O Nada e o Verbo

Não consigo escrever sem antes anotar no alto da página a palavra “Nada”. Sempre me perguntam que vazio é esse, que ausência é essa que primeiro devo registrar e aceitar para só depois iniciar minha escrita. Não encontro resposta. Desconheço a origem desse vício.

Pois ontem, meu amigo Sérgio Pantoja, sem perceber o que fazia, me apontou uma possível resposta. Um nome para essa trava, esse silêncio, sem a qual as palavras não me saem. Lembrou-me Sérgio de um jornal escolar em que publiquei, nos anos 1960, meu primeiro poema. Não sou poeta – e, portanto, o poema não presta. Mas isso é o que menos importa.

Importa sim que esse poema juvenil é a origem de meus primeiros escritos. Não consigo me lembrar do nome do jornal, editado por um colega de sala. Tampouco recordo o título do poema. Já nem lembrava de sua existência. Restou esse rombo – essa cratera, esse nada – do qual toda a minha escrita veio. E o pior: ainda vem.

Impossível não associá-lo ao ventre de minha mãe de onde, miúdo, desamparado, perplexo, eu mesmo vim. Da caverna onde fui gerado. Estranho vir de algo que desconhecemos. Nesse caso, não se deve falar em descendência, mas em susto. Não descendência, mas ruptura. Somos filhos do escuro.

Desde muito jovem, a partir do poema desaparecido, escrevo sem parar e sem saber por que escrevo. Só sei que preciso escrever, continuar a escrever, e que assim, cego – ainda no escuro –, sigo meu destino. Filho do vazio, não devo nada a ninguém – a nenhuma escola, a nenhum método, a orientação alguma. Sou o desorientado, que rastejo na noite, apalpo o chão e nunca sei onde estou. Em consequência, posso tudo, ou quase tudo. Ou me iludo que posso, o que dá no mesmo.

Sérgio diz que ainda guarda alguns trechos do poema, anotados em um caderno escolar. Ficou de me enviar. Ainda não enviou, o que talvez seja melhor. Sou grato a ele, mas não sei se devo ler o que o tempo e a memória me roubaram. Tenho medo de matar minha escrita com a névoa do conhecimento. Teses, hipóteses, conceitos só a arruinariam.

O saber dos escritores é de outra ordem, não do conhecimento organizado, mas do instinto. Avança por rajadas, como uma ventania, e o escritor é carregado junto com o que escreve. Acho que não lerei o poema perdido, mesmo que Sérgio o reencontre, sob o risco de quebrar o mistério do meu “Nada”.

Tento, porém, recordar a situação em que eu o escrevi. Recordar quem foi esse menino que o escreveu. Fui um menino curvo e triste. Não andava, rastejava. No colégio de jesuítas, escondia-me nos cantos, arrastava-me entre os medrosos. A adolescência é o período em que descobrimos que somos nossas próprias estacas. Mas, sempre que eu tentava me agarrar a mim mesmo, nada encontrava. Só um vento frouxo e constante, só o Nada.

Foi esse rapaz tímido e frágil, mudo porque tímido, invisível porque mudo, quem escreveu seu primeiro poema. O poema que eu mesmo esqueci que tinha escrito. O poema que meu amigo Sérgio ao longo de todo esse tempo conservou. No lugar do poema, me ficou um rombo. Dele, desse vazio, passaram a nascer as palavras que hoje escrevo.

Sérgio me assegura que localizará o poema e que o enviará de volta. Fico muito curioso a respeito de meu poema fracassado. A verdade, porém, é que já não sei mais o que devo fazer. Não quero perder o “Nada” que tomou o lugar do poema – o Nada que hoje me constitui. O grande Nada de que nasci e de onde vieram todas as palavras que escrevo. Tenho medo de que o poema ressurja só para me calar.