A intensidade do instante na música de Alípio Carvalho Neto

Músico e compositor pernambucano busca a criação de uma música de maneira tão radical, expressiva e livre, que provoca forte estranhamento na plateia

Alípio Carvalho Neto foi o responsável pela primeira experiência que tive de assistir a um concerto de música contemporânea radical, no sentido enfático do termo. Uma música situada entre o free jazz e a improvisação livre, que buscava levar aquela arte até o limiar máximo possível de atingir naquele momento. Foi há uns 20 anos, na finada Livraria Cultura do Recife Antigo, em um daqueles bons concertos de fim de tarde, que tanta falta fazem. Estava lá aquele saxofonista imponente, acompanhado de um trompetista alemão e dois músicos pernambucanos bem-reputados. Foi uma experiência de algo que só entendi muito tempo depois e que me trouxe um problema estético que continua permeando meus pensamentos.

Aquela maneira de buscar criar música de maneira tão radical – pois é, de fato, uma busca – não estava acessível para todos. Entendam bem: ela é acessível para todo e qualquer público. Mas é de difícil acesso para o artista musical. Ela não é exclusiva, mas implica uma série de decisões radicais e a disponibilidade de se colocar em situações liminares que poucos parecem dispostos a encarar. A sensibilidade e o gosto pela experimentação são coisas raras no nosso mundo. E isso ficara claro naquela música que eu acabara de experimentar. No caso particular de Alípio, tal abordagem musical passa por um engajamento subjetivo na intensidade. É no excesso que a verdade da sua música é revelada. Tendo experimentado, desde então, cotidianamente essa música livre – seja tocando ou como ouvinte – ainda hoje me impressiona a intensidade do saxofonista. É uma maneira muito própria de insistir na presença máxima do presente, no tempo vivido daquele momento singular, no qual não se deve fazer nada além da música que pede para ser feita.

A intensidade expressiva de Alípio só tem equivalência nos grandes nomes dessa tradição, como Evan Parker, Joe Morris, Joëlle Léandre, Camila Nebbia, Louis Sclavis, Mario Schiano, Paal Nilssen-Love, Peter Brötzmann. Ou ainda Ivo Perelman, também saxofonista, principal expoente brasileiro no gênero. Embora não possua um reconhecimento equivalente ao desses músicos – algo que se deve a escolhas e acasos numa carreira que não nos cabe aqui destrinchar, embora, é importante notar, que ela se encontre em pleno vapor criativo – a intensidade expressiva da sua música o aproxima desses e de outros nomes, que o coloca num panteão dos grandes músicos dessa tradição. Pois era essa intensidade expressiva – que determina profundamente o conteúdo da música de Alípio – que não era compreendida por aqueles outros músicos na Cultura. Havia um écart que só poderia ser suprimido caso um engajamento estético de natureza semelhante fosse desencadeado pelos músicos. Essa intensidade excessiva faz toda a diferença, principalmente pela sua ausência no mundo atual. Não estamos acostumados a escutar isso – e tampouco os músicos a tocar nisso.

Diferente de outros músicos que abordam sua construção musical a partir do material musical (por exemplo: Hermeto Pascoal parte da harmonia; Steve Coleman do ritmo; Steve Lacy da melodia), Alípio – ao menos é assim que sinto – parte da energia. O fundamental é a energia que a música transmite. Não é que o material musical propriamente dito não importe. Composições como “Caatinga”, “Sertão”, “Heha”, “Hutukara” propõem formas e sugerem um determinado tipo de abordagem improvisativa bastante peculiar. Cada uma é o ponto de partida de um universo sonoro particular, com suas próprias escalas, modos, harmonia e ritmos. Mas não é aí que a música tem seu ponto de partida. Ela parte daquilo que está para além do papel e do material musical. Tomemos o saxofonista Steve Coleman como exemplo antitético. Coleman também é um músico de imensa intensidade e profundidade expressiva, mas ele traça o percurso exatamente oposto ao proposto por Alípio. No americano, a intensidade vem depois.

Parte das composições de Alípio se inspira formalmente no partimento italiano. Isto é, como uma linha de baixo relacionada a uma (ou mais) melodia(s), que podem ter funções invertidas, que podem ou não ser tocadas. Não são raras as vezes em que se toca um tema sem de fato tocá-lo, deixando-o suspenso como pressuposto. Outras possuem um esquema harmônico que pode ser desdobrado e multiplicado (ou dividido) em tempo real. Ao invés de encadeamentos harmônicos preconcebidos, temos esquemas harmônicos atonais ou de tonalidade estendida, que funcionam como blocos sonoros que emergem como pontos de orientação para alguns caminhos e escolhas possíveis para a improvisação. É contra eles que o músico toca. Ao contrário do que se imagina vulgarmente – ou mesmo por parte considerável da produção teórica em torno da improvisação – improvisa-se sempre contra algo. Trata-se menos de fluxo sonoro do que de se contrapor, de intervir no fluxo. É a intervenção subjetiva no movimento objetivo da música que dá movimento efetivo à improvisação. Isto é: a improvisação é pura dialética.

Alípio, na música e para além dela, possui um refinado espírito de contradição. Os opostos, como a razão e a espontaneidade, estão sempre atuando de maneira que a música emerja do interior da tensão entre os polos. Não é apenas apostar no acaso, se deixar impregnar pelo instante e ser conduzido por ele: é também se contrapor ao instante. Cada improvisação pode, de fato, ser a última – e isso é vivido com máxima intensidade. Uma intensidade que, ao mesmo tempo, deseja e nega aquele momento que não gostaria de ser o último, mas que deve necessariamente ser vivido como tal. Seja qual for a duração em minutos (medida abstrata, embora material, do tempo) daquele momento, ele se concretiza numa forma de tempo que não tem medida – que é pura intensidade, que comprime ou alarga o espaço temporal de acordo com aquilo que está acontecendo. Onde cinco minutos podem ser sentidos como um único segundo, como imaginava John Coltrane, ou cinco minutos podem, pela sua densidade, se alargar e parecer até mesmo mais tempo. Intensidade para ambos os lados: compressão ou dilatação máxima. Tudo isso só é possível pelo fato de o saxofonista possuir um espírito ao mesmo tempo moderno e rústico. E isso é perceptível na sua música – seja em referência a Roma ou aos kamayurás.

Sua produção mais recente tem sido orientada pelo conceito apùap, que os kamayurás utilizam quando falam da “escuta do mundo”, e pela reelaboração que o filósofo italiano Carlo Michelstaedter fez dos conceitos de persuasão e retórica. É através da imbricação entre apùap, retórica e persuasão que Alípio tem se orientado e tentado encontrar uma nova maneira de refinar o conteúdo da sua música improvisada e o modo com que ela se insere e ressoa no mundo. Há algo da dimensão do vivido muito difícil de expressar na música de Alípio. Ela implica se pôr diante dela com disposição e ouvidos abertos para a intensidade dessa música. Algo que o registro sonoro e filmográfico transmite com alguma intuição, mas que apenas a música ao vivo – a busca pela liberdade total no instante presente – pode efetivamente fazer sentir

 

Frederico Lyra de Carvalho é professor. Possui doutorado em Filosofia pela Universidade de Lille, além de mestrado na mesma disciplina pela Universidade Paris 8 e mestrado em musicologia pela Universidade Paris-Sorbonne. Atualmente, é pós-doutorando pela Universidade de São Paulo, coordena um seminário sobre Teoria Crítica Brasileira no Colégio International de Filosofia (CIPH) e membro afiliado no Instituto Alameda