Ópera do terror

Junho de 1990. Como repórter do Jornal do Brasil, chego à Itália para a 14ª Copa do Mundo. Escalam-me para Verona, onde devo acompanhar o grupo E. Tudo parece divertido e previsível. Engano meu. Dias depois, para quebrar minha paz, anuncia-se a visita de Fernando Collor, o presidente brasileiro.

Em Milão, Collor vai ao La Scala, para uma récita da ópera Carmen. Escolhem-me para acompanhar o presidente brasileiro. Fico em uma frisa, a poucos metros do camarote de honra. A ópera não importa, me advertem. Devo estar, todo tempo, atento à figura e às reações de Collor. Ele não é um aficionado da ópera. Pode se distrair cochichando, pode – por cansaço – se levantar antes da hora. Pode aplaudir na hora errada. Pode dormir.

E são esses deslizes que interessam, sobretudo, ao jornal. Há uma grande expectativa em relação às derrapadas do presidente, que devem ser capturadas em minúcias. De meu assento, vasculho o camarote principal. Embora o presidente não me veja, e nem saiba que existo – fatores que jogam a meu favor –, estou ali para vigiá-lo e, se possível, fisgá-lo. Nenhum descuido deve me escapar. Se o presidente bocejar, devo anotar. Se dormitar, também. Qualquer deslize fora de hora deve ser considerado fatal.

Nem bem a ópera começa e já estou com o pescoço torto. Para o bem do jornalismo, preciso me manter na posição desagradável. A grandeza de um repórter está nos detalhes. Vem-me à mente um antigo relato de Júlio Cortázar, registrado em uma ida à ópera em Munique. Em pleno segundo ato, uma senhora, acomodada na plateia, tem um acesso de tosse. Um acesso devastador. O teatro estremece. Cortázar, que amava os cronópios e as miudezas, não consegue mais dar atenção à ópera, só ouve os pigarros da senhora alemã. Dissonantes e convulsivos, eles emprestam à ópera de Bizet uma modernidade que ela não tem. Horas depois, em sua casa, é sobre a tosse alemã, e não sobre a ópera, que ele escreve.

Também eu não posso perder tempo com os acordes e trinados de Bizet. Só o presidente importa. “O senhor podia, por favor, se sentar direito?” – diz uma voz irritante atrás de mim. Aprumo-me na cadeira, mas o pescoço, apesar da dor, deve se manter girado, como um catavento, em direção ao camarote presidencial. A distância, é impossível saber sobre o que Fernando e Roseane Collor tagarelam. Como um guarda bem-adestrado, continuo a vigiar. Sou um cão de guarda alemão. Embora uma correia invisível me oprima o pescoço, devo me manter calmo. Não devo me lamuriar e não devo latir.

No primeiro intervalo, corro ao foyer na esperança de encontrar o presidente. Chego a tropeçar em uma cadeira que, no escuro, me escapa, mas nada – nenhum sinal dele. Começo a suar frio. Alguma coisa pode ter acontecido, uma derrapada, uma gargalhada fora de hora, uma gafe qualquer, um mal-estar, e eu, o repórter incompetente, perdi. Melhor voltar a meu posto para não correr perigos mais graves. E se, em pleno segundo ato, Collor, em um rompante, decidir abandonar o teatro? E se um agressor, chego a pensar – mas me proíbo de pensar. Não posso deixar de que os nervos me dominem.

O mesmo sofrimento se repete nos intervalos seguintes. Na escuridão do La Scala, chego a ouvir murmúrios e lamentos que provavelmente não existem. Assombrações me rondam. Tudo pode acontecer e devo me preparar para tudo. O presidente, porém, continua imóvel e inteiro. Quando a ópera termina, estou exausto. Aniquilado. Os nervos destruídos. Um colega paulista me pergunta: “Você está bem”? Enquanto isso, indiferente a meu sofrimento, o presidente toma sua Mercedes rumo a um jantar de gala. Fernando Collor, o mártir, sou eu.