Orgia, do escritor argentino Túlio Carella, que teve sua primeira edição, no Brasil, em 1968, em tradução de Hermilo Borba Filho, fala de um personagem — Lúcio Ginarte, poeta e dramaturgo —, residente na então mais importante cidade da América Latina — Buenos Aires —, que recebe, em 1960, um convite da Universidade Federal de Pernambuco para ser professor de um recém-fundado curso de teatro. Na passagem entre uma cidade e outra, o personagem conhece uma nova paisagem econômica, social e cultural. Não só: ele descobre prazeres afetivo- -sexuais distintos da sua orientação sexual. Entre o deslocamento geo-sócio-cultural e a descoberta da nova orientação sexual, subsiste a memória. Memória da Buenos Aires que ficou para trás (suas ruas, seus monumentos, os amigos, os familiares e a vida cultural), memória do que vai sendo vivido no presente. É na confecção de um diário que ele guarda os feitos e os fatos dessa memória recente, do presente que vai se plasmando ante os seus sentidos. Como diz o narrador do romance, “Lúcio Ginarte despeja em seus cadernos parte de suas experiências. São tão abundantes que não é possível anotar todas. Receia que a seleção não corresponda ao melhor, mas acha que seja a mais próxima dele. Sem perceber suprime os escrúpulos morais para obter a felicidade”. Finda a experiência de professor e o seu retorno para Buenos Aires, resta o diário — matéria-prima para a confecção de um futuro romance. A capital da Argentina já não é a mesma que ele deixara. Não porque esta sofrera alguma brusca transformação, mas porque o protagonista da história já não é o mesmo. Uma cidade se inventa pelo olhar de quem a observa, e o seu olhar sobre a natureza humana fora alargado: seja culturalmente, seja afetivo-sexualmente. A cidade que deixara para trás também já não é a cidade que vivera e que inventara a partir do que vira, ouvira, tocara e fora tocado, mas a cidade registrada nos diários. Entre duas realidades eternizadas — Buenos Aires e Recife —, restou o recurso da imaginação: o construir e o reconstruir dos espaços sócio-culturais, o construir e o reconstruir da sua afetividade sexual.

Toda narrativa é uma tentativa de presentificar os fatos retidos pela memória, uma tentativa de dar sentido ao que vimos e guardamos na memória. Não se narra o instante presente, narra-se o que já aconteceu. O instante presente é passível apenas de descrição — aquilo a que se refere —, não de narração — quando nos referimos a um fato e, ao mesmo tempo, o interpretamos. Esta observação faz-se necessária porque Orgia é um romance que se estrutura entre dois tipos de registros: o da memória e o do diário. A primeira narrativa — a da memória — tem o foco narrativo na terceira pessoa; a segunda narrativa — a do diário — se dá na primeira pessoa, e acolhe o que Lúcio Ginarte reteve ou considera relevante de ser registrado dos fatos do dia.

É pelo modo narrativo na terceira pessoa que se inicia o romance de Túlio Carella. Por meio deste narrador conhecemos as dúvidas de Lúcio Ginarte em aceitar o convite para lecionar no Recife (recorrendo, inclusive, a uma vidente), os seus primeiros contatos com a cidade (as pessoas, o clima, seus odores, seus olhares) e a sua vida intelectual. O foco narrativo muda quando o narrador inscreve passagens do diário de Lúcio Ginarte. Assim, o romance se constrói interpolando dois olhares: o do narrador, que tenta ver os fatos com olhar distanciado e crítico, e o do personagem, que registra suas impressões da cidade. A narrativa na terceira pessoa é toda em itálico, reforçando a ideia de distanciamento (afinal, o aspear e o itálico em um texto denotam a referência a um enunciado proferido por outrem, que podemos ou não aceitar); a do diário, em letra corrente. Assinale-se, porém, que ao inserir passagens do diário do protagonista em sua narrativa, o narrador redimensiona o sentido que o autor do diário quis dar a sua narrativa, já que essas passagens estão enfeixadas pelo seu texto. Assim, se toda narrativa refere e interpreta ao mesmo tempo, o narrador de Orgia tanto se refere ao diário, citando-o, quanto o interpreta: seja ao escolher os trechos que devem ilustrar a sua narrativa, seja ao inserir esses excertos nas passagens que ele considera adequadas. É sempre interessante comparar as passagens do diário de Lúcio Ginarte que estão em Orgia e que, posteriormente, foram também citadas por Hermilo Borba Filho em seu romance Deus no pasto (1972). Elas mudam completamente de sentido, já que o texto que as precede e o que as sucede redimensionam as informações contidas no diário. O diário em Orgia torna-se uma espécie de memória da memória. Memória primeira quando do registro de Lúcio Ginarte; memória segunda ao ser inserida em uma narrativa secundária. Dessa forma, o diário alarga o próprio olhar do narrador onisciente. É como se o diário de Ginarte encerrasse um mundo ou um olhar sobre o mundo que o próprio narrador, apesar da sua onisciência, não pudesse penetrar em sua plenitude.

Assim, é por meio da interpolação narrativa, pela tentativa de presentificar fatos que são agora apenas matéria da memória, que Orgia se organiza formalmente. Sabemos que o autor dessa obra era de fato argentino, dramaturgo, poeta e crítico literário; sabemos que ele viera ao Recife para ensinar no seu curso de teatro e que nesta cidade viveu uma experiência densa e única; assim como sabemos que ele foi confundido pela polícia com um agente cubano e, depois de preso, espancado e destituído da Universidade, expulso do Brasil. Orgia poderia ser apenas o registro desses eventos. Ou melhor, poderia ser apenas a publicação dos diários que ele — Túlio Carella — escrevera durante a sua estada no Recife, entre os anos de 1960 e 1962. No entanto, ele precisava entender melhor o que de fato acontecera consigo. De volta a Buenos Aires, distanciado do seu objeto, ele constrói um narrador na terceira pessoa que é o psicanalista. Mais do que um narrador que se refere ao passado, é um narrador que tenta dar sentido ao que ele vivera. Ele deixa de ser Túlio Carella para ser Lúcio Ginarte; atribui os diários que escrevera a este personagem de papel, e constrói um narrador que narra e interpreta a sua própria experiência. Afinal, tudo agora era apenas memória: tanto a cidade quanto os diários que registraram o seu tempo no Recife. Ao transformar as suas memórias em matéria de um romance, Túlio Carella pode alargar o mundo que viu e viveu em terras distantes, safar-se do julgamento dicotômico entre verdade/mentira, e mostrar que tanto a memória quanto a arte são realidades etéreas.

Por fim, faz-se necessário observar que é nesse jogo de interpolação entre narrativas na primeira e na terceira pessoa que podemos observar as transformações que o personagem Lúcio Ginarte irá passar durante a sua estada no Recife. Cada vez mais, ao longo do romance, o narrador na terceira pessoa vai cedendo espaço ao narrador do diário. Ao ver que o seu personagem, pouco a pouco, suprime “os escrúpulos morais para obter a felicidade”, o narrador cede a palavra ao próprio Lúcio Ginarte; seus comentários vão ficando dispensáveis. Não há mais necessidade que ele, o narrador na primeira pessoa, psicanálise o seu personagem. Este, agora, a partir das narrativas fixadas no diário, refere e interpreta a si mesmo. Dessa forma, Orgia pode ser classificado como um romance de formação.


Anco Marcio Tenório Vieira é professor do Departamento de Letras da UFPE

 

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