“Por toda parte, vê-se uma profusão de combinação de cores que choca Lúcio, mas ele descobre que é preciso a cor intensa para não desaparecer na luz tropical. A policromia é uma defesa contra o sol que devora o branco dos climas quentes”.

A flâneurie exige uma predisposição à melancolia. Como deixar-se envolver pela multidão sem ser confrontado com os sentimentos desconhecidos que nos protegem de nós mesmos? Também requer uma curiosidade laboriosa que, fronteiriça, limita-se entre o entregar-se ao coletivo, descortinando-o quase antropologicamente, e o criar uma espécie de panopticom privado, no qual as imagens e as ideias do outro sejam observadas não como moral, mas como arte. A princípio, o desafio do flâneur não era científico, mas estético: o alumbramento diante da cidade e a desconstrução do mito da metrópole em nome da experiência individual (e da assinatura do artista, claro).

Quando chegou ao Recife, em 1960, para ministrar uma disciplina no recém-formado curso de Artes Dramáticas, da Universidade do Recife (hoje UFPE), o argentino Túlio Carella encontrou condições especiais, sociais e individuais para criar sua janela e observatório pessoal. Na Argentina, já era um intelectual de representação significativa, tendo vivenciado o modernismo portenho e crescido numa cidade cuja modernização chegara com estrutura econômica, ainda no final do século 19. Embora reconhecido, Túlio parecia um outsider. No Recife, o sonho de ser anônimo e, enfim, vaticinar seu deslocamento íntimo, realiza-se durante os dois anos em que as ruas predominadas pelo cheiro dos manguezais viram seu percurso cotidiano, registrado analiticamente em forma de um diário estetizado pela melancolia e sensualidade de Carella.

O Recife emerge de sua narrativa confessional surpreendente, junto com seus personagens; seu ethos; sua aura católica e o provincianismo burguês; sua movimentação e conservadorismo. Aspectos culturais relevantes para o entendimento do ser e pertencer à capital pernambucana revelam-se nas páginas de Orgia, diário traduzido por Hermilo Borba Filho, que depois de décadas esgotado tem relançamento pela editora Operaprima. Em cinco décadas, Orgia ganhou status de cult por sua narrativa homoerótica dispor de elementos caros ao tema, como a guetificação da atividade sexual e a marginalização do afeto. É fácil analisar Orgia por essa perspectiva. A começar pelo título e a descrição da contracapa: “quem sabe por que escrevo este diário? Por amor ao pecado, talvez, para quem lê-lo?,ou tento justificar-me a mim mesmo com uma exagerada grandeza no erótico? Que procuro? Que persigo”, diz.

A narrativa explora detalhadamente a arte da sedução, da entrega e do desejo homossexual. O que faltou, no entanto, nessa análise tão ligada ao afeto homossexual, foi a percepção de que Orgia fala também do Recife. Dos seus guetos, da sua marginália. Da homossexualidade compulsória dos morenos, mulatos e mestiços que circulavam pela cidade oferecendo o falo como sedução, troféu e moeda de troca. Ao nos propiciar essa passagem pela intimidade pessoal do escritor, Orgia incomoda, desconcerta e seduz, contraditoriamente, das formas mais diversas. Compartilhamos a angústia do autor, em seu deslocamento. Mas em tempos do politicamente correto a ferro e fogo nos incomodamos com sua sinceridade. Uma delas é a sua capciosa e retórica pergunta feita regularmente nas 300 páginas do livro: “o que é um negro?”, pergunta o personagem Lúcio, durante os idílios sexuais com os mulatos encontrados nas zonas de prostituição da cidade ou quando se vê diante de um belo exemplar do gênero. Malandros, mendigos, amantes. Negros. O que é um negro?

Não podemos deixar de voltar à Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, obra que tentou desvendar psicossocialmente as etnias formadoras da identidade brasileira e cuja atenção recorreu às raças africanas impostas à economia açucareira. Em sua obra monumental, Freyre fetichiza os primeiros contatos dos colonizadores com os povos primitivos. Diz que os galegos aportaram no Brasil praticamente pisando em índias nuas, voluptuosas que, segundo o intelectual, despertou nos portugueses o arquétipo da moura encantada de suas lendas tradicionais. Os últimos capítulos de Casa Grande & Senzala avaliam a participação e influência da cultura negra no sistema patriarcal e mostram o confronto entre o mundo civilizado e o primitivo – e o processo sádico que surge a partir da figura do senhor de engenho, que seduz e estupra as negras escravas, não por sê-las de raça inferior ou malemolência provocante.

Aqui, a questão é o poder que permite e banaliza a imposição do homem branco sob os demais. No entanto, o discurso é de que a malemolência e sensualidade acabariam por incitar o faro sexual dos dominadores. Quem discute as presas fáceis? Eram fáceis? Se “desfrutáveis”, deixaram-se seduzir por livre arbítrio, fizeram apenas por uma questão atávica ou foi a entrega uma forma de “negociar” a própria liberdade e ascendência social?

Outra digressão: Bakhtin, em Cultura Popular na Idade Média, investiga a relação entre cultura e civilização, mostrando como determinadas manifestações populares são encaradas como primitivas e deveriam ser evitadas pela incipiente burguesia se esta quisesse se mostrar como polida e cortês. As danças sensuais e a gula, movimentos do baixo ventre, eram alguns dos indicadores de atos primitivos, relacionados à volúpia, ao descontrole dos instintos naturais que acabaram sendo normatizados no processo civilizador (a partir do século 16). A obra de Carella percorre exatamente essas questões. Nela, temos o argentino civilizado e encantado com a oferta fálica pelas ruas do Recife. A oferta de negros. Enquanto a moral branca, vestia-se de forma minuciosa e trancafiava seu corpo e seu desejo. Cabia à burguesia acompanhá-la pelos sobrados, pelos casarios ou pelo indiscreto estreitamento das casas conjugadas que revelam muito mais do que se poderia saber sobre a alteridade do senhor, seu vizinho. Cabia à experiência popular vivenciar o inferno típico da cidade: a sobrevivência. Desse modo, não nos distanciamos muito do início da nossa colonização e da dialética da nossa modernidade.

Vejamos alguns trechos comentados de Orgia. “E começo a andar para apreender os aspectos da cidade. Na fila que esperava o ônibus havia muitos morenos, limpos e comunicativos. Vê-se outros mais nas ruas e todos têm um aspecto alegre, sereno pacífico. Há uma predominância de jovens, quase não se veem velhos. Os canais lodosos, amarelados recordam-lhe as águas do Rio de la Plata. O centro da cidade não é muito grande. E formado por duas ruas paralelas e muitas transversais”, transcreve Carella, através do personagem Lúcio. O ato de se deixar movimentar pelo ritmo da cidade pontua a flâneurie de Carella, que tece comentários sobre o provincianismo do Recife em meio à sua modernização: “Não é difícil compreender a geografia do Recife. Há uma ilha e dali partem as ruas, que se abrem como um leque. O rio Capibaribe ondula sinuosamente em curvas pronunciadas. As pontes são simétricas, mas diferentes. Um ar calmo, provinciano, parece envolver tudo. O que mais lhe chama a atenção é o duplo aspecto da cidade. Até aqui chegou o horrível progresso, com seus arranha-céus de cimento, metal e vidro. A Avenida Guararapes é um exemplo de modernismo decepcionante”.

Túlio chegou ao Recife após o boom desenvolvimentista da era Juscelino, que foi seguida por recessão, inflação e pobreza, principalmente na região nordestina. Embora a situação econômica não fosse uma das melhores, a cidade já contava com uma reflexão urbanística modernizante desde os anos 1920. Em certo trecho, um moreno lhe chama para a Praia do Pina, que diz ser ideal para a entrega amorosa. Já Boa Viagem seria indiscreta: alterna edifícios modernos com verdadeiras cabanas. Vazios imensos intercalados de arranha-céus e casas miseráveis.

Por onde anda, Carella se depara com mendigos, pedintes. Sente-se deprimido e vai à Igreja comungar. A oferta de igrejas não se compara a dos mulatos, mas é opulenta. Para Carella, as ruas com casas e sobrados coloniais de cores amarela, celeste e rósea são a verdadeira fisionomia da cidade. “A calma dominical envolve este lugar da esfera terrestre que nem sempre aparece no mapa. As mulheres e os homens vestem-se com esmero minucioso. Vão à missa. Há ruas asfaltadas e ruas de paralelepípedos onde permanecem os trilhos dos desaparecidos bondes. O tempo os irá desgastando. Lúcio confessa mentalmente sua ignorância da cidade, da sua história, sua gente, seus costumes”, revela. Em outra parte: “O Recife, como certas cidades, não se entrega à primeira vista. Seu encanto está oculto e talvez por isto se torne mais penetrante quando encontrado”, conceitua, compactuando da tese freyriana de que o Recife é uma cidade para ser descoberta, redescoberta em seus mistérios, em suas ruas obscuras, em seu ethos conservador.

O RITMO DA CIDADE
Os anos 1960 no Recife foram marcados pela força dos movimentos católicos, políticos e artísticos. O próprio campo no qual Carella vai se disseminar mostra a construção de sua autonomia e autoridade. O teatro, nessa década, atinge sua maturidade como instituição artística, o que é comprovado pela própria criação de um curso universitário voltado ao seu ensinamento. Sobre a década de 1960, falamos demasiado das revoluções ideológicas. Mas esquecemos as tecnológicas. O fato é que nessa época também estamos no fim dos bondes elétricos, que começaram a ser substituídos pelos pesados trolebus. Apenas 60 frotas percorriam os trechos mais movimentados da cidade, o que lhe garantia, ainda, a possibilidade da movimentação e do ato da flâneurie. Túlio circulou pela cidade em transformação, em seu anonimato arbitrário.

Anonimato e condição estrangeira lhe permitiam críticas pontuais à modernidade local. Ao ser apresentado ao Teatro de Santa Isabel, não contém o comentário que, para o recifense, deve soar como ofensa. “O automóvel para diante de um teatro: é o Santa Isabel. Mostram-no com orgulho pueril e conservador. Para uma cidade de província é um luxo. O Santa Isabel tem uma falsa atmosfera senhorial, uma imitação de luxo. Somente o edifício é equilibrado, com o pórtico neoclássico, o saguão lajeado de branco e preto, e a altura elegante”.

Aqui não era reconhecido como autoridade. Podia se misturar à experiência social. Perder-se na cidade. Perder-se não somente na experiência coletiva, em meio à multidão subnutrida. Mas perder-se também no próprio meio intelectual.

Não demorou, porém, para perceber que os olhares constantes lançados a ele nas pontes do Recife tinham a ver com o modo particular de se vestir. Era um estrangeiro. E como um explorador medieval repleto de espelhos e colares, foi conveniente aos negros, mulatos e mestiços, que negociaram seu membro enrijecido por uma camisa nova, um maço de cigarro ou alguns trocados para comprar uma bebida. Negros, mulatos e mestiços que, embora sejam ressaltados por suas características biológicas positivas, eram pobres, miseráveis ou apenas alpinistas sociais por uma questão de sobrevivência.

Naturalmente, não podemos reduzir a sedução homerótica relatada no livro apenas à dialética social de dominantes e dominados. Obviamente, há o prazer. E como todo assunto ligado ao prazer, é um tabu. O prazer dos mulatos em Orgia é, porém, sempre reticente. Na maioria das vezes, demonstram-se receosos, dizem que aquela foi a primeira penetração de suas vidas. Preferem ser visto como dominantes. A questão masters and servants é substituída por dominantes (os civilizados, polidos, que encaminham a sedução) e dominados (os que se subjugam a ela).

Nesse sentido, a localização de Túlio no Recife é estratégica. Morando numa pensão da Sete de Setembro, fazia trajetos específicos que, coincidentemente ou não, levaram-no aos becos, às vielas e aos guetos, onde até hoje o ato de se exibir homoeroticamente é tradição. Conde da Boa Vista, Cinema São Luiz, Duque de Caxias, Cais de Santa Rita. A cidade é comércio até às 18h. Convive-se com a gritaria e o azudeme das frutas que se mis- turam à maresia e ao odor de urina das calçadas. Ainda hoje, os mesmos locais funcionam como gueto. Com a pressa do dia, é difícil olhar para os lados e observar o cortejo sensual que se segue enquanto a cidade vive seu cotidiano. Talvez os anos 1960 foram o marco inicial da derrocada da cidade como experiência sensorial estética, dentro dos parâmetros modernos de apreensão e percepção das trocas urbanas permitidas pela flâneurie. Talvez os que estejam inseridos no gueto percebam que um olhar a mais numa ponte, às 17h da tarde, é um código de liberação e permissão.

Por outro lado, as intervenções conceituais do autor sobre a cidade nos revelam algo incomodo. “Cidade pequena, inferno grande. Pois bem: este é inferno, onde todos se veem a cada instante, conhecem-se a fundo e não podem libertar-se”, escreveu Carella, sobre o ato do mexerico. Inevitável na cidade, a fofoca, ou, para falarmos sociologicamente, o ato de vigiar e punir, lhe incomoda. Frustra-se com a possibilidade de passar incólume à nova cidade. De um canto ou de outro, ecoam-se os sacarmos, as ironias e os desafetos.

Outro dado interessante. A elite intelectual e artística sempre se valeu de diários e correspondências de suas impressões europeias, que contribuíram para a própria identidade da cidade a partir do contato com a experiência moderna por excelência. Nesse caso, temos a inversão. O Recife e sua intelectualidade são analisados através de um relato descritivo que desloca o protagonista recorrente em tais gêneros narrativos. Ao vivenciar o Recife, e sua marginalidade, Carella nos coloca diante de anônimos. Mas, não se iluda, estes anônimos, mulatos, pedintes ou fofoqueiros, personagens secundários da cidade, também são idealizados.

Orgia é um relato minucioso do homoerotismo, mas é também a descrição da vivência citadina, com seus sinais, com seus indícios, com sua regionalidade. Sedutor, mas melancólico, e por vezes sufocante como a cidade do Recife. Ontem e hoje.


Carolina Leão é doutora em Sociologia.

 

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