Antônio Maria foi, pela ordem, locutor esportivo, autor de jingles, produtor e diretor de musicais e de programas de humor no rádio, diretor artístico de emissora, colunista de jornal e revista, entrevistador de programa de televisão e craque em botar apelido nas pessoas. Era feio, gordo, suarento e de cabelo ralo, mas desejado pelas mulheres. Alto, forte e bom de briga. Gourmand e, ao mesmo tempo, cardíaco. E, para sempre, uma lenda na noite carioca. Fez muito tudo isso e fez tudo muito bem. Mas tinha outro talento, mais importante do que todos, e a que a posteridade não tem feito a necessária justiça. Foi um dos maiores compositores e letristas da música popular brasileira na segunda metade do século XX.
Maria jamais quis ser um profissional do ramo – fazia música ou letra quando lhe dava na telha ou se lhe vinha uma inspiração. Mesmo assim, deixou um legado de melodias e imagens imortalizado pelas maiores vozes do país. Apenas enquanto viveu, Maria foi gravado por Nora Ney, Aracy de Almeida, Doris Monteiro, Dircinha Baptista, Dolores Duran, Leny Eversong, Maysa, os grandes e esquecidos Luiz Cláudio e Gilberto Milfont, Elizeth Cardoso, Carlos Galhardo, Ângela Maria, Agostinho dos Santos, Pery Ribeiro, Lúcio Alves, João Gilberto e Nat King Cole – que tal? Entre os da sua geração, só Antônio Carlos Jobim teria um cartel igual.
E o incrível é que, com uma obra relativamente pequena, Maria tenha deixado tantas canções que ficaram na memória de tantos. Duvida? Uma consulta rápida à minha própria memória traria de volta coisas como estas:
“Ninguém me ama/ Ninguém me quer/ Ninguém me chama de meu amor// A vida passa/ E eu sem ninguém/ Quem me abraça não me quer bem...” (“Ninguém me ama”, com Fernando Lobo… na verdade, sem Fernando Lobo, porque Maria fez tudo e só lhe deu parceria). “Vento do mar e o meu rosto a queimar, queimar/ Calçada cheia de gente a passar e a me ver passar/ Rio de Janeiro, gosto de você/ Gosto de quem gosta/ Deste céu, deste mar/ Desta gente feliz// Bem que eu quis escrever/ Um poema de amor, e o amor/ Estava em tudo que eu quis/ Em tudo quanto eu amei...” (“Valsa de uma cidade”, com Ismael Netto).
“Dorme, menino grande/ Que eu estou perto de ti/ Sonha o que bem quiseres/ Que eu não sairei daqui/ Oh vento, não faz barulho/ Meu amor está dormindo/ E o mar não bata com força/ Porque ele está dormindo...” (“Menino grande”, só dele). “Nunca mais vou fazer/ O que o meu coração pedir/ Nunca mais vou ouvir/ O que o meu coração mandar// O coração fala muito/ E não sabe ajudar/ Sem refletir/ Qualquer um vai errar, penar...” (“Canção da volta”, com Ismael Netto).
“Guarda a rosa que eu te dei/ Esquece os males que eu te fiz/ A rosa vale mais que a tua dor// Se tudo passou, se o amor acabou/ A rosa deve ficar/ Num canto qualquer do teu coração/ O amor reviverá...” (“O amor e a rosa”, com Pernambuco). “Quando tu passas por mim/ Por mim passam saudades cruéis/ Passam saudades de um tempo/ Em que a vida eu vivia a teus pés...” (“Quando tu passas por mim”, com Vinicius de Moraes). “Sou da noite do Rio/ Da noite macia do Rio/ Eu sou deste bar que me chama/ Em nome de alguém que me ama// Sou da noite do Rio/ Da noite bonita do Rio/ Dou graças a Deus se tem lua/ Pois fico mais tempo na rua...” (“Carioca 1954”, também com Ismael Netto).
“Nesta noite comprida/ Onde anda você?/ Neste instante da vida/ Onde anda você?/ Por que você não vem/ Meu bem, por quê?/ Nesta hora perdida/ Eu queria você//* Fui como um resto de bebida/ Que você jogou fora/ E na hora/ Farta de mim/ Me esqueceu...” (“Onde anda você?”, com Reynaldo Dias Leme). “De que serve viver tantos anos sem amor/ Se viver é juntar desenganos de amor/ Se eu morresse amanhã de manhã/ Não faria falta a ninguém// Eu seria um enterro qualquer/ Sem saudade, sem luto também...” (“Se eu morresse amanhã de manhã”, também com Pernambuco).
E, claro, “Manhã, tão bonita manhã / Na vida, uma nova canção / Em cada flor, o amor / Em cada amor, o bem / O bem do amor faz bem / Ao coração...” (“Manhã de Carnaval”, com Luiz Bonfá). E muitas, muitas mais.
Com alguns parceiros altamente musicais, como Ismael Netto, Pernambuco e Luiz Bonfá, Maria faria a letra. Com os outros, mais chegado às letras, como Reynaldo Dias Leme, Maria fazia a música. Mas quem diria que, em “Quando tu passas por mim”, foi Vinicius quem fez a música e Maria, a letra? Na música popular, é um erro atribuir a uma parceria essa divisão de funções. Toda música precisa se adaptar à letra e vice-versa e, muitas vezes, um dá palpite no trabalho do outro. No fim, a parceria é aquilo mesmo que o nome diz – uma parceria.
E, ao ler as letras de Maria, muita gente se engana descrevendo-o como um homem deprimido, triste, só e abandonado. Um espetáculo teatral dos anos 1970, Brasileiro, profissão esperança, de Paulo Pontes, com Bibi Ferreira e Paulo Autran interpretando Maria e Dolores Duran, e depois muito reprisado (com Maria Bethania e Ítalo Rossi, Clara Nunes e Paulo Gracindo, a própria Bibi e Gracindo Junior), caiu nesta armadilha – pintou-os como se eles fossem na vida real como os personagens de suas letras.
Paulo Pontes era jovem, não conheceu nem Maria nem Dolores. Sua namorada Bibi, que os conheceu muito bem, sabia que eles não eram assim, mas não iria cortar o barato do garoto. Brasileiro, profissão esperança foi, portanto, um enorme sucesso em cima de algo que nunca aconteceu. Tanto Maria quanto Dolores eram pessoas empolgadas, que riam e faziam rir, contavam piadas, devoravam feijoadas matinais e não tinham frustrações amorosas – muito pelo contrário! Eram apenas cardíacos, daí terem morrido tão cedo. E a música que faziam – o samba-canção, o ritmo brasileiro mais bonito e popular dos anos 1950 – era desse jeito: só falava de amores desesperados.
O fato de Antonio Maria descrever tão bem os sentimentos de uma pessoa em permanente fossa, sem que ele absolutamente fosse desse jeito, só revela o compositor e letrista que ele era.
O grande artista não tira sua arte de si mesmo. Tira-a da magia da sua criação - por isso é artista. Antonio Maria assinaria esta frase.