de 35 anos, escreveu uma carta ao seu pai. Não estava na metade do caminho da vida dele, mesmo sendo bonito imaginar que Dante, no início do século XIV, antes da Peste, já estava medindo a nossa vida, a de todos nós, com uma régua temporal de 70 anos. O homem era Franz Kafka, e lhe restavam apenas cinco anos de vida.
Como muitos de nós, ele não conseguia se desligar de um episódio da sua infância. O pequeno Franz, chorando na noite, pediu ao seu pai um copo de água. O pai reagiu de maneira decisiva, não ao pedido, mas ao barulho, aos soluços do menino. Queria era que Franz se calasse. As ameaças do pai não obtiveram o resultado desejado. Franz continuou a chorar, ainda. O pai o levou à varanda da casa onde o deixou de pé, de pijama, diante da porta fechada. A ferida foi profunda, e ficou. O pai, autoridade suprema, força da Natureza, déspota do reinado familiar, é o símbolo absoluto da força arbitrária, mas é também uma realidade difícil de confrontar.
Alheamento, medo, dor levaram à paralisia emocional, a uma relação truncada. Franz Kafka coloca a carta nas mãos da sua mãe, pois não tinha a capacidade de entregá-la pessoalmente. A mãe devolve as 45 páginas. Sabe que é melhor que o pai não leia o conteúdo. A carta permaneceu, e nunca foi lida pelo seu destinatário. Sobreviveu ao próprio autor, e passou ao arquivo pessoal do amigo Max Brod, até ser publicada em 1953.
A longa queixa, o protesto, a acusação, é um documento biográfico, mas o seu mérito literário e a sua relevância universal levaram Brod a publicá-la. A carta contém o mundo literário de Kafka em síntese e em sua quase totalidade. Confrontação com um regime eterno, absoluto. O conflito que resulta no exílio emocional, senão físico do lado vencido. A figura autoritária que é a de um carcereiro. A solidão e o desamparo do menino que, mesmo já adulto, ainda carrega em si o temível pai, elemento paralisante que sabe à perfeição como é o seu prisoneiro, pois ambos os dois existem numa coabitação fatídica. A selva escura de Dante é espiritual, possivelmente circunstancial, mas não é um caminho sem saída, nem uma condenação que nunca termina. Ao contrário: Dante está procurando a salvação, vai encontrá-la ao chegar ao Paraíso. O caminho de Kafka, sem Deus, sem deuses e sem resolução, é um parafuso infinito feito de absurdos, tragédias e sede emocional. O copo de água, lembremos, nunca chegou. O menino eterno tem é uma conta aberta ao pai, que não vai ler o seu intento de buscar uma porta que se abrisse. Está frio, assim numa roupa infantil.
Na Carta ao pai Kafka é prisioneiro. A sua condenação é eterna. A rebelião é necessária do ponto de vista emocional, mas não tem esperança de sucesso, de mudar a realidade. Num fragmento, Kafka oferece uma chave: “Como as pessoas carregam o inimigo deles, seja miserável quanto for, sempre neles. Por ele, por esse inimigo miserável, são”. O nosso inimigo reside em nós. Hoje as pessoas tentam a psicoterapia para resolver conflitos desse tipo. Ultimamente, cresceu, mais uma vez, a popularidade do budismo (nem sempre bem-interpretado ou apresentado na sua complexidade) para tentarem se desligar dos inimigos internos, os fantasmas da infância. A luta é longa, ela mesma é parte da nossa identidade como pessoas modernas, no labirinto da consciência.
Kafka sabia muito bem de tudo isso, na própria carne, e tratou dessa temática em todas as suas obras. Não houve para ele a segunda metade da vida, nem Paradiso nenhum. A sua desgraça é a nossa sorte, como seus leitores.