Sobre o exercício da escrita

As pessoas propõem que eu fale do meu processo de criação, coisa que não se fazia no passado. Agora, os escritores publicam um livro e dão conferências sobre técnica literária e até ministram oficinas de escrita criativa. Lembro o ensaio de Deleuze A literatura e a vida: Acontece de felicitarem um escritor, mas ele sabe que está longe de ter atingido o limite a que se propõe... Escrever é também tornar-se outra coisa que não escritor. E Virgínia Woolf: Quem fala de escrever? O escritor não fala disso, está preocupado com outra coisa.

Mas aqui estou eu, seduzido pela armadilha de falar. Experimentei o teatro, quando era adolescente e ainda morava no Crato. Escrevia monólogos, diálogos e crônicas para as festas do colégio. Participei da adaptação e montagem cênica de Vidas secas, de Graciliano Ramos, mas considero o exercício de escrever cartas, redações e discursos por encomenda o meu início. Substituí minha mãe, uma professora primária, nesse ofício. Ela ajudava gente humilde e iletrada escrevendo cartas a seus parentes distantes, maridos, noivos, filhos, pais ou irmãos. Com o tempo, tornou-se ocupada e pediu que eu assumisse o lugar dela. As pessoas sentavam-se em um lado da mesa, eu no outro. Aos 10 anos, aprendi a ouvir com atenção, a olhar quem falava e a dar forma à escuta.

Do aprendizado evoluí ao gosto pela medicina, que consiste em ouvir, olhar e tocar quem se queixa. Os pacientes tornaram-se meus narradores. Não escrevo autoficção. Perguntaram a Isaac Bashevis Singer: Por que você escreve sobre ladrões judeus e prostitutas judias? Ele respondeu: Querem que eu escreva sobre ladrões espanhóis e prostitutas espanholas? Eu escrevo sobre os ladrões e as prostitutas que conheço. Nasci e vivi no sertão dos Inhamuns, morei anos no Crato, cidade do Cariri cearense, cercada de sertão por todos os lados. Vim residir no Recife, para onde convergiram e ainda convergem sertanejos do Nordeste. Qual a paisagem física e amorosa que me habita por dentro e por fora? O sertão. Em qualquer lugar por onde eu viaje, o sertão me acompanha. Mesmo escrevendo em geografia de Berkeley ou Toulouse, a memória do sertão é inevitável porque ele está em toda parte, como afirmou Guimarães Rosa.

Andei falando que tenho um projeto literário, mas dizer o mesmo, hoje, soaria falso. Dediquei-me ao romance porque sem épica não há sociedade possível e não existe sociedade sem heróis em que se reconhecer. A épica da sociedade moderna é o romance, li em Jacob Burckhardt.

Nunca se escreveu, nem foram publicados tantos romances como agora, mesmo que haja tão poucos leitores. Me parece que já não são os romances que engendram os heróis, mas a cultura de massa, os shows, a internet e a televisão. O apresentador de TV Pedro Bial chama os participantes do Big Brother de os “heróis da casa” e tenta transformá-los em heróis do país.

Vivi em sociedades narrativas, com pessoas que gostavam de ouvir e narrar histórias. Sobrava tempo para isso. Montaigne afirmou que contava, não ensinava. Porém, na França em que ele viveu; ao dar entrevista a uma rádio, me perguntaram se eu gostaria de criar narrativas a partir de conversas curtas de WhatsApp. Quando me sento para escrever, penso no contrário disso. Deixo que os personagens falem à vontade, encham as páginas do romance com suas falas, como se tivessem vontade superior à minha.

Acredito que um homem normal é aquele capaz de contar sua própria história. Jean-Claude Carrière afirma que se a relação indivíduo-história se rompe, o relato de vida se parte e o indivíduo é projetado para fora do tempo.