O castelo de labirintos insondáveis

Escrito durante cerca de sete meses, de fins de fevereiro a começo de setembro de 1922, O castelo era narrado em primeira pessoa nas 46 páginas iniciais, e só a partir desse ponto passava à terceira pessoa. Mais tarde o autor reescreveu o começo do livro também na terceira pessoa. Aquele que narra, em Kafka, não sabe nada, ou quase nada, sobre o que de fato acontece – do mesmo modo, portanto, que o personagem, observou Modesto Carone.

“Era tarde da noite quando K. chegou. A aldeia jazia na neve profunda. Da encosta não se via nada, névoa e escuridão a cercavam, nem mesmo o clarão mais fraco indicava o grande castelo. K. permaneceu longo tempo sobre a ponte de madeira que levava da estrada à aldeia e ergueu o olhar para o aparente vazio.”

Mas o agrimensor K. é teimoso, não desiste de transpor muralhas e chegar aonde ninguém parece ter estado antes. Em meio à neve branca que paralisa os seus movimentos, as sombras vistas de longe se revelam de perto um amontoado de casas de uma vila pobre e feia, pondo em dúvida a existência real do edifício-sede do castelo, um mundo que foge à compreensão e causa espanto.  

Numa entrevista com o prefeito do lugar, revelam-se as circunstâncias que trouxeram K. até ali, embora a autoridade afirme não haver a menor necessidade de agrimensor naquelas terras. Tenta explicar como aconteceu a contratação desnecessária e equivocada, numa administração tão grande como a do castelo, em que às vezes certa repartição determina isto, outra aquilo, nenhuma sabe da outra e sendo assim pode surgir uma pequena confusão. O diálogo entre K. e o prefeito é uma síntese do universo kafkiano, reforça o ponto de vista de Günther Anders de que Kafka era um realista que enxergava “um mundo do poder total e totalitariamente institucionalizado”. Visionário, Kafka anteviu a automação humana e a transformação do homem num joguete burocrático de sistemas como o fascismo, o comunismo e o capitalismo. 

Tais circunstâncias se repetem de forma obsessiva e absurda em todo o relato de O castelo, da primeira à última página. Nada acontece segundo uma lógica habitual. A lógica que se revela e que nos escapava até então, apesar de todos os seus absurdos, parece única, verdadeira e real. Como se Kafka descascasse as mentiras que nos cercam, deixando exposta uma realidade sem nenhum encantamento, nenhuma chance de romantismo ou afeto. As metáforas são abolidas, as descrições poéticas de cenários e objetos não existem, sentimentos de compaixão desaparecem. Tudo funciona nesse mundo d’O castelo dentro de uma ordem de poder esmagadora, uma burocracia paralisante que torna a ação individual impossível, não por conta de uma força trágica e divina, mas pela perversidade de sistemas inventados pelo próprio homem e que o impedem de algum dia alcançar a verdade.

Atravessamos as páginas do romance com um frio no estômago, angustiados com o esforço de K. em romper a ordem aceita por todos os que vivem naquele mundo, sem questioná-la, nem tentar desfazê-la. K. argumenta com as pessoas, mas elas não o compreendem. Dizem-lhe que interpreta tudo erradamente, até mesmo o silêncio, mas que também não pode agir de outro modo porque lhe escapa o funcionamento do castelo, apesar das inúmeras tentativas, ele jamais alcançará as altas esferas do poder. 

Sobram equívocos nesse estranho mundo d’O castelo. O romance finda como se não findasse, numa premonição de tempos futuros ruins, que se prolongarão eternamente, pairando sobre sociedades que aboliram a noção de sagrado e nas quais o homem se encontra sozinho.