Cerca de 200 textos de escritoras negras brasileiras compõem o livro Carolinas (Bazar do Tempo), fruto do processo de formação de escrita organizado pela Festa Literária das Periferias (Flup) em 2020, dedicado à obra de Carolina Maria de Jesus (1914-1977; foto). No ano passado, Quarto de despejo completou seis décadas de lançamento. Carolinas foi organizado por Julio Ludemir.
As escritoras foram orientadas, na formação, por Alexandre Faria, Ana Paula Lisboa, Cristiane Costa, Eduardo Coelho, Eliana Alves Cruz, Fred Coelho, Itamar Vieira Jr. e Milena Britto. No livro, os textos são divididos em oito partes, cada uma organizada por um orientador. Transitam entre conto, crônica, diário e relato autobiográfico.
Uma parte da formação era destinada a catadoras ligadas às cooperativas de reciclagem do ABC paulista. As oficinas partiram dos relatos de suas trajetórias pessoais para mapear os desejos, enredos e técnicas de narrativas. Um desses textos, de Nair Camilo Faria, você lê logo adiante.
O segundo texto que você lê aqui, escrito por Meimei Bastos, é de outra parte do processo e consiste uma ficção que remete o leitor à estrutura de diário de Quarto de despejo.
Saiba mais sobre Carolinas: A nova geração de escritoras negras brasileiras clicando aqui.
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INVISÍVEL AQUI DENTRO DA MINHA CASA
Nair Camilo Faria
Eu sou casada e tenho cinco filhos mas quero dizer que mesmo assim me sinto invisível e desprezada. Eu saio para trabalhar e ninguém vê, e quando chego do trabalho ninguém me vê também nem para perguntar como foi o meu dia. São cinco filhos e o meu marido aqui dentro de casa. Nem um bom dia dá pra mim. Eu saio para o trabalho e falo: “Quando eu chegar quero encontrar a casa do jeito que deixei. Sujou lavou, sujou limpou.” Falo isso todos os dias mas não adianta nada. Quando chego, pia cheia de louça, casa suja. Eu falo: “George, você limpa o fogão e lava louças, Isaías, você passa pano na casa e troca as lixeiras.” Perda de tempo porque sou invisível, ninguém me vê. Meu esposo só enxerga a televisão e o videogame. Por isso que eu digo que me sinto invisível aqui dentro da minha casa.
CRISÂNTEMO
Meimei Bastos
Não sei dizer de todas as cidades, mas essa aqui é feita de concreto, lixo e pessoas. O concreto tem o cheiro do lixo, o lixo o cheiro das pessoas e as pessoas têm o cheiro do que fazem.
“Quando a gente tem pão, a gente come. Quando não tem, a gente chora’’.
Carolina Maria de Jesus
Ela me presenteou com as melhores horas da minha vida. As últimas. Antes dela eu passava os dias perambulando em busca de comida e água. Andava por todas as ruas e pelo comércio revirando lixeiras. Não encontrava nem sobras ou restos. Minha existência seria facilmente representada por um saco vazio a rodopiar num redemoinho de vento.
DIA 1
Tropeço no capitão. Um homem de cabelo alinhado, barba feita, roupa engomada, postura ereta. Já o vi gabar-se mais de uma vez, reconhecendo-se como um cidadão exemplar, pessoa de fé e bem, defensor da vida, marido fiel, bom pai e pagador. Sempre que alguém se aproxima o vejo ajeitar a postura. Hoje não tinha ninguém à vista. Quando passei próximo a ele fui enxotado com uma pedrada. Não tive forças pra correr. Ele fede mais que o esgoto embaixo do Sol de meio-dia. Queria que meu corpo se rendesse à frustração de não encontrar nada para comer, para, de repente, dormir e esquecer da ausência de alimento no estômago. O ruim é que quanto menos quero me preocupar com a fome, mais ela me maltrata.
DIA 2
Quem passa por mim não percebe, mas estou chorando. Não sei se é esperança, urgência ou o instinto de sobrevivência, mas não consigo desistir. Mudo de estratégia, passo a buscar comida em lugares a que nunca fui. Sinto o cheiro de tudo. Bueiros, canos de esgoto, fossas. Não há coisa alguma aqui, vou para o outro lado da cidade.
DIA 3
No meio do caminho cruzei com uma senhora que carregava papelões nas costas. Um caminhar elegante e preciso, como o dos que sabem para onde o destino os levará. As roupas estavam desgastadas, porém limpas. Tinha os cabelos ajeitados em um coque alto, coberto por um lenço florido; as unhas aparadas não carregavam sujeira. Apesar da aparente condição difícil, carregava nos olhos uma luz que se assemelhava às estrelas. Notei o brilho quando ela pousou os olhos em mim. Foi a primeira vez que os olhos de alguém estavam postos em mim sem a comum expressão de asco. Meus olhos caminham baixos, direcionados ao chão, mas estão sempre atentos. Se não fosse assim, não estaria vivo. Ela tem o mesmo cheiro das florezinhas que caem da Dama-da-Noite.
DIA 4
O outro lado da cidade é diferente, mas nem tanto, ainda há pessoas, concreto e lixo. Aqui, as ruas são ocupadas logo cedo. O cheiro de café e de pão impregnam as ruas principais e me fazem despertar. A mim e à fome. Meus pares são muitos e antes do amanhecer é possível perceber uma certa movimentação na rua. A verdade é que a rua nunca dorme, nem mesmo à noite. É na penumbra que alguns exibem quem são. Essa noite reencontrei o capitão. Estava sentado em uma mesa de bar, com a camisa desabotoada, com um cigarro na boca, um copo cheio na mesa e uma mulher sentada em seu colo. Quase não o reconheci. “Segurem suas cabras que meu bode está solto!” – ele bradava. Se tivesse permanecido calado, jamais o reconheceria. Tive que me aproximar para ter certeza de que era o mesmo homem que ouvi vangloriar-se de sua postura distinta. Ele nem deu fé de que eu estava me aproximando. Embriagado e tagarela. Era ele. O capitão. O cheiro não me deixou dúvidas. O fedor ácido de vômito e de fossa era inconfundível.
DIA 5
Acordei com alguns afagos e com o cheiro de chuva e de rosas ocupando meu olfato. Quando abri os olhos a vi, era só luz. Como se a estrela maior tivesse descido do céu para me acarinhar e aquecer. Mas não era o Sol, era ela. A senhora que dividiu comigo o olhar e um pedaço de pão. Ela estava ainda mais cintilante do que no dia em que a vi pela primeira vez, mas agora seu semblante era de preocupação. Fui atacado à noite. Ela deve ter reparado nos ferimentos em meu corpo. Eram muitos e eu apenas um. Não tive como me proteger. Agora que ela me encontrou, não sinto mais dor.
DIA 6
Preciso retribuir todo este contentamento. As horas são tão mais felizes do que eu jamais sonhei. Raimunda e eu passamos o dia catando papelão e latinhas. Depois de enchermos o carrinho e logo que pegamos a paga voltamos pra casa. Lá, ceamos e depois ficamos no quintal. Ela lê pra mim enquanto afaga minha cabeça. Eu nunca ouvi voz mais suave que a dela. Nem mão mais macia. Olho para o seu rosto e é como olhar nos olhos da própria alegria. Meus olhos inundam, tamanho é o amor que sinto. Quero presenteá-la com algo que a faça sorrir. Será um presente que me dará outro.
DIA 7
Há canteiros e jardins muito bem-cuidados e de beleza singular próximo de nossa casa. Darei a ela um ramo de Crisântemo, a flor de ouro. Avisto o capitão. Ele está no mesmo bar que o vi da última vez. Dessa vez praguejava: “Ah! Mas essa quenga me paga! Ela arruinou com minha vida. Acabou com o meu casamento. Onde já se viu? Um filho bastardo?!” Passei por ele, como das últimas vezes, mas dessa vez, ele me notou. Seus olhos cor de céu em dias de queimada lançaram rajadas de ódio em minha direção. Sigo rumo ao canteiro. Os crisântemos revelam a beleza de suas pétalas como quem se exibe. Raimunda àquela hora com certeza estava a me esperar. Podia até estar preocupada. Não quero me demorar para que ela não se angustie.
Como um trovão, num rompante, ouço um estrondo, sinto arder meu couro, o cheiro de carne queimada impregna minhas narinas, as vistas ficam turvas e escuto: “Não faça isso! Ele é só um…” “E o que eu tenho a ver com isso?! Não sou coveiro e ninguém vai dar falta de um cachorro vira-lata. Odeio essas pestes!”— disse o capitão. Raimunda corre, mas a escuridão chega primeiro.