Frankenstein: o monstro sempre renasce

Cinema tem nova adaptação do romance clássico de Mary Shelley, escrito durante um desafio para espantar o tédio e que virou um marco da literatura gótica

Em 1818, Mary Shelley lançou a versão final da história intitulada
Em 1818, Mary Shelley lançou a versão final da história intitulada "Frankenstein, ou o Prometeu" moderno

Alguns livros são inesgotáveis. São os clássicos que nunca terminaram de nos dizer aquilo que têm para nos dizer, conforme ensinou Italo Calvino, e que, entra geração, sai geração, continuam sendo lidos, debatidos, criticados, adaptados, celebrados, amados. Neste inner sanctum da literatura mundial, há um contingente ainda mais restrito de obras que, além de atemporais, fundaram gêneros. Não configuram apenas registros exatos da experiência humana neste mundo, mas também marcos históricos a partir dos quais a arte literária — ou mesmo a arte em geral — nunca mais foi a mesma.

Uma dessas obras surgiu graças a uma curiosa combinação de acasos, como se fosse um capricho do destino. Pouco mais de dois séculos atrás, durante o verão do hemisfério norte, cinco pessoas se reuniram em uma mansão próxima ao lago Léman, na Suíça. Naquela época, duas delas eram ilustres: os poetas Lord Byron e Percy Bysshe Shelley. O primeiro foi descrito por Goethe como o maior gênio do século XIX e se tornou o protótipo de poeta romântico. Shelley, por sua vez, havia se destacado nos círculos intelectuais europeus como um autor engajado e de grande talento. Junto com eles estavam John Polidori, conhecido como médico de Byron (mas que também fornecia fármacos de outras naturezas a ele), a jovem Claire Clairmont, filha de um proeminente casal de intelectuais ingleses, e sua irmã de criação, Mary Wollstonecraft Godwin, então companheira de Percy Shelley.

A expectativa era de uma temporada estival vibrante, com passeios, caçadas e outras aventuras ao ar livre. Porém, tratava-se de 1816 — que a posteridade chamou de “o ano sem verão” na Europa, devido a graves incidentes meteorológicos. O grupo se viu obrigado a passar semanas dentro da mansão, abrigado contra o céu carrancudo, o frio indesejado e a chuva sem fim. Os astros do acaso começavam a se mover no firmamento.

Para vencer o tédio, Byron propôs que todos lessem “alguns volumes de histórias de fantasmas, traduzidos do alemão para o francês”*. O título escolhido foi a antologia Fantasmagoriana, organizada pelo francês Jean-Baptiste Benoît Eyriès e publicada em 1812, com contos de fantasmas alemães. A aventura animou o grupo por algum tempo, mas logo as opções se esgotaram. Surgiu, então, uma nova proposta: que cada um escrevesse sua própria história assustadora. Depois, todos escolheriam a mais poderosa. Os convivas colocaram mãos à obra — e o destino se aproximou mais e mais.

De acordo com Cid Vale Ferreira, Lord Byron esboçou um fragmento sobre um viajante que testemunha um assassinato na Grécia e, ao retornar ao Reino Unido, encontra o suposto defunto são e salvo cortejando sua irmã. Não há indícios dos relatos desenvolvidos por Percy e Claire; já John Polidori rascunhou a história de uma mulher amaldiçoada com um rosto esquelético por espiar o que não devia através de uma fechadura (anos depois, ele reescreveria a contribuição de Byron como aquela que seria uma das primeiras obras a tratarem de vampiros na ficção literária, intitulada The vampyre).

As informações sobre isso estão no prefácio de Cid Vale Ferreira, na tradução brasileira deSabrine Ferreira da Costa, Felipe Vale da Silva e Carlos Primati: Fantasmagoriana ou Antologia de histórias de aparições, espectros, redivivos, fantasmas etc. (Aetia Editorial, 2021).

 Quanto a Mary Wollstonecraft Godwin, ela, após uma noite insone, em que se viu atormentada por imagens terríveis, esboçou seu relato. “Uma história que pudesse falar aos misteriosos medos de nossa natureza e despertasse o arrepiante terror”, disse ela, cuja obra se destacou entre os quatro.

Dois anos depois, em 1818, a versão final da história, intitulada Frankenstein, ou o Prometeu moderno, foi publicada. E a fama de sua autora — que, ao se casar com Percy, passou a se chamar Mary Shelley — viria a superar a de seus ilustres companheiros de então. Não à toa: até hoje reverberam os trovões da “noite pavorosa de novembro”, quando Prometeu — ou melhor, Victor Frankenstein — conclui seu trabalho e, por meio de uma combinação entre matemática e alquimia, insufla a vida na remendada figura que tem diante de si (na versão revisada de 1831, Mary Shelley alterou esse método para a eletricidade).

Antes da criatura, porém, contemplemos sua criadora. Pode-se dizer que Mary Wollstonecraft Shelley veio ao mundo condenada à literatura. Quando nasceu em Londres, em 1797, seus pais já eram renomadas figuras intelectuais da Inglaterra de então: os escritores William Godwin e Mary Wollstonecraft. Godwin incendiou o debate público com manifestações que poderiam ser consideradas protoanarquistas; encontramos essas ideias no subtexto do seu romance gótico As Aventuras de Caleb Williams ou As coisas como são (1794) — que sugere o horror não pelos fantasmas ancestrais de castelos medievais, mas pela opressão perpetrada pela nobreza de seu próprio tempo. Wollstonecraft, por sua vez, foi uma pioneira do movimento feminista. Suas contribuições à discussão da situação das mulheres se deram em frentes diferentes, de tratados como Reivindicação dos direitos da mulher, de 1792, à ficção literária, em que ela abordou os prejuízos causados pela idealização do papel feminino na sociedade. Por fim, ela própria viveu inúmeros episódios que desafiavam os preconceitos e o moralismo da época.

Embora tenha sido influenciada pela obra da mãe, Mary não chegou a conviver com ela, que faleceu 11 dias após o seu nascimento. Quatro anos depois, o pai se casou com uma vizinha, com a qual a futura autora jamais se entendeu. Fosse como fosse, a literatura estava em seu caminho. Por volta de 1814, Mary conheceu Percy Shelley, então um admirador de seu pai, e os dois iniciaram um romance. William Godwin, no entanto, vivia em meio a dívidas e era incapaz de concluir a criação dos filhos. Por isso, assim que atingiram a idade apropriada, eles começaram a ser enviados a viagens pela Europa, passando longas temporadas afastados da Inglaterra.

Ausência da figura paterna, inexistência do amor materno, horrores ambientados no tempo presente: não é difícil perceber quanto essas experiências repercutem, de uma forma ou de outra, no romance de 1818. Uma das viagens impostas pelo pai acabou levando Mary e a irmã Claire a Genebra, e à véspera da famosa noite daquele ano sem verão. É curioso notar como o próprio tédio ajudou a catalisar a história: de acordo com a escritora, “confinados por dias a fio” na mansão, nada restava aos convivas além de ler e conversar. Longos foram os debates entre Percy Shelley e Lord Byron sobre o princípio da vida e “os experimentos do Dr. Darwin” (Erasmus, avô de Charles, importante naturalista do século XIX). Mary acompanhava os colóquios como “muda ouvinte”, certamente tocada pelo fascínio do horror. Foi sob esse feitiço que, na noite seguinte, ela “sonhou” com a história que viria a mudar os rumos da literatura a partir dali.

O que explica tamanho impacto? O que o texto, que Mary Shelley terminou de escrever com apenas 19 anos, contém para continuar fazendo tanto sucesso e  seguir dizendo o que nos diz? Não se trata só da posteridade: pouco depois de lançado, Frankenstein já causava profunda impressão. Virou peça de teatro, quatro anos após a publicação, e logo rendeu algumas cópias no formato bluebook — como eram conhecidas as versões simplificadas de histórias góticas, impressas em papel barato para chegar às camadas mais pobres da população.

Já nas décadas seguintes, o impacto se generalizou, e graças principalmente ao surgimento de um novo e revolucionário meio: o cinema. O texto foi adaptado para as telonas por centenas de vezes. Em novembro (2025), estreia a aguardada versão de Guillermo del Toro para o clássico. As primeiras versões — e em definitivo aquela de 1931, dirigida por James Whale e protagonizada por Boris Karloff — ajudaram a criatura a “roubar” o sobrenome de seu criador, tornando-se ela, e não Victor, conhecida como Frankenstein. Também para os palcos o romance continuou fluindo; e dos games a séries de plataformas de streaming, nenhum novo formato resistiu ao apelo da história.

Voltemos à obra original. A força motriz do romance está no drama e em sua principal consequência, o horror. Frankenstein é uma história de um homem que falha; movido e cego pela ambição científica, Victor acaba por trazer somente ruína — para si, para as pessoas que ama e, principalmente, para o ser que criou. Assim como Prometeu (o titã que roubou o fogo de Héstia para dar aos mortais e foi punido), Victor Frankenstein padece por sua afronta não a Zeus, mas à natureza. Padece sem demora: logo após dar vida ao ser, ele foge de sua própria casa, devorado pelo arrependimento e pelo temor. Não tarda, também, para que a criatura sucumba. Ela logo toma consciência de si e do horror que sua aparência causa nas pessoas das quais tenta se aproximar. O relato que faz ao criador é comovente, e não seria exagero colocá-lo entre as mais belas passagens da literatura ocidental. Logo ficam claros os motivos que transformaram uma figura tão humana no “monstro”, no “demônio” temido e odiado por Victor.

O ainda estrondoso sucesso do romance também se deve a uma pergunta fundamental e, em tempos de emergência climática, inescapável: quão longe é longe demais? Diante de uma natureza que a ciência não cessa de desvendar (e devastar), quais são os limites da nossa vontade de superá-la? Para onde nos levará, senão à ruína, o ímpeto de dominá-la, de subjugá-la? A indagação está no coração do romance de Mary Shelley e, à atual luz da ecocrítica, encontra uma ressonância novamente trágica. O dilema entre a crença no progresso e o medo da mudança voltou a ser essencialmente contemporâneo — se é que jamais deixou de sê-lo, desde a revolução industrial.

Outra reverberação atual do romance diz respeito à figura do homem de ação que se imagina sem limites, confundindo-se com um tipo de Deus. Essa húbris está lá desde que o livro foi publicado pela primeira vez; no entanto, como herdeiro de imensa riqueza e dono de desmedida ambição, Victor Frankenstein hoje se irmanaria a personagens bem conhecidos nossos.

No caso de Frankenstein, a aposta é justamente nesse medo, que, em termos diegéticos, Mary Shelley explora com brilhantismo. Influenciada pelo romantismo e pelo gótico então vigentes, a autora leva seus personagens a cenários naturais tão belos quanto desolados, e constrói cenas que ainda hoje frequentam pesadelos. Um exemplo é o primeiro encontro de Robert Walton, o jovem idealista e aventureiro cujo relato inaugura a história, com a criatura, nos confins do Ártico: carregada de suspense e insinuações, a passagem constitui uma aula magna da literatura de horror.

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