Foi no final do século XX que críticos passaram a se interessar pelos escritos literários que foram obliterados nas publicações de Carolina Maria de Jesus (1914–1977). Há 60 anos, a autora lançava seu primeiro livro, o boom Quarto de despejo: Diário de uma favelada, obra que, junto a Casa de alvenaria: Diário de uma ex-favelada (1961), aproxima o leitor da história dessa escritora que encontrou várias dificuldades para desempenhar seu papel como artista, que nutriu o sonho de caminhar apenas no mundo das letras e cuja obra sofreu alterações, em edições passadas, para ser publicada.
Além dos livros citados, entre as obras da autora lançadas ao longo dos anos estão Pedaços de fome (1963), Provérbios (1963), Diário de Bitita (1986), Meu estranho diário (1996) e Antologia pessoal (1996). Além destas, há Onde estaes felicidade (2014), organizada por mim e pela escritora Dinha; Meu sonho é escrever: Contos inéditos e outros escritos (2018) e Clíris: Poemas recolhidos (2019), que também organizei (no caso de Clíris, em parceria com o professor Ary Pimentel). Há, ainda, um conjunto de manuscritos dispersos entre instituições que pode representar a “voz do povo que faltava”, uma voz que vai mostrar uma realidade testemunhada da favela, calcada numa língua literária que se constitui matéria-prima para sua escrita, pois revela um tipo de contranarrativa escrita, o devir-chiffonier (“devir-trapeiro”) empreendido na criação de sua poética de resíduos.
Até o momento, foram mapeadas cinco instituições brasileiras que guardam o acervo literário de Carolina de Jesus na forma de manuscritos, cadernos autografados ou microfilmes: 37 cadernos no Arquivo Público Municipal Cônego Hermógenes Casimiro de Araújo Brunswick, de Sacramento (MG), cidade natal da escritora; 14 cadernos na Biblioteca Nacional (RJ); dois cadernos no Instituto Moreira Salles (RJ); um caderno no Museu Afro Brasil (SP); e dois cadernos desaparecidos na Biblioteca Guita e José Mindlin (USP). Além disso, há manuscritos em arquivos privados, dentre eles quatro cadernos recentemente devolvidos a Vera Eunice de Jesus, filha de Carolina, após longa negociação.
Casa de alvenaria será o primeiro livro lançado pela Companhia das Letras em um projeto que publicará a obra completa de Carolina Maria de Jesus. Esse processo é organizado por um conselho editorial composto por pesquisadoras, por Vera Eunice e pela escritora Conceição Evaristo. Apresentar alguns elementos-chave do trabalho de Carolina e situar pessoas interessadas na importância de seus cadernos (a partir dos quais serão recuperados textos da escritora) pode contribuir para aproximar leitores da importância desse projeto.
UMA POÉTICA DE RESÍDUOS
No original, Quarto de despejo concentra elementos fundamentais da poética de resíduos de Carolina de Jesus. Seus textos não se apresentam apenas sob o fluxo do discurso oral, havendo diversas modificações ao longo das várias versões reescritas, o que lhes imputa um caráter ficcional e permite retornar a eles por meio de diversos investimentos de transformações, sinalizados em rasuras, confirmações, supressões, substituições. A estrutura de sua escrita está construída com os elementos de sua história, traços biográficos que se desdobram como nomadismos de textos em diversos tipos de suporte. Também retoma temáticas, cujas repetições enraízam a natureza particular do processo estrutural, instituído por uma escritura à margem da sociedade, engendrada como uma escrita na pobreza, mas não uma escritura pobre. Assim como seus diários são marcados pela repetição de uma rotina, esse sistema de escrita incide sobre suas narrativas e, mesmo nos romances, as entradas apresentam um padrão na descrição de um espaço poético, bucólico, no qual, depois, vão se dar as peripécias de suas personagens, replicando as estruturas mentais de sua memória afetiva.
Carolina de Jesus rompe com o sistema canônico e deixa sua escrita transbordar em seu próprio sistema. O trânsito entre memória e invenção sedimenta sua literatura, liga diretamente a trajetória de sua formação ao modus operandi dessa bricoleur recicladora de textos literários, de textos não literários e das oralidades brasileiras. A recolha dos temas para sua escritura impossibilita a justaposição ou mesmo uma associação direta e clara, não a vincula ao que pode ser chamado “alta literatura”. A “voz do povo que faltava” é expressa no desejo da escritora por liberdade de escrita: ela mobiliza e se apropria de temas e linguagens ao seu modo, gesto que pode soar ameaçador por dessacralizar o lugar da literatura associado às expressões consideradas legítimas e superiores. Esse gesto incomoda mais pela persona que segura a pena do que pelo ato em si — de escrever — que poderia ser considerado genial ou excêntrico se advindo de uma escritora que dominasse o verbo cultivado segundo os padrões do centro do polissistema.
Carolina de Jesus quer escrever aquilo que não cessa, que não estanca e que ela repete: a imprevisibilidade de seus dias, uma “história menor” incerta ou uma outra história, aquela de um passado afro-brasileiro esquecido, as instabilidades de vidas marginalizadas, mas que, em seu devir-chiffonier, funcionam como potência a partir da qual ela funda uma estética da ordinariedade, de sua marginalidade a contragosto. Isso fica marcado nos usos que fez da linguagem da literatura romântica, da linguagem jornalística, do dicionário e de toda sorte de referencial que permitisse seu reconhecimento como escritora.
Carolina foi aceita somente como elemento exótico de representação da mulher brasileira de baixa renda; daí vem o fato de sua fama não ter sido capaz de fazer com que a valoração de seus textos recaísse sobre o trabalho intelectual que desempenhou. A ascensão social e a publicação dos demais gêneros literários por ela experimentados representaram uma mácula na produção de seu “testemunho” de pobreza. Seu valor foi sendo reduzido conforme sua fama ia aumentando — diferentemente, por exemplo, de Lima Barreto (1881–1922), que foi muito estudado justamente por não ter recebido fama em vida. Ao tentar viabilizar seu reconhecimento como escritora de literatura, Carolina de Jesus escapa da perpetuação do local da mulher negra que se insere na tradição literária brasileira masculina e eurodescendente desde o século XIX, uma tradição descrita em obras como O cortiço (1890), de Aluísio de Azevedo, ou pelas donzelas brancas casadouras de José de Alencar e suas mulheres negras escravizadas.
Carolina de Jesus é uma escritora que, sabendo-se plástica e performática, é capaz de um autoengendramento ou de um esforço consciente ao criar uma imagem de si para traduzir eus inquietos e desassossegados que reivindicam uma autonomia da enunciação. O eu enunciado no tempo presente pode falar do eu enunciado no passado, contribuindo para um entendimento dos processos identitários seu e dos seus, que se formam a partir da escritura. Sua própria alteridade está constituída como um patchwork, retalhos da memória unidos por fios de contingências que se formam ao longo dos dias de sua existência de incertezas e sonhos extraviados.
Processo criativo de seu devir-escritora, a poética de resíduos de Carolina de Jesus é marcada por uma temporalidade específica em seus originais de um devir-trapeira emaranhados em bifurcações, defasagens, jorramentos, cisões, junções de saberes, modulações, diferenciações, reinvenções de si, expressões de potência genética de um original, em razão de esta matriz ser, desde sempre, múltipla. Nesse sentido, sua escrita é iminente no sentido de que parece estar sempre pronta para acontecer de novo, seja nas versões de seus textos, seja nos reencontros de temas e personagens, investidos e depositados ao longo de sua obra como uma espécie de mise en place de suas criações.
OS CADERNOS
Certamente, os cadernos dão mais insumos desse processo criativo ao leitor que conhece pouco da obra de Carolina de Jesus, pois o acontecimento de sua obra não existe no trabalho finalizado, mas em seu percurso, trabalhando a criação em meio àquilo que resta das incertezas, das oscilações, de improvisações, dos imprevistos e dos rearranjos de seus manuscritos retalhados. As narrativas de Carolina de Jesus saem da lógica do tempo histórico para atenderem ao acontecimento. O que caracteriza o acontecimento é o desvio de causa e consequência. Mas, nela, o acontecimento se dá no entretempo, na espera, pausa e margem que se efetiva na linguagem. Em sua obra há um contratempo quase musical ao estilo jazzístico, de improvisações, reverberações, esquecimentos recordados ou lembranças desvirtuadas, uma escrita que se dá no exílio da intensidade e não mais da intencionalidade, utilização de um improviso que revigora e se faz novo.
Além disso, as marginálias — sejam as de seus cadernos ou aquelas que ficam ao lado de reportagens coladas em papel almaço pela escritora — contêm registros de seus posicionamentos após leituras. Numa reportagem recolhida do jornal Gazeta de Santo Amaro, de 8 de outubro 1966, ela faz uma anotação a caneta: “Escrevia, mas não me pagavam”. Observa-se que ela organiza suas reportagens por almejar posteridade, do mesmo modo como o fazia João Antônio (1937–1996). Este último teria, supostamente, chegado a colocar fogo na primeira edição de seu livro Malagueta, Perus e Bacanaço (1963) a fim de chamar atenção para seus manuscritos e para as modificações que sua obra sofrera após esse episódio, criando um automito. Talvez Carolina de Jesus não tenha sido uma arquivista sistemática como João Antônio; entretanto, é possível encontrar alguns vestígios de sua trajetória, organizados nesses cadernos com recortes de jornais e revistas, com marcações de caneta, comentários ou correções redigidas com a letra da escritora arquivados em seu espólio literário disperso.
Exemplo disso é o caderno 20, alocado no Museu Afro Brasil, que está mais próximo do gênero diário em sua forma e, como está datado no final de 1960 — portanto, próximo da publicação de Quarto de despejo, pode-se supor que Carolina de Jesus tenha sido instruída a escrever os diferentes gêneros em cadernos distintos a partir dessa data. Nos cadernos anteriores ela mesclava gêneros e temas, produzindo cadernos híbridos, repletos de criações que, embora originalíssimas e reveladoras de uma desmedida paixão pela escritura, demonstram o caos vigente no universo de sua escritura. Pode-se justificar seu hibridismo pela escassez de meios, mas sua escrita permaneceu viva a despeito da falta de papel, pela reciclagem de cadernos infantis retirados das lixeiras.
Qual produto de consumo que satisfaz a curiosidade de quem não compartilha a cultura de Carolina de Jesus, o diário permanece na condição de documento, limitado à categoria de testemunho de interesse social. Esse foi o tratamento que a obra dela recebeu tanto no Brasil como no exterior, e que configura uma das causas de seu esquecimento. Outro motivo que restringe a obra ao campo do pitoresco pode ser o fato de seus escritos não estarem inseridos dentro dos padrões normativos de nenhum gênero literário prestigiado da literatura brasileira, o que talvez viesse a garantir a sua permanência.
Relegado ao plano da novidade no tempo de seu lançamento, Quarto de despejo foi mantido como produto de uma época. Sua volta ao mercado em versão integral, graças ao projeto de republicação, permitirá a leitores entrarem em contato com o projeto literário de Carolina conforme ela o concebeu.