Tenho 14 anos, viajo com meu pai Ribamar, minha irmã Sandra e um tio, que é coronel da reserva e que me despreza. Ainda no trem, pouco antes do desembarque na Gare de Lyon, em Paris, tivemos mais uma discussão nojenta. Não me lembro de onde surgiu o nome de Miguel Arraes, que vivia exilado na Argélia e por quem eu demonstrei minha admiração. Meu tio, indignado, me acusou de “baderneiro”. E diagnosticou: “Esse menino está louco”. Meu pai, um homem de coração bom, mas um conservador convicto, não conseguiu me defender. O coronel ergueu a voz, então me enchi de coragem e gritei ainda mais alto. Uma senhora gorda, dentro de um vestido de veludo que se assemelhava a uma cortina, não se conteve: “Os senhores não estão em casa, isso é a França!” Nós nos calamos.
Vindos de Carcassone, a cidade medieval, chegamos enfim à Gare de Lyon. A tarde está sombria, cai uma tempestade, Paris desaparece sob as águas. Já na longa fila do táxi, nos esprememos sob um toldo estreito e cheio de furos. Estamos molhados e irritados. Atrás de mim, tenso, falando sozinho, gesticulando muito, um homem me empurra. Viro-me e o examino: é Michel Foucault, o jovem e já famoso filósofo francês, só pode ser ele. Está com seus 40 anos. Só o reconheço porque, um pouco antes, ele lançou sua História da Loucura. O título me impressiona – já nessa época, infernizado por um alvoroço interior e cheio de dúvidas insolúveis, eu me perguntava se eu não estava ficando louco. Se aquilo não era a loucura. Dias antes, em Carcassone, eu lera um breve artigo sobre o livro de Foucault. Havia uma foto do filósofo, que examinei lentamente, tentando nela encontrar sinais da loucura de que ele falava – porque só um louco pode falar de outros loucos, eu pensava. A mesma loucura que, eu suspeitava, também me rondava.
O louco que me espreme na fila do táxi é Foucault – eu decido, assombrado. Como se isso adiantasse de alguma coisa, como se abrandasse meu mal-estar com os empurrões. Como eu podia dar alguns passos à frente, como o filósofo exigia, se a fila estava atolada nas poças que, apesar de francesas, eram nojentas? Eu tinha vontade de lhe aplicar uma cotovelada – mas ele era Michel Foucault, e me parecia enorme, e eu entraria para a história da filosofia como o garoto imbecil que o agrediu em uma fila de táxi. Tinha vontade de gritar, como fizera com o coronel, mas meu francês era precário e eu temia, diante do imenso homem, revelar minha estupidez.
Além disso, a calçada está escorregadia. Com nossos guarda-chuvas abertos e em luta, nós nos equilibramos sobre as poças, somos dois homens que dançamos na chuva. Volto a observá-lo. É Michel Foucault sim, ou minha fantasia – desgovernada e louca – me engoliu de vez. Será que tudo não passa de um sinal de minha loucura? Tenho vontade de lhe pedir um autógrafo no livro que não comprei e que não li, apenas sonho em ler. Eu o admiro, mas eu o odeio, senhor Foucault. Por que ferir meus 14 anos com uma leitura tão densa? Por que machucar minha alma de garoto com a difícil história de um sofrimento? Só uma resposta: para ver se estou ali. Se eu também faço parte do séquito dos loucos.
Com meu francês ginasiano, engatilho mentalmente a pergunta que lhe farei. Apesar dos empurrões, o senhor é Michel Foucault? Estou a um passo de falar, de enfim falar, quando uma voz, vinda da minha frente, me corta: “Vamos, ande logo! Será que você não percebe que o táxi chegou?” É o coronel. Virando-se para meu pai, ele completa: “Esse menino é louco mesmo, seria melhor interná-lo”. Desolado, entro no táxi. Meus pés estão gelados, meu amor próprio em destroços. Nunca mais verei Michel Foucault, o único homem que poderia me compreender.