A escrita do nada

São diferentes e estranhas as pontes de acesso à escrita. João Gilberto Noll precisava de uma praia deserta, ou de um bar vazio e em desordem, para começar a escrever. Cristóvão Tezza precisa caminhar em círculos pela sala de seu apartamento, em Curitiba, como se fosse receber um espírito. Manoel de Barros pedia que a mulher o trancasse à chave em seu escritório de Campo Grande, e só o libertasse na hora do almoço. São truques, são vícios, são caminhos para que, enfim, as palavras nasçam.

No meu caso, a coisa é mais enigmática e sem sentido. E provavelmente mais tola. Desde muito, não consigo iniciar um texto, qualquer texto, sem antes escrever no alto da página em branco a palavra “nada”. No alto dessa página em que anoto minha crônica também há um “nada” escrito, que depois eu apagarei. De onde eu tirei isso? Não tenho a menor ideia. Recordo, vagamente, que meu primeiro “nada” surgiu no início dos anos 1990, quando eu rascunhava, em um computador pré-histórico, um dos capítulos de minha biografia de Vinicius de Moraes. Ou terá sido antes ainda?

Anotada no alto da página, a palavra “nada”, hoje posso pensar, promove uma espécie laica de “limpeza espiritual”. Com ela, deixo para trás meus preconceitos, minhas ideias fixas, meus rascunhos fracassados, minhas manias mais estúpidas e pequenos pecados, e, diante do imenso branco que se abre à minha frente, sinto-me livre, completamente livre, para tomar qualquer caminho e escrever tudo o que eu quiser. A palavra “nada”, portanto, traz uma garantia de liberdade. De liberdade interior. Ela talvez seja a própria liberdade. O imenso vazio que ela descerra dentro de mim me livra de vícios, truques e culpas, e me conduz, enfim, à grande surpresa da escrita.

Houve um dia em que, intrigado, na verdade exasperado, tomei a decisão perigosa de eliminar meu “nada”. Livrar-me dele, como se ele fosse uma praga, ou um flagelo. Surgiu desse corte um imenso silêncio. A princípio, imaginei que esse silêncio seria ainda mais potente que o “nada” e que ele me traria uma liberdade ainda maior. Aos poucos, eu descobri, o silêncio só traz mais silêncio. Nada mais pode sair de dentro do silêncio senão um silêncio ainda mais intenso. Com o avançar do tempo, eu estava paralisado. A página ficou em branco. Nenhuma palavra me surgiu. Precisava apagar imediatamente o silêncio para voltar a existir.

Tentei, ainda, substituir meu “nada” por sinônimos que o dicionário me ofereceu. “Zero”, “coisa nenhuma”, “bulhufas”, “patavina”. Achei que talvez devesse trocar o “nada” pela palavra “vazio”. Nada disso funcionou. Eu caía sempre de volta no grande deserto branco diante do qual a escrita não consegue se erguer. Aconselhei-me com amigos. Um deles me sugeriu, simplesmente, que me esquecesse do “nada”, afastasse essa palavra insidiosa de minha mente. Tentei fingir que não me lembrava dela. Usei de toda a astúcia que tenho. Pensei em outras coisas, passei a fazer só alguns rabiscos sem sentido no alto da página, cheguei a desenhar bobagens como flores, ou caracóis. Que nada. Sempre o mesmo “nada” estava de volta.

Invertendo minha estratégia, passei a anotar a palavra “tudo” no alto da página em branco. Não simpatizo muito com a ideia de “tudo”, pois me parece que sempre alguma coisa fica de fora. Ainda assim, tentei, juro que tentei, mas também não funcionou. Não sabia mais o que fazer. Até que decidi me submeter à maldita palavra. Se ela exige sua presença, se ela se impõe brilhante e vigorosa, só me resta aceitá-la. E foi o que fiz. Já não brigo mais com o “nada” que se ergue acima de todos os meus escritos. Se vou escrever um e-mail, antes registro: “nada”. Se vou anotar um recado, um breve aviso, mesmo que não a escreva, primeiro penso nela: “nada”. Tornou-se um combustível. E agora sei que minha escrita, sempre, do “nada” se alimenta.

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