Tento escrever minha crônica, juro que me empenho e que dou o melhor de mim, mas nada sai que preste. Apago o que rascunhei. Elimino, sem piedade ou decoro, as pegadas de meu fracasso. A escrita não tem relação alguma com o empenho, ou com a aplicação. Não diz respeito ao bom comportamento. Trata-se de outra coisa. Algo que se relaciona mais com o desvio e com o transe. Desligo o computador e decido pedir um almoço. Entro no aplicativo e escolho um bife. Jogo-me no sofá.
O interfone toca, é o rapaz da entrega. Assim que ele sai do elevador, percebo que tem a face esmaiada e que gotas de um suor grosso lhe escorrem pela testa. “Você está bem”? Arregala os olhos, me entrega a encomenda e se apoia na parede do hall. “É só fome, ainda não tive tempo de comer”. Peço que entre, vou lhe preparar um sanduíche. Mas, sem pensar, o que me sai é: “Entre e sente. Vamos dividir meu almoço”. Antes que eu possa completar a frase, ele desmaia.
Não sei se desmaia, não perde a consciência, embora não consiga se erguer sozinho. Está em um estado limítrofe entre a fraqueza e o horror. Com dificuldade, eu o ajudo a levantar. “Desculpe, desculpe”, ele repete. Peço que entre e se acomode em uma cadeira. Vou pegar um copo d’água. “Você não sai daqui sem comer.” Diz que não pode aceitar, ainda tem outras entregas a fazer e não deve se atrasar, ou a comida esfria. “Nesse estado, você não consegue nem subir na moto”, argumento. Ele me corrige: “Não é moto, é bike”.
Abro o embrulho do restaurante. Pego pratos e talheres. Dividimos um bife com fritas. Deixo para ele o pedaço maior. Está envergonhado, além de aflito com as outras entregas, mas a fome é mais forte. Engole nacos do bife quase sem mastigar. Repete: “Obrigado, obrigado”. Quando termina, me diz: “A verdade é que ainda não estou bem”. Há quantas horas estará pedalando? Conta que começou cedo. O sol está forte, faz muito calor, como aguenta?
Quero dizer alguma coisa. Nada presta, não sei o que dizer. Como são frágeis as palavras! O defeito deve ser meu, que sou um cronista medíocre. Buscando palavras que me fogem, percorro com os olhos a estante da sala. Em uma sincronia, me deparo com meu velho exemplar de O zen e a arte da manutenção de motocicletas, de Robert Pirsig. O clássico da contracultura, que li aos 20 anos.
“Você não gosta de motos”? - eu pergunto, sem pensar no que pergunto. “Não tenho dinheiro para comprar. Tenho que enfrentar a bike mesmo”. Continuo a observar a lombada do livro de Pirsig. Busco alguma conexão que me traga palavras que prestem. Eu o li há 50 anos. Lembro que me impactou muito, mas já não sei dizer por que impactou. Droga, por que as coisas sempre se perdem? Agora observo o menino à minha frente. Tem a idade que eu tinha, quando li o livro de Pirsig. Encaro meu passado.
“Preciso ir”, ele diz. “Desculpe, mas preciso cobrar a refeição”. Puxa a máquina de cartão de crédito. Dou-lhe o meu cartão. Enquanto ele digita, penso de novo no livro de Pirsig. O difícil não é a manutenção das motocicletas, o difícil é a manutenção da vida. Tenho à minha frente um garoto que chegou a seu limite. Conseguirá retomar seu trabalho? Faço a pergunta inútil, detestável: “Você tem certeza de que está bem”? Não tem escolha e eu sei disso. Meu miserável bife não resolveu nada, só adiou. Ele me aperta a mão e desaparece no elevador.
Fecho a porta de casa. Tudo o que me fica é a história do entregador, que agora tento narrar. Mesmo indisposto com meus escritos, mesmo achando que não servem de nada, só me resta escrever. Penso na arte da manutenção da escrita, que se alimenta dos restos da existência. Só com eles, as palavras se mantêm de pé e não desmaiam. À escrita, então, eu me agarro. O rapaz não sabe disso, nunca saberá. Mas, muito mais que um bife frio e murcho, foi uma crônica que ele me entregou.