Durante 40 anos percorri de casa a um hospital no Bairro de Tejipió, no Recife, onde trabalhei como médico-clínico. Conhecido por Sancho, tinha sido inaugurado depois da Segunda Guerra para ser um dispensário de tuberculose, acreditando-se que a doença seria erradicada. Era a Montanha mágica de Thomas Mann, ficava num terreno alto, arborizado, com bom clima, condições que se imaginava propícias à cura. Alguns pacientes ficavam internados por anos, outros nunca recebiam alta. Em 1978, quando me admitiram, um quarto dos 1.200 leitos iniciais destinavam-se à psiquiatria. O ambiente era lúgubre, à noite andava-se com terror pelos corredores sombrios dos mais de três hectares de construção. Escutavam-se gemidos, tosses, as queixas dos tuberculosos e os gritos dos loucos.
Sempre me perguntei se já alcançara em quilômetros a mesma medida em verstas percorrida por um dos meus escritores prediletos, o russo Anton Tchekhov, na viagem à ilha de Sacalina.
A modéstia e a recusa a qualquer louvor ao nome não impediram que a façanha dessa viagem de um ano, para avaliar as condições de vida e saúde de prisioneiros e seus familiares acometidos pelo cólera, fosse exaltada. Com apenas 30 anos, o médico, contista e dramaturgo já era portador de tuberculose, o que tornou o seu percurso mais penoso. Mas Tchekhov dava um valor incomum ao trabalho, condenava toda existência de parasita e sentia desprezo pela vida baseada na escravidão. Sempre se fazia a pergunta “o que devo fazer?”, não se sentia bem com a fama, temia estar divertindo um mundo perdido, não conseguindo nomear o sentido do seu trabalho como artista. No entanto, trabalhava até se exaurir. Morreu com apenas 44 anos, deixando mais de 500 contos, peças de teatro curtas e quatro dramas longos, continuamente encenados.
São comuns os personagens médicos, profissão em que se sentia mais seguro, referindo-se à medicina como a esposa legítima e à literatura como amante, não gostando de dedicar-se mais a esta. Tinha dúvidas em relação à arte, sobretudo à literatura, precisando de atividades complementares, recusando-se a dedicar-se apenas à escrita, pois nela faltava-lhe um sentido social, masculino e prático.
No conto “Um caso clínico”, que leio e releio sempre, o médico Korolióv desloca-se de Moscou para visitar uma jovem paciente acometida de palpitações e ansiedade. Filha única, mora com a mãe e uma governanta numa casa em meio a galpões de fábricas, herdados do pai. A pedido da viúva aflita, o médico aceita pernoitar na casa decorada com objetos caros e de mau gosto, onde a governanta é a única pessoa que usufrui a riqueza adquirida pela exploração de centenas de trabalhadores miseráveis. Korolióv sente compaixão pela mãe e pela filha infelizes, que não conseguem dormir, nem se alimentar.
“Aqui há um mal-entendido, pensava. Mil e quinhentos e dois operários trabalham sem descanso, num ambiente insalubre, fabricando chita ordinária, vivem famintos e só de vez em quando despertam desse pesadelo, no botequim. Uma centena de pessoas vigiam o trabalho que os demais realizam, e toda vida dessa gente passa em registro de multas, em discussões, injustiças, e somente dois ou três dos chamados patrões aproveitam as vantagens de tudo aqui, embora absolutamente não trabalhem e desprezem a chita inferior.”
O conto, uma obra-prima, é da década de 1890, bem antes da revolução russa deflagrada em 1917. Um crítico escreveu que o texto provocava uma impressão penosa e censurou Tchekhov por ter traído a “arte pura”, acusando-o ainda de insinceridade e falta de independência.