Resenha Eliana Alves

 

No dia 19 de março, a Folha de S.Paulo publicou uma reportagem afirmando que os “quartos de serviço” nos imóveis de luxo resistem, mas têm “os dias contados”. O subtítulo do texto complementa a chamada: “mudanças trabalhistas, culturais e de aproveitamento do espaço fazem com que o cômodo seja coringa em unidades de alto padrão”. No entanto, esse “quarto de serviço”, ou o “quarto da empregada”, infelizmente, faz parte da história cultural de um país onde muitos ainda vivem em situações análogas à escravidão.

O texto ainda aponta a relação que o cômodo possui com a história colonial do Brasil, pois o espaço servia como forma de segregar os/as trabalhadores/as dos patrões. Em outros termos: a separação entre a casa-grande e a senzala ainda hoje é realidade em muitas moradias. O que a matéria não traz, contudo, é a perspectiva das pessoas que trabalham nos apartamentos de luxo. Uma vez que a História ou mesmo parte da mídia escondem as narrativas dessas pessoas, a Arte se incumbe dessa função.

É justamente nesse ponto de mudança de perspectiva que o novo livro de Eliana Alves Cruz, Solitária, lançado pela Companhia das Letras, é narrado. Dividido em três partes, Mabel, Eunice e Solitárias, percorremos a vida de personagens que quase sempre foram e são retratadas como secundárias, mas que nesta obra se tornam o centro da narrativa.

O romance inicia com uma tragédia no edifício Golden Plate, onde Eunice trabalhou quase a vida toda e no qual Mabel cresceu. Nessa primeira parte do livro, Mabel narra a sua relação com a mãe, Eunice, trabalhadora doméstica, um elo que ao longo do tempo torna-se frágil e relegado aos fundos (ou, à solitária) do apartamento de luxo de dona Lúcia e seu Tiago, espaço no qual os patrões não chegam. É do quartinho da empregada, sim, no diminutivo, como a narradora faz questão de ressaltar (“Reparei mais uma vez que, para quem não era patrão, tudo era ‘inho’: quartinho, apartamentinho, banheirinho…”), que acompanhamos Mabel crescendo na casa dos patrões dividindo tarefas com a mãe, compartilhando o quartinho, amadurecendo naquele mundo que não é seu, e ela sabe disso, conforme nos conta ao longo do livro. Além disso, passa da infância e adolescência para a vida adulta em um espaço que condiciona a sua liberdade, “na gaiola dourada do edifício Golden Plate. Éramos pássaros dentro de um viveiro luxuoso, mas uma jaula deixa de ser a vilã da liberdade só porque é pintada de dourado?”.

É pelo olhar da filha da trabalhadora que enveredamos pelos cômodos da casa dos patrões. Essa perspectiva nos dá justamente pistas a respeito de Eunice: uma mulher que acumula funções, não tem quase nenhum direito trabalhista, e cuja voz ouvimos poucas vezes ao longo dessa primeira parte do texto.

No entanto, na segunda seção, a perspectiva mais uma vez se altera, agora quem narra é Eunice. A narradora, diferentemente da filha, deixa transparecer sua ingenuidade e inocência no modo como encara a realidade à sua volta. E talvez esteja nisso a revolta de Mabel para com a sua mãe. Eunice não enxerga o que a filha vê. Ao seu tempo, a trabalhadora doméstica começa a mudar de atitude e quando recebe a notícia de que sua mãe está morrendo, por exemplo, afronta a patroa e não se cala. Ela rompe o silêncio. Eunice tem consciência da invisibilidade que precisa performar na casa dos patrões e sofre porque a filha, mesmo criança, precisa ser igual a ela: “Hoje fico com pena do sacrifício que era se tornar invisível. Além dos espaços apertados que ocupávamos, o silêncio era um companheiro. Era preciso estar presente sem estar. Uma boa serviçal é silenciosa, e a criança que é a filha dessa mulher também deve ser. Ela não pode rir como uma criança, não pode pular ou fazer travessuras como uma criança. Ela não é uma criança. É um incômodo, alguém apenas tolerado…”. Os silêncios de Eunice são gritos abafados pelas dores que às vezes ela não tem consciência de as ter.

Na última parte, outros narradores atravessam os cômodos; agora, são os espaços solitários que nos apresentam suas versões sobre a trama das personagens. Espaços esses que servem de títulos para os capítulos. São eles as testemunhas da exploração, do abandono, da solidão, dos maus-tratos, dos sorrisos e lágrimas escondidos nos diminutivos das vidas desses/as trabalhadores/as, ou melhor, das Eunices, das Dadás, das Irenes, dos Jurandirs…

O que nos fica, de modo geral, sobre o romance, é o olhar profundo e sensível da escritora que transforma realidades duras em quase-poesia. A carioca Eliana Alves Cruz é jornalista e escritora dos romances Água de barrela (2015), O crime do cais do Valongo (2018) e Nada digo de ti, que em ti não veja (2020) e tem se destacado na literatura brasileira contemporânea pela capacidade de trazer da realidade, ou da História, o impulso para suas obras. Segundo post em seu Twitter, Solitária é fruto de pesquisa feita com diversas notícias ao longo dos últimos anos que envolviam empregadas domésticas trabalhando em condomínios de luxo em situações precárias.

A partir disso, reconhecemos em seu romance histórias que vimos retratadas recentemente nos jornais e que continuam a aparecer nos noticiários. É um olhar que ficcionaliza realidades silenciadas ou quase nunca retratadas ao longo da História do Brasil. Um olhar que atravessa as solitárias e traz de lá memórias de vidas. Um olhar que consegue capturar a história recente de um país desigual atravessado por uma pandemia, dividido na política e com um abismo de classes cada vez maior.

Através de uma linguagem extremamente poética, percebemos que a mudança necessária não está na remodelação dos “quartos de empregada”, mas sim na estrutura social brasileira que foi construída a partir de modelos coloniais que ainda hoje estão presentes na vida de diversas pessoas.