Em outubro de 2018, bem antes do anúncio do Prêmio Camões de 2021, pude conversar demoradamente com Paulina Chiziane em Maputo, capital de Moçambique. Estava na cidade a trabalho e não sabia ao certo se conseguiria entrevistá-la, teria de cavar uma tarde livre e sabia que Chiziane não era tão fácil de se encontrar. Ela costuma passar longos períodos distante da capital, a 1600 km ao norte de Maputo, na região da Zambézia, e nem sempre responde ao telefone quando toca. “É tempo de descansos”, explica. Felizmente, a escritora estava na cidade e topou tomar um café na biblioteca do Centro Cultural Brasil Moçambique onde nos encontramos.
Três anos após aquele encontro e em seguida ao anúncio do Prêmio Camões (em 20 de outubro), procurei contatá-la por vários dias para saber de sua reação à notícia. Ao longo de 33 anos, Paulina Chiziane foi a sétima mulher a receber o prêmio, a primeira africana e a primeira mulher negra. Quando já estava sem esperanças de ouvi-la novamente, ela finalmente atendeu ao telefone. Alguns preciosos minutos em que pude atualizar aquela conversa feita sem pressa em volta de muitos livros.
Assim, esta entrevista resulta de uma conversa feita em 2018, quando a autora contou de si e de sua obra, além de uma breve atualização a respeito do Camões, dos planos de escrita para o futuro e da pergunta sobre se aceitaria ser tratada como “grande escritora”.
Mãe, escritora, trabalhadora, Paulina Chiziane publicou seu primeiro livro, Balada de amor ao vento (1990), aos 35 anos. Foi então considerada a primeira romancista de seu país. Mas logo rejeitou a definição. Nesta entrevista ela nos explica os motivos que a levaram a se identificar como “contadora de histórias” e talvez todas as mulheres das letras, sobretudo negras, se reconheçam em sua resposta.
Nascida de uma família de protestantes, a 4 de junho de 1955, em Manjacaze, província de Gaza, recusou para si o destino único de dona de casa, mãe e esposa que recai sobre as mulheres de sua região. Estudou, ainda numa época de difícil acesso à educação formal, e trabalhou muito tempo junto à Cruz Vermelha de Moçambique, durante o período de guerras civis pós-independência, quando pôde viajar pelo país e ouvir muitas histórias. Atenta às pessoas que encontrava, especialmente às mulheres, uniu o que viu e ouviu à sua capacidade de fabulação. Seu desejo de conhecer outras realidades a levaram a abordar em suas narrativas assuntos como poligamia e matriarcado. Também escreveu sobre o período colonial e guerras que se abateram sobre Moçambique.
Paulina Chiziane relembra sua trajetória e diz que veio “do chão”, referindo-se à origem pobre. Compara o método de trabalho ao de Carolina de Jesus (1914-1977), autora que revela admirar. Declarou em entrevista ao jornal moçambicano O país, em 2016, não mais escrever a partir dali. Publicou O canto dos escravizados, seu último livro até o momento, no ano seguinte.
Ao criar histórias de sujeitos que encontrou e de outros imaginados, juntou as pontas de passado e presente, traduzindo seu país em narrativas que revelaram seu povo e seu tempo em língua portuguesa.
Como foi receber a notícia do prêmio?
Foi uma surpresa absoluta, este prêmio representa a celebração de uma raça, a existência de um povo que aprendeu a falar português em circunstâncias muito difíceis. Tudo tinha a ver com a sistema colonial que não nos deixava falar nossas línguas. E a educação em português era feita em escolas separadas. Havia separação, escola para negros assimilados que relegavam suas origens e as escolas para negros comuns, como eu. Eu estudei em escola da missão católica em Moçambique.
Qual a sua língua materna?
Eu falo o chope, uma língua bem pequena que é falada entre as províncias Gaza e Inhambane.
Quando a senhora começou a escrever?
Bastava ter o papel para começar uns rabiscos e lá iam saindo pequenas palavras e as coisas foram acontecendo naturalmente. Mas eu nunca fiz um trabalho de falar mesmo na primeira pessoa. É um bocado de ficção deslocando as personagens e os lugares. E fico surpreendida depois quando venho a saber que a Balada é o primeiro romance [de uma autora moçambicana]. Nunca me tinha passado pela cabeça. Depois da Balada, fiquei com muita vontade de aprender mais sobre literatura, matriculei-me na faculdade, em Linguística, mas tive que interromper por variadíssimas razões. Primeiro o curso não respondia àquilo que eu queria. Eu queria saber um pouco mais para escrever. Então, aquele curso não satisfazia ao meu ego. Optei por continuar o meu trabalho de emprego formal.
Pode falar mais sobre o seu trabalho na época?
Eu trabalhava na emergência na Cruz Vermelha de Moçambique. Conheci o país quase todo em tempos de guerra e vi tanta coisa que, se não fosse um pouco de preguiça, eu poderia escrever memórias daquele tempo. Mas essa experiência foi o que me deu mesmo força para por no papel os registros dos dilemas, dos dramas, das vivências que eu encontrava por todo o lado. Fiz isso de certa maneira. Acho que os três primeiros livros têm muito a ver com o que eu vi, a beleza que eu vi nas margens do Rio Save. Eu vi histórias várias de amor, então trabalhei nisso. O segundo livro que escrevi, Ventos do Apocalipse (1993), é um livro dedicado às vítimas da guerra porque houve coisas terríveis. E no terceiro, Sétimo juramento (2000), eu fui atrás das crianças. Eu dizia, “meu deus, será que as pessoas que vivem na cidade sabem que o país real tem essas crianças? Então deixa-me lá fazer o registro”.
Portanto, muito de suas histórias vêm de suas vivências. A senhora pode contar algo que lhe marcou?
O que me deu mesmo uma noção ampla da vida moçambicana foi meu trabalho na Cruz Vermelha. Porque eu viajava muito o tempo inteiro para todo lado, via, ouvia e participava de muita coisa. Por exemplo, um episódio que me marcou muito foi em Manjacaze, na província de Gaza. Acabava de haver um massacre, morreu muita gente e eu estava a circular no campo de refugiados quando uma velha mulher olhou pra mim e escapou-se. Não dei assim muita importância porque andávamos por ali a distribuir mantas, a organizar as crianças, coisas assim. Dou uma nova volta e lembro-me de ter visto a mulher a escapar-se de mim de novo, mas, dessa vez, ela fugiu mesmo. E eu me perguntei o que se passava.
Continuei a fazer o meu trabalho e, no final do dia, fui passeando e encontro essa senhora numa posição em que ela não tinha como fugir, e eu vejo que ela foge. Eu lhe digo: “por favor, o que se passa?” Ela olhou pra mim e começou a chorar. E ela diz: “quando te vi, pensei na minha filha que acabou de ser massacrada, ela estava grávida. A minha primeira impressão foi correr para te abraçar como quem diz, a minha filha regressou da morte, mas depois percebi que tu és só semelhante a ela”.
Nos dias que fiquei ali, fiquei conversando com ela, isso bateu muito fundo no meu coração. Então, fiz assim umas anotações, tomei notas, e foram crescendo até constituírem aquele livro Ventos do Apocalipse. Levou muito tempo para terminar, mas são vivências mesmo, histórias que vi, circulei esse país todo e tive a sorte também de circular em muitos países e pronto, é isso, a realidade. A minha vivência, o meu contato com essas pessoas despertou a minha visão de mundo para coisas que eu não conhecia, para a realidade que eu antes não imaginava.
Muitas mulheres publicaram com pseudônimos, muitas até com nomes masculinos. Já a senhora diz que é contadora de histórias. Por que recusa ser chamada de escritora, romancista?
É muito simples. Eu venho de uma realidade colonial e nós só tivemos a nossa independência em 1975. Portanto, a raça branca é que era considerada superior, o homem branco que era superior. E, entre pessoas da mesma raça, é o homem que é superior. Eu sou mulher e sou negra. As duas coisas e venho de uma família de resistência, que sempre resistiu aos valores coloniais. Então, quando apareço a publicar um livro, aparecem os puristas da língua portuguesa: “Ah, não, porque isso não é um bom português!” Depois, aparecem os homens que diziam: “mas as mulheres não têm capacidade para escrever romance, elas têm capacidade para fazer um poema de amor, uma canção de embalar, etc. Aquelas coisinhas lindas. Agora escrever romance não é possível, então o romance dela deve estar cheio de erros”. Esse grupo de pessoas, incluindo mulheres, assaltam-me, do tipo: “se queres escrever, leia isso e aquilo”. Quando eu publiquei meu primeiro livro, reconheço que era um livro primeiro, um livro inexperiente. E estava todo mundo com muita vontade de me dizer sobre o que se deve escrever. Eu pensei, calma aí, romancista, eu? Nem pensar. Eu conto a minha história e pronto!
Foi uma maneira de reagir aos “puristas da língua” e se proteger?
Foi uma forma de evitar a interferência. Porque eles queriam me dizer como escrever e eu escrevo o que eu quero, como eu quero e quando eu quiser. Então, fiquem com os vossos romances que eu vou escrever a minha história com os recursos linguísticos que eu tenho. É como fazer uma casa, se a pessoa tem dinheiro, faz uma casa de luxo e vive bem; se a pessoa não tem, faz uma casa de palha e vive na mesma. Portanto, qualquer que seja o recurso que a gente tem, pode ser usado na construção de algo bom. Deixem-me em paz, não se metam comigo que eu vou contar as minhas histórias do jeito que eu quiser e como bem entender. Eu não lhes dei espaço para interferirem. Então, o que digo sempre é, eu não queria que as pessoas usassem as suas autoridades para interferirem no meu espaço de liberdade.
Nos seus livros, há também narrativas que envolvem histórias orais, crenças, religiosidade moçambicanas. Como a senhora as acessou?
Pela escuta. Ouvindo as pessoas. Eu ouvia, ouvia, à medida que ouvia coisas novas, tomava notas. Acho que fiz um pouco como a Carolina [Maria de Jesus]. Não propriamente um diário, mas eu mantinha um caderno de anotações durante as viagens e ia anotando tudo. Às vezes tinhas dois, três cadernos cheios. Chegava a altura de férias e começava a processar aquilo tudo. Agora, os últimos trabalhos que eu fiz são livros muito polêmicos até, sentei-me com as pessoas e entrevistei. Assim, do tipo em que se coloca o gravador à frente a fazer perguntas. De modo que continuei ouvindo e perguntado e, a partir daquilo, fui construindo. Entrevistei uma mãe de santo, por exemplo, está disponível no Brasil através da editora Nandyala, de Belo Horizonte. É uma editora de uma professora, uma editora negra. Então, na produção desse livro, eu sentava-me com a mãe de santo, que chamamos curandeira, e eu fazia perguntas relativas à concepção dela de religião. Porque ela é curandeira, é uma praticante da religião tradicional, e, ao mesmo tempo, é católica. E então eu quis ouvi-la. Eram inquietações minhas, mas achei que essa conversa poderia ser traduzida em livro. A princípio não foi bem entendido por aqui, mas já está na terceira edição.
A senhora menciona que trabalhou um pouco à maneira de Carolina Maria de Jesus. Como a senhora conheceu a obra dela?
Eu conheci no Brasil durante um evento literário em São Paulo. Havia lá uma conferência dedicada à Carolina e eu fui lá e fiquei encantada. Comecei mesmo a gostar dela. Primeiro porque é uma mulher que sai de lugar nenhum, que não tem escolaridade. Ela tem umas coisas bonitas, acho muito interessante o Quarto de despejo. Eu olhei para aquelas imagens de uma simplicidade, e tão profundas, e passei a gostar mesmo dela, mas, acima de tudo, admirá-la. Eu admiro sempre, sempre o indivíduo que constrói um projeto a partir de pouco, isso é fantástico. Então eu vi uma conferência e uma das pessoas que falava sobre ela era a Conceição Evaristo.
A senhora leu também Conceição Evaristo?
Sim, sim, ela é uma grande amiga. E eu a conheci de uma forma muito especial. Foi em Porto de Galinhas (PE). Eu estava numa pequena tenda a comprar artesanato, ver os preços, de repente eu olho para o lado e penso: como é que minha irmã chegou aqui? Eu olhei para ela, parei fixamente, e ela olhou para mim fixamente também e pronto. Passados alguns minutos, passamos a conversar sobre pequenos nadas, ficamos amigas a partir daquela altura. Descobrimo-nos ali e pronto. Faz mais de dez anos. E a primeira viagem que ela fez à África foi a Moçambique. Foi por ocasião do mês da mulher aqui, eu fui com ela. Portanto, o primeiro contato que ela tem com o povo negro de África foi comigo e isso selou entre nós uma grande amizade. Então, nessa conferência de São Paulo estava a Conceição, que eu já conhecia, e mais outras pessoas, a falar da Carolina de Jesus. Pronto. Comprei os livros e comecei a ler. Achei fantástico, não me interessam os erros ortográficos, mas ela expressou um sentimento humano muito, muito profundo. Não consegui terminar o texto porque chorei. Os recursos financeiros eram péssimos, os recursos linguísticos eram maus, mas com o pouco, ela conseguiu transmitir a grandeza da alma humana, e isso merece todo o respeito.
Em recente declaração sobre o prêmio, a senhora comentou que “veio do chão, de lugar nenhum”, mais ou menos como comentou a origem de Carolina Maria de Jesus. O que é vir do chão, de lugar nenhum? Pode falar mais sobre isso?
As primeiras escritoras em Moçambique eram brancas, por razões óbvias, pois os brancos é que tinham acesso à educação. Seguiram-se as mulatas, neste caso a Noémia de Sousa (1926-2002) e Lilia Monplé, segundo grupo na hierarquia social a ter educação. E os negros, como eu, estavam na base e só muito mais tarde é que receberam educação. Hoje há muita juventude, muitas meninas escrevendo.
Nas histórias que a senhora escreveu, deu vida a muitas protagonistas mulheres, muitas vindas do chão também, outras não, enfim a uma diversidade de mulheres moçambicanas em situações muito variadas, de sociedades patriarcais e matriarcais, em contextos de colonização e de independência, durante as guerras e durante a calmaria. O Prêmio Camões menciona e reconhece a importância da representação da mulher africana feita pelo seu trabalho. A que referências de mulheres a senhora recorreu para compor suas narrativas?
Eu venho da província de Gaza que é uma região absolutamente machista, patriarcal, onde os homens emigram, vão trabalhar durante muitos anos nas minas da África do Sul e as mulheres ficam sós. Avós, mães e filhos sós. O homem é um reprodutor. É o homem que parte para trazer o dinheiro e o pão. É a mulher que fica para cuidar dos filhos, do casamento, da morte, do funeral, da educação das crianças. Então, o papel social preponderante, na minha terra, na preservação dos valores culturais da coletividade tem sido sempre feminino. E as mulheres mais velhas preservam as tradições machistas de uma forma, não sei qual o mecanismo que se usa, sobretudo as avós e as sogras, desempenham um papel de reforço dessas tradições fortíssimo, talvez seja o lugar mais machista de Moçambique. Esta é a minha região.
Mesmo aqui em Maputo, a igreja é feminina, a maior parte das pessoas que vão à igreja são mulheres. Nos funerais, nas cerimônias fúnebres, a maior parte dos participantes são as mulheres. O homem aparece para fazer uma oração religiosa, quando aparece. Nos casamentos, ou nos grandes eventos da sociedade, os eventos coletivos são feitos pelas mulheres, pelo nosso papel de cuidar de todo mundo.
Por que a senhora acha que as mulheres procuram preservar esses papeis e as tradições machistas? Sair desses espaços de valorização da mulher implicaria em também perder espaços de socialização, em ficar isolada?
Também. Eu acho que existem mecanismos de controle. Quem sai um bocadinho fora são punidas e castigadas. E o são pelas próprias mulheres. Eu saí da linha. Casei-me, tive dois filhos. E casei-me com alguém de fora dessa região de onde eu vim que é muito machista. Foi o primeiro choque porque meu marido era um homem de Cabo Delgado, uma região matriarcal. E depois me divorciei. Em seguida as viagens, eu viajava dentro do país, e depois fora do país. Fiquei meio marginal, quase excomungada na minha família, mas fui recuperando meu lugar aos poucos.
Pode contar um pouco sobre a região matriarcal de Moçambique?
Nós temos isso aqui em Moçambique, em Nampula, Cabo Delgado, Zambézia, Niassa, sobretudo em Nampula temos um matriarcado muito forte. Em Niketche (2002) eu descrevo um pouco a história do matriarcado, do meu jeito. É um livro de memórias coletivas. No princípio, quando entrei na sociedade matrilinear eu ficava chocada. Eu fui a trabalho e me encantei em descobrir outros mundos, era superior a uma convivência familiar. E fui quebrando tudo o que era considerado normal, paguei muito caro por isso, perdi amigos, perdi a confiança. Mas, ao mesmo tempo me deu alegria trazer novos valores à família, porque, afinal, construí algo. Então, pronto, foi assim que eu comecei em Nampula, no tempo ainda da guerra, mas não tinha muito tempo para conviver com as pessoas. Mas, depois, fui para viver.
O que lhe causou mais espanto?
Muitas coisas, sobretudo a visão do mundo. Por exemplo, a questão do sexo. Eu venho da sociedade patriarcal, cristã, islâmica de certa maneira, também temos muito islamismo por aqui, portanto eu venho de uma sociedade que tem o casamento como base do patriarcado africano e europeu, em que o sexo é pecado. Então, quando chego a Nampula, descubro que, para eles, o sexo é sagrado. Portanto, se para uns a pessoa tem que se purificar e depois ter sexo, para se sacralizar, na religião matriarcal, a mulher tem que ser preparada para celebrar o sexo, o corpo, porque o sexo é o lugar mais sagrado da vida. Então, tanto homens quanto mulheres têm uma preparação que começa aos dez, onze anos — que é mal também [por ser um contato precoce com o assunto] — e aprendem muito sobre sexo, sobre corpo, sexualidade, relações. Isso penaliza a escola e às vezes as meninas arranjam logo casamento. Isso chocou-me também. E é uma prática muito pesada. Já na religião do sul, cristocêntrica, a mulher tem que casar virgem, senão é sempre assim desvalorizada. No norte, a coisa é outra. A mulher virgem, se foi virgem até o casamento é que deve ser uma pessoa amarga. Este é um exemplozito daquilo que é o matriarcado.
Há outras histórias. E essas questões têm a ver com as fronteiras artificias que foram colocadas pela Conferência de Berlim [1884-1885, que marcou a divisão colonial da África por países europeus]. Portanto, chegaram os tipos com as armas, cortaram os pedaços: “este pedaço é meu, este é teu”. Identifico-me mais com pessoas que estão em outro território, que é bem mais distante, do que com as pessoas que estão no norte. Estamos dentro do mesmo país, mas, na verdade, nós somos outro povo. É que vieram as fronteiras, cortaram-nos pelo meio. Mas é chocante. Para um europeu deve ser pior. Eu sou da mesma terra e o meu primeiro contato com aquela cultura foi chocante.
A região onde a senhora nasceu e cresceu é patriarcal e fica ao sul. Como se dividem essas duas regiões?
Essa é a região do sul. O patriarcado começa no Rio Zambeze, vem da Angola, atravessa a Namíbia. O Rio Zambeze é que traz essa separação. Do Zambeze pro sul, é o patriarcado, do Zambeze pro norte é o matriarcado. De um lado como do outro, há também sempre aquela cultura de transição. O matriarcado é outra coisa, não posso falar muito, mas os próprios estudos não conseguem ir à profundidade das coisas, fazem-se muitas publicações de estudos de gênero, mas, pra mim, pecam porque são estudiosos que saem da região patriarcal para estudar a região matriarcal, aí já vão com seus próprios conceitos e perspectivas do patriarcado, embora sejam feministas. Aquilo que fica no subconsciente. Ainda não houve pessoas que traduzissem a cultura daquele povo com fidelidade. Por exemplo, o conceito de eternidade. Ouvi no norte que a eternidade de toda a espécie humana reside no sexo. Porque, pare eles, é onde estão as sementes da eternidade. Jesus, nunca tinha pensado numa coisa dessas! Então, aparecem os europeus a dizer que não, o sexo é pecado. Ai, que parvos! (risos)
No norte, onde há as sociedades matriarcais, há produção literária sobre estes temas? A riqueza de pontos de vista e a diversidade cultural moçambicanas estão expressas literariamente?
A nossa situação está em desenvolvimento, nós temos uma independência muito recente, a melhor educação foi concentrada no sul de Moçambique por razões históricas. Estamos muito próximos de uma potência regional que é a África do Sul e o sistema colonial achou por bem potenciar esta região com melhores recursos. A mudança e a transformação do país é um processo. Acho que só nos últimos dez anos é que começamos a ter escolas de nível médio em outras regiões do país. Era preciso vir a Maputo. De Gaza, minha região, para Maputo é perto, são 200 quilômetros. Os meus pais migraram para Maputo para ver se os filhos tinham acesso à escola. Agora imagine alguém que está ao norte. Nos últimos anos, começam a aparecer propostas femininas, mas é muito pouco, de uma forma muito tímida. O país deu grandes passos, houve uma altura de euforia, de dor, de guerras e neste momento de calma parente, nós conseguimos pensar um pouco em nós próprios. Eu lembro-me, na altura em que eu era jovem, até 1975, o horizonte da mulher era fazer o enxoval da noiva, bordar, cozinhar, aprender a ser boa esposa. De lá até aqui, temos já governadoras, primeiras-ministras. Mas há muito trabalho por fazer, especialmente porque temos um país dividido. Este país são dois, um rural e outro urbano. Esta possibilidade de ter um pedaço de papel é coisa da cidade. No campo, continuam os mitos, as tradições, a falta de escolas e de oportunidades.
A senhora escreveu muita prosa sobre as realidades moçambicanas. Escreveu também poesia?
O último livro que eu escrevi, O canto dos escravos. No Brasil, aparece como O canto dos escravizados pela Nandyala. Não é propriamente poesia, mas é um livro escrito em versos. Além disso, tenho algumas poesias. Foi uma experiência que me agradou. O canto dos escravizados é um canto de resistência e de esperança ao mesmo tempo. Falo da liberdade, e de como podemos perdê-la. A questão brasileira, por exemplo, para mim me incomoda muito. Houve tanto progresso e tudo isso posto a perder. E por causa de gente louca.
Escrever sobre os outros ajuda a aprender sobre si?
Ajuda muito, mas tem um porém. Se o costume é do outro, é difícil entrar na essência desse mesmo costume. Então, corre-se o risco de olhar para o outro com preconceitos. O que os europeus sempre fizeram com a África. O que os homens fazem com as mulheres, o que os ricos fazem com os pobres.
Como contornar esse problema?
É preciso que todos escrevam. Ricos ou pobres, com ou sem recursos, têm que escrever. Por exemplo, temos uma Carolina Maria de Jesus que falou sobre a situação dela, escreveu, deixou este legado. O rico um dia pode vir a saber o que significa ser negro e ser favelado, então todos devem escrever. No meu caso, quando falo da mulher, não estou propriamente a falar do feminismo — que é uma coisa boa — mas estou a falar do meu mundo, às vezes é do feminino, às vezes estou a falar do feminismo. Bem, eu não conheço tão bem o mundo dos homens, conheço mais o mundo das mulheres. Se eu tivesse que descrever um jogo de futebol e a beleza do gol do Maradona, eu teria muita dificuldade. Se eu falo, por exemplo, de uma história da mulher no mercado, na fonte d’água, na discoteca ou no trabalho, eu sinto que tenho muito mais habilidade.
O que a senhora gosta de ler?
Ler cansa a vista, e agora é tempo de descansos (risos). Mas a vontade de ler prevalece. Nos últimos tempos, tenho lido muitos livros produzidos no Brasil, muitos livros de pensadores africanos, por influência de jovens críticos literários, jovens docentes de literatura, de universidades. Porque também isso me devolve um pouco da informação do meu próprio continente. Uma crítica que eu faço mesmo em Moçambique é que não temos nenhuma livraria especializada em assuntos africanos, temos pouca informação, e os grandes intelectuais, os grandes filósofos e pensadores africanos nós não temos. Então quando vou ao Brasil, encontro a Chimamanda [Ngozi Adichie], por exemplo, que chegou só há pouco tempo em Moçambique. Daqui mesmo gosto muito da Noémia de Sousa, que foi considerada por muito tempo uma poeta menor. E o [José] Craveirinha aprendeu da Noémia e tornou-se muito conhecido. A injustiça do machismo, não é?! E dos homens de todos os tempos, eu gosto do Ungulani Ba Ka Khosa, que é mais jovem do que eu. Gosto muito desses dois. Mas leio todos. (risos)
A senhora tem alguns livros lançados no Brasil, mas muitos ainda não foram lançados por lá. Pretende lançá-los todos no Brasil?
Eu tenho alguns livros lançados pela Companhia das Letras e pela Nandyala. Acredito que, após o prêmio, haverá muito mais livros lançados no Brasil. Não sei se vou lançar algo novo. Estou na idade dos descansos, vou escrevendo quando calha, se um dia escrever mais coisas com mais fôlegos, publico. [Nota da edição: Paulina Chiziane também lançou no Brasil pela Dublinense, em 2018, O alegre canto da perdiz, originalmente publicado em 2008]
A senhora me permite defini-la como grande escritora?
(Risos longos) Claro, como quiser.