Beirute, maktub

Os dias de guerra vividos no Líbano na década de 1980 dão início à série de 18 cidades onde viveu o diplomata brasileiro

Convoco meu carrinho vermelho, uma Renault 5, para uma introdução amena a Beirute. Chegou sem rodas. Maus augúrios. Depois, na frente de casa, novamente sem rodas. Meu vizinho me tranquilizou: “coisa de ladrõezinhos do bairro”. O carro ser visitado por ladrões, tanto mais vizinhos, talvez até simpáticos, era menos preocupante do que ser atingido por bomba.

Deixemos essa bomba de lado. Ela ainda volta ao carro e ao texto. E passemos a outra, uma que explodiu nas proximidades do hotel na noite da nossa chegada, minha e de minha mulher Bia Wouk, em setembro de 1980, e nos despertou às três da manhã.

Era a internalização da guerra Irã-Iraque, prenúncio de turbulências que tinham a ver também com outros conflitos regionais e a guerra civil. Esta era uma cebola difícil de descascar com suas camadas confessional, ideológica, social e estratégica. Eufemismo chamá-la, como os locais, de os acontecimentos.

Alertas evidenciavam a precariedade do cessar-fogo iniciado em 1976: passagens controladas por dezenas de organizações armadas, franco atiradores, aviões israelenses rompendo a barreira do som e baterias antiaéreas tentando atingi-los.

De Baabda, com vista sobre a cidade e o mar azul, assisti, como de um camarote em teatro de guerra, a bombardeio israelense sobre área a oeste, onde se situavam os campos palestinos, inclusive a sede da OLP.

De abril a agosto de 1981, as batalhas se intensificaram com o emprego de armamentos pesados. Num dia admirava-se o templo de Baco em Balbec e noutro enfurnava-se nos porões para proteger-se. No carro oficial, fui parado numa barreira por um adolescente exibindo uma kalashnikov. “Encarregado de Negócios do Brasil”, disse o motorista. “Você, eu sei”, ele respondeu. “Mas... e esse barbudo aí atrás?” Achei prudente aparar a barba à Arafat.

Imitei o fatalismo dos libaneses, pois morar não é o mesmo que fazer turismo ou cobertura de imprensa. Era possível comer ao lado de um hotel destruído, com piscina ainda visível. Ir a um clube à beira-mar e, ao ouvir um bombardeio, refugiar-se no seu estacionamento subterrâneo onde gente enrolada em toalhas respirava gás dos carros que se arriscavam a sair.

Frequentar a Librairie Antoine, na Hamra, passando por quatro barreiras, inclusive as dos “nasseristas trotskistas”, e ter de pernoitar em casa de amigos. Ser recepcionado por tanques à entrada de um carnaval “brasileiro” num bunker de um bairro muçulmano. Aceitar convite para jantar e na volta esperar o fim de uma batalha entre partidos cristãos, o Partido Liberal e as Falanges, que levaria à sua fusão na Frente Libanesa.

Discuti no livro A idade do presente (1985) situações em que as funções do Estado são transferidas às milícias em luta. Incluí bombardeios nas andanças da profetisa Íris Quelemém ao dar continuidade a meu romance Ideias para onde passar o fim do mundo (1987). E recebi a notícia da publicação de meu livro Os democratas autoritários (1980). Eu solicitara a opinião sobre o manuscrito a um amigo. Recebi carta do editor Caio Graco Prado, da Brasiliense, com a proposta de sua publicação “urgente”. Pedi-lhe tempo, mas eis que em Beirute alguém me mostra uma resenha da Veja sobre o livro já publicado.

Convoco de novo meu carrinho vermelho, agora para atenuar uma quase tragédia, pois o pior não foi que fragmentos de bomba o tenham atingido. Foi que um desses fragmentos tenha atravessado uma janela para se alojar na altura do coração de um empregado. Ele opinou que não chegaríamos ao hospital enquanto chovessem obuses e sugeriu aguardar 15 minutos. Em cinco, carro blindado de uma facção o levou ao hospital. Maktub. Sua costela o salvara.