A voz das Náiades e Sibilas

Escritora argentina Camila Sosa Villada faz de sua obra uma análise da própria existência e uma ação transgênero de resistência

Camila Sosa Villada é uma potência da nova literatura argentina. Escritora, poeta, atriz, dramaturga, travesti, transexual, ela é o magma incandescente que surge na noite do século XXI e desconcerta as definições de Apolíneo e de Dionisíaco. Como tradução de si mesma — Hécate na fronteira de nossas acomodações — ela é a múltipla identidade da anima grega diante do espelho. O resultado é uma narrativa e uma poesia de faca na brasa, ariscas à regência comum, um desafio a qualquer entendimento ocidental-cristão-normativo do pós Grécia dos deuses. Sua literatura, como uma Ninfa Salmacis, desperta editores pelo mundo e inquieta leitores em estonteante admiração.

Villada é autora dos mais inquietantes livros publicados na Argentina e no Brasil nos últimos cinco anos. A coisa começa com o avassalador O parque das irmãs magníficas (Tusquets/Planeta, 2019/2021), uma narrativa crua e autorreferencial em que conta sua iniciação no mundo trans/travesti na cidade de Córdoba,  interior da Argentina. Tendo como centro gravitacional o Parque Sarmiento, que dá título à tradução brasileira — o título original é Las Malas —, sua história se desenvolve em torno da personagem da Tia Encarna, a Grande Mãe travesti que acolhe todos.

Camila Sosa Villada nasceu em La Falda, em 1982, e formou-se em Comunicação Social e Teatro na Universidade Nacional de Córdoba. Desde sua estreia escrevendo e atuando no teatro, em 2009, e depois no cinema e na televisão, mergulhou na literatura como num vulcão que acorda. Em 2020, O parque das irmãs magníficas recebeu o prêmio Soror Juana Inês de la Cruz, da Feria Internacional del Libro de Guadalajara, México. A nossa sociedade é estranha a essas forças naturais, e um sinal claro do nosso preconceito com o talento visceral de um espírito incomum é precisarmos anunciar previamente em ensaios, artigos, prefácios e introduções que uma transgressora das normas seguiu as normas, ou seja, é formada nisso e naquilo, foi traduzida em tal e tal país e ganhou tal prêmio. Pois Camila Sosa Villada é a formação que todos os cursos, títulos e universidades precisariam ter para dizer que a luz da autora passou pelas suas portas. Os títulos estão invertidos: Camila é o conhecimento que a universidade precisa adquirir.

Camila é o pseudônimo do fogo no espelho. Camila é o nome verdadeiro do que está diante e atrás do reflexo, e não o que foi engolido por sua definição: o nome de batismo se apaga entre um e outro. Ela é a imagem, em forma de corpo e nome que, embora do outro lado, é a verdadeira identidade do currículo. Sob essa mirada, todos que escrevemos, pintamos, atuamos ou simplesmente desempenhamos um papel social — engenheiros, médicos, advogados, garçons, militares, religiosos — todos somos travestis de uma ou outra personagem, todos vestimos a fantasia, o figurino ou máscara grega, teatral, de uma ou mais personas de que nos afeiçoamos ou de quem dependemos para sobreviver: somos as personagens sociais que Tia Encarna, de Camila Sosa Villada, acolhe e protege da realidade, do mundo lá fora. Com gravatas, jalecos, togas, fardas, calças ou vestidos abaixo dos joelhos, todos nos travestimos de algo que em outro momento e lugar seremos despidos. A verdade é desnudante.

A travesti como profissional da rua assume o risco supremo de revelar ao mundo esse trânsito, sua guerra em andamento, sua transmutação, que em geral é a identidade de uma mulher construída — “montada” — como uma elaboração mimética de um ser imaginário, ideal e agônico, escandalosa ou discreta, amorosa ou histérica (Histeria significa “loucura do útero”, do grego ustera, útero), para mostrar ao mundo a sua sobrevivência que é mergulho, evasão e encontro. Nos livros de Camila Sosa Villada esse processo é catártico e ancestral, memorial e inquisidor, pois a sociedade também é o núcleo familiar onde o menino ou a menina não conseguem esconder sua transexualidade latente, que a autora reconta desde a infância real até os dilemas dramatizados em famílias reais e ficcionais, com  seus descobrimentos, conflitos, guerras e dramas no coração dessas existências inconformadas e disruptivas. Há muito tempo as religiões e as normas sociais foram criadas para conter, balizar ou condenar essas existências. É preciso saber ver a resistência.

Os livros de Camila — temos em mãos O parque das irmãs magníficas, Sou uma tola por te querer, A namorada de Sandro, Tese sobre uma domesticação e o imprescin­dível A viagem inútil — são testamentos e testemunhos, manifesto e recriação de uma existência em que teatro, cinema, conto, romance e poesia poderiam ser obra de mais de um criador, de personas sexuais (e afetivas) distintas, ou de um grupo de heterônimos personificados numa única força: um mesmo arrebatamento de Entusiasmo (do grego com alma, em Deus). Quem a lê, livrando-se pouco a pouco de todas as amarras (pré)conceituais que a sociedade e a religião nos impõem como instrução de comportamento normativo, adentra um universo em que a praça e o palco — habitados por transexuais, travestis, amantes, clientes, policiais e famílias tradicionais — são o rompimento de paradigmas morais, reconhecidamente frágeis e artificiais. A cada linha, parágrafo e página, ocorre a desconstrução dessas barreiras, dos nossos preconceitos e da nossa barbárie.

Os contos, poemas e personagens da obra de Camila Sosa Villada são frestas por onde ajustamos o olhar e avistamos a Medusa, que apresenta o espelho para os nossos medos, porque ainda não sabemos enfrentar o que é apenas um lado do humano, nosso personagem ancestral: “Chegou um dia em que não pudemos mais mentir/ e minha cara feia não foi disfarçada com maquiagem”. Alguns de seus poemas são o pêndulo entre a espada e o escudo, a lâmina e a lírica gregas: “É necessário agradecer ao homem que teve a ideia/de instalar um banco diante do mar.” (Helsinque, in A namorada de Sandro, Tusquets, 2024).

Um de seus livros avassaladores ao expor sua verdade desnudante é Tese sobre uma domesticação (Companhia das Letras, 2023), em que uma atriz trans e seu marido, um advogado gay, adotam um menino de seis anos, portador de HIV, que não conheceu o pai biológico e cuja mãe se suicidou. A despeito da premissa trágica, o livro é uma aula de humanidade, uma “sociologia da família”: “Todo mundo tinha alguma coisa a dizer sobre mim. Todo mundo parecia saber de alguma coisa que havia me escapado ao tomar minha decisão. (…) Não seria nem o primeiro nem o último relacionamento que prolongaria seu fim devido à chegada de um filho… Fiquei surpresa em ver quantos pensavam que este é um mundo onde as crianças nascem por amor’”. Pouco a pouco, o espelho se aproxima: “Por que famílias que já estão destruídas tentam se consertar com churrascos nos fins de semana?” De qualquer maneira, um traço de humor feminino ainda resiste e é possível ter esperança: “Eu não imaginava que me livrar de um homem era melhor do que ter um homem dentro de mim — disse ela numa festinha que organizou com suas amigas para comemorar o divórcio”

O que muitas vezes pode ser uma maneira incômoda de ler as coisas — a verdade é sempre um risco e pode ser fatal —, ainda será insuportável para um leitor refratário ao sofrimento do outro. A palavra escrita, em Camila Sosa Villada, é o seu apotropáion, seu amuleto, um escudo a protegê-la de toda aproximação indesejada. Camila é o nome que essa escritora vestiu como arma de guerra para sua existência como resistência. Seus livros são, cada um a seu modo, articulações de um mesmo corpo em movimento, modos de defesa e ataque contra o poderoso silêncio social que se impõe nas ruas e nos salões — quando não, a violência ou a indiferença —, nos becos e praças escuras para sufocar um tipo de existência: a dos travestis e transexuais que resistem como bandeiras nas calçadas, como sinalizadores de nossos medos e de nossa hipocrisia. É o mesmo apotropáion que Camille Paglia, em seu definitivo Personas sexuais (1990) observou em Virginia Woolf de Ao farol, uma observação que, coincidentemente, alcança tanto Woolf como Villada. Em ambas há o peso psíquico de suas figuras materna e paterna. Assim como para Camila falar sobre isso é uma catarse, Virginia afirmou sobre os pais: “… escrever sobre eles foi um ato necessário”.

Aliás, os temas da transexualidade e do travestismo também são reconhecidos por Paglia desde a antiguidade arcaica, passando pelos xamãs até a literatura moderna. Creio que esse percurso envolve, na literatura do século XXI, a obra de Sosa Villada como representante visceral. Sua escrita é um poderoso elo da corrente. O que se depreende de sua práxis é que o travestismo — e por extensão toda ação drag — é um ato dionisíaco: a transgressão da norma pela reordenação da forma. Ou uma desconstrução do normativo pela refundação da identidade em sua revalidação, em seu princípio uterino, anterior às definições. O travestismo como uma revisão do começo, como uma correção debochada e dionisíaca das definições.

Mas Camila Sosa Villada articula o dioni­síaco das transgressões normativas com um exer­cício apolíneo da escrita. Como autora que relata e reinventa, ela reconstrói no palco literário sua gênese e sua conquista. Ela é Dionísio (a travesti) permitindo-se ao escrutínio ordenador de Apolo (a escritora). Sua festa é dionisíaca, mas o relato da festa é apolíneo. Como no teatro, que ela conhece como autora e atriz, o tema e o enredo são dionisíacos, mas a escrita e a direção são apolíneas. Como constructo do êxtase em lógica formal, seus livros são análises do eu e do lado profundo dos medos humanos. Também por isso, em inúmeros momentos de sua literatura e de sua poética há uma defesa visceral da mulher, principalmente na figura/personagem da mãe oprimida, aquela que sofre a violência psíquica do marido e das limitações da pobreza. E mesmo nesse cenário ainda há poesia: na infância, é o pai quem lhe ensina o conhecimento das letras e das palavras, mas é a mãe quem um dia descobre encantada que o filho/filha transforma as palavras em leitura.

Dificilmente uma autora mulher, mesmo as feministas mais ferrenhas, elabora uma defesa tão sofisticada da condição feminina em literatura. Camila faz de sua obra, além de análise da própria existência, uma ação feminina de sua resistência. Seus labirintos e sua denúncia, em personagens e evocações sexuais transgressoras, são exibidos como defesa da condição feminina, ou como acusação dos preconceitos dentro do preconceito, da segregação na segregação. Sua obra é sua denúncia: J’accuse. Seus relatos, em conto ou romance, estão sempre na margem da autobiografia — talvez por isso ela não tenha resistido e finalmente escrito A viagem inútil (Fósforo, 2024) — como análise semiótica de sua literatura viva. Sua obra é uma tra­dução da ficção sob a lupa da biografia ou vice-versa. Quando essa operação se completa, estamos diante da revelação do lado escuro da verdade, do clareamento de corredores que vêm desde a Grécia, passam pelas portas de Sade, Freud, Genet, Wilde, Sartre, Beauvoir e chegam a Almodóvar. Uma estética e uma poética do mais forte Almodóvar. Dessa percepção parte uma literatura irmã das transgressões de Sade recuando outra vez até os mitos gregos de máscaras e transgressões sexuais. Ou seja: uma grande avenida de mão dupla.

Ler um livro de Camila Sosa Villada é assimilar, página a página, a resistência de uma humani­dade indômita, é entender as alteridades selvagens desde as cavernas, desde as primeiras civilizações dos sumérios, egípcios, babilônicos, desde o teatro grego ou elisabetano em que homens desempenhavam papéis femininos e se vestiam e viviam como mulheres. A literatura de Camila Sosa Villada é uma aula de História, de Antropologia, de Sociologia, de Sexologia, de Tempo. É uma aula que não termina porque sua voz não silencia na última página.

CONTEÚDO NA ÍNTEGRA NA EDIÇÃO IMPRESSA

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